Capítulo 7

Dandara

    Pela primeira vez na minha vida quero dar na minha própria cara! Não é possível que depois de tantos anos de experiência falando em público eu esteja nervosa em dar uma simples palestra! Bem, não tão simples assim, admito. Porém já estive na frente de júris enormes e defendi casos complicados de homicídios sem nem pestanejar. Sinceramente não sei o que me deu! Só sei que vou respirar fundo, beber uma água e dar essa palestra de uma vez!

    Pego minha folha de papel, bebo a água e bato o copo na mesa com certa força.

— Você tá bem amiga? — Cíntia me pergunta.

— Na verdade não, eu tô nervosa e não  sei nem o porquê!

— Que estranho, você não costuma ficar nervosa sem motivo. Você é a pessoa mais racional que eu conheço!

— Se eu estiver tendo um ataque cardíaco, deixa que me levem pro hospital, mas leia tudo o que eu escrevi para aquelas pessoas, por favor! Uma palestra nunca mexeu tanto comigo!

— Será que não é uma certa pessoa que está atrapalhando seus pensamentos, tirando sua concentração e te causando possíveis ataques cardíacos? — a implicância dela saía pelos poros.

— Vai à merda antes que eu me esqueça!

— Mas também, com um italiano daquele na minha cola eu só ia passar o meu dia pensando em qual seria a próxima vez que eu ia sentar em cima dele!

— CÍNTIA!

— Desculpa! Foi mais forte que eu!

Pela graça de Deus o assistente do desembargador nos interrompe:

— Juíza Dandara, pode vir!

Pego minhas coisas e saio correndo atrás dele.

    Ao ficar diante daquelas pessoas, toda a minha aflição foi embora. Vi naqueles rostos uma carga tão grande de esperança e fome de aprendizado! Os olhares estavam atentos e todos tinham consigo um bloco para anotações. O desembargador conclui seu assunto e diz:

— Bem senhores, agora eu irei trazer aqui uma pessoa que vai trazer pra vocês uma visão incrível do que é a carreira como juiz. Ou melhor… juíza! Ela é concursada, competente, respeitadíssima e muito conhecida. Recebam com uma salva de palmas a juíza Dandara Ibrahim!

Fico impressionada com a reação de todos! Estava sendo aplaudida de pé! Gritaram meu nome repetidas vezes! Emocionada, aperto a mão do desembargador, subo no púlpito e começo:

— Olá, boa tarde a todos! Confesso a vocês que fiquei surpreendida com essa belíssima recepção! Muito obrigada pelo carinho! É uma honra estar aqui falando pra vocês! — dou uma pausa, puxo o ar e continuo — Bem, como o desembargador disse, eu sou uma das juízas que atuam aqui nos tribunais do Rio de Janeiro. Venho cumprindo essa difícil missão a mais de dez anos e confesso a vocês que nunca havia recebido um convite como este. A correria é muito grande e mal conseguimos parar pra comer, imagina para dar uma palestra! Mas mesmo assim, quando o desembargador Torres me convidou para vir aqui, eu aceitei na hora! E depois quando fui parar para processar o convite, a primeira pergunta que eu me fiz foi: o que eu gostaria que tivessem me dito quando eu estava ocupando uma daquelas cadeiras? E a resposta que me veio de forma instantânea foi: FUJA ENQUANTO HÁ TEMPO!

A risada foi unânime!

— Gente, eu vou falar um negócio pra vocês, pra tentar fazer justiça aqui nesse tal de Rio de Janeiro, é só por vocação mesmo! Quem aqui tem um “espírito de justiceiro” que fale muito alto em seu ouvido, coloque ele pra dormir! Pois vai por mim, toda aquela papelada dá um sono quase insuportável! — finjo bocejar colocando a mão na boca.

— Mas brincadeiras à parte, trabalhar como juíza foi a melhor escolha que eu já fiz até hoje. Você sentir que finalmente o poder de decisão está na sua mão, faz com que o nosso “espírito justiceiro” finalmente possa se aquietar. Sei bem como é difícil chegar até aqui. Estudamos todos os dias, bem mais do que nos nossos tempos de faculdade de direito. Cada dia uma “matéria” nova! Crescemos como advogados e promotores a cada caso que vencemos ou perdemos. Aprendemos principalmente com as perdas! Pois são elas que nos dão raiva, nos tiram do sério e fazem você pensar: “Mas que juiz desgraçado! Meu cliente não merecia isso! Ou então: “aquele réu merecia estar na cadeia!” E automaticamente afirmamos: “Se eu sentasse a minha bunda naquela cadeira, certamente as coisas seriam diferentes!” — digo com firmeza.

Os olhos de todos estavam firmados em mim e consegui escutar frases do tipo: “é assim mesmo” ou “falei isso esses dias”. Puxo o ar e continuo:

— De tanto repetir essa frase pra si mesmo, você um belo dia esbarra com um anúncio de um concurso público com vagas para juiz federal e vem a voz do “justiceiro" na sua cabeça: “Vai! Levanta daí e vai lá fazer justiça!” aí imediatamente você entra num ciclo bem esquisito da sua vida: você pega seu tempo, seu dinheiro e a sua dignidade, coloca eles dentro de uma gaveta de meias velhas esquecidas e cai pra dentro dos estudos com uma garrafa térmica cheia de café debaixo do braço!

Arranco alguns risos da minha plateia enquanto relembro como era viver daquele jeito.

— Você luta contra o sono, o cansaço e a frustração a cada segundo daquelas sessões de estudo intermináveis! Quando você está com as olheiras tão grandes que te deixam igual a um panda, sem dormir e com sua vida social acabada, as poucas pessoas que ainda restam a sua volta dizem: “Para com isso, vai descansar, isso vai te matar!” e aí você reflete: “Eles ainda acham que eu estou viva?” — eu mesma acho graça e dou risada — Viramos verdadeiros zumbis até chegar o dia da prova. Prova essa que literalmente te humilha desde o primeiro segundo! Saímos de casa com uma confiança ridícula, pois metade daquilo que você leu ficou entre a garrafa térmica e a gaveta de meias velhas. Fazemos aquela prova e somos engolidos por ela! Passamos semanas depois refletindo o motivo de termos marcado tantas respostas erradas e principalmente o porquê paramos a nossa vida para fazer aquilo! E até o dia de sair a lista com o nome dos aprovados, continuamos uma pilha de nervos, só que tiramos umas boas horas do dia tentando dormir, pois afinal ficamos desacostumados a fazer isso!

Vejo que todos se identificaram com minhas palavras, até mesmo o próprio desembargador Torres. Acho que estou indo bem!

— Eu sei que dei sorte, passei de primeira! Mas eu conheço uma penca de gente que não conseguiu. E sei que tem muitos aqui que também não devem ter conseguido. E aí começa aquele círculo de tortura todo de novo… Mas quando finalmente você abre aquele site, chega na coluna que tem a inicial do seu nome e você o encontra lá… eu não sei vocês, mas eu gritei, comemorei, abracei meus pais e antes de continuar a comemoração, fui lá ver de novo pra saber que eu não estava ficando louca.

Pego meu papel, dou uma olhada nas minhas anotações e prossigo.

— Vocês devem estar achando que eu estou aqui só “enchendo linguiça” né? Os novinhos aqui devem estar se perguntando o que é “encher linguiça” mas não é minha culpa vocês não terem chegado ao mundo na melhor época dele!

Eles riem, mas o desembargador Torres me interrompe:

— Nisso eu sou obrigada a discordar! Os anos sessenta dão um banho nos anos oitenta!

Eu sei que ele está certo, mas finjo que não:

— Depois faremos uma planilha listando os prós e os contras! — me faço de boba.

— Combinado! — ele conclui

— Bem, o fato é que estou falando isso, pois eu quero que vocês saibam que eu sei exatamente o que esse momento significa pra vocês! Todos os outros juízes do Brasil passaram pela mesmíssima coisa! Os que vieram antes de nós, ainda passaram por provações mais difíceis! Nós temos inúmeras ferramentas que nos ajudam e vivemos em uma sociedade relativamente mais justa que eles. Quero que vocês peguem toda a raiva que sentiram daqueles juízes que marcam as suas carreiras com um veredito “injusto” — frizo as aspas com os dedos — de acordo com a sua opinião e guarde essa raiva na mesma gaveta de meias que ficou a sua dignidade nos tempos de preparação para o concurso.

Pontos de interrogação pairam sobre a cabeça de todos.

— Adoro ver as expressões de vocês mudarem da água pro vinho! — falo com sarcasmo — E não, eu não fiquei maluca! Eu peço pra que vocês guardem bem essa raiva, pois vai chegar o dia em que vocês estarão em situações extremamente parecidas com a daquele juiz e vocês vão se ver nos advogados que estão lá embaixo aguardando o seu veredito! Só que dessa vez você tem a clareza e o conhecimento que você não tinha antes. Você vê a arena pegando fogo de cima! Você observa as jogadas, percebe os truques, sabe perfeitamente quem ali está mentindo! De cima daquela bancada TUDO tem outro sentido! Naquele tribunal, aos olhos de todos, VOCÊ é a lei! Só que a verdade é que você está ali apenas como uma ferramenta de aplicação da lei! O que é completamente diferente!

Os olhares mudam e os pontos de interrogação se transformam em exclamação!

— A família do réu, acredita na inocência dele com a mesma força que a família da vítima quer ver ele na cadeia! Você jamais sairá de dentro de nenhum tribunal aplaudido por todos! Depois de cada veredito, você corre o risco de sofrer represálias fora do tribunal. E eu não estou falando apenas de bate boca não! Estou falando de perseguição, coação, constrangimento e até mesmo de atentarem contra sua vida e a vida de sua família!

Levanto a minha blusa e mostro a todos uma cicatriz que tenho em minha barriga. O pavor se instaura na plateia e ao mesmo tempo a curiosidade também.

— Calma, eu já vou explicar. — ajeito a blusa por dentro da calça — Isso aqui é a cicatriz da cirurgia de emergência que eu fiz depois de sofrer um ataque no estacionamento do fórum onde eu trabalho nos dias de hoje. A mãe de uma vítima me abordou minutos depois que eu julguei o motorista que matou a filha dela como culpado, e apliquei uma pena de oito anos de prisão e a suspensão definitiva da sua habilitação depois dele ter atropelado a menina embriagado ao volante. Ela virou pra mim e disse: “Oito anos? É isso mesmo? Você acha que tirar apenas oito anos do homem que matou a minha filha é o suficiente?”

Todos ficaram comovidos, mas eles sabiam que eu estava certa.

— Todos nós sabemos aqui que a lei define que motoristas bêbados enquadrados na lei de trânsito por homicídio culposo (sem intenção de matar) cumpram pena de cinco a oito anos de prisão, além de ter o direito de dirigir suspenso ou proibido. Eu apliquei a pena máxima concedida pela lei, teoricamente essa mãe deveria estar sentindo que “a justiça foi feita” mas o que não vem escrito nos livros de direito é que uma mãe que perde um filho é capaz de literalmente qualquer coisa! Essa menina tinha apenas 6 anos de idade e estava na calçada brincando com um balão ao sair do circo e um cara bêbado simplesmente varou o carro em cima da calçada a setenta quilômetros por hora! A menina morreu na hora!

Paro e bebo um gole da água que estava em cima da mesa de apoio.

— Isso nos leva a pensar: oito anos não são o suficiente! Esse homem deveria apodrecer na cadeia! Mas o que ninguém contou pra vocês, é que esse homem havia bebido pois ele tinha acabado de perder a esposa para um câncer que havia se espalhado por todo o corpo dela! E como consequência, fez com que ela perdesse o filho que eles tanto lutaram para conceber, pois ela tinha ovários policísticos e não conseguia engravidar antes. Esse homem saiu do hospital após assinar o laudo de óbito da sua esposa e do seu filho, parou num bar e bebeu cada lágrima que ele derramou. Pegou seu carro depois de criar forças e saiu para ir avisar aos seus sogros que eles tinham perdido a filha deles. Só que ao virar a direita, se deparou com um poste e desviou, perdendo assim o controle do carro e atropelando acidentalmente a filhinha de seis anos daquela mulher. — faço uma pausa dramática e me ponho a caminhar no meio da plateia — E aí? Como fazer justiça para os dois lados dessa história? Como ser uma ferramenta justa e fiel às linhas dos nossos livros de direito tão bem produzidos por editoras caras? Como fazer com que aquela mãe não quisesse me matar?

Paro no meio do corredor que dividia os dois lados do auditório e vou andando em direção ao púlpito novamente.

— Aquela mulher me segurou pela cintura e enfiou uma faca na minha barriga sete vezes! E no final ela me disse: “Estou lhe fazendo o favor de garantir que vossa excelência nunca passe pela dor que eu estou passando!” — coloco a mão na cicatriz e sinto como se estivesse sendo esfaqueada novamente — Nesse mesmo instante a minha vista começou a escurecer e eu só me lembro de quando acordei no hospital após uma cirurgia de quatro horas, recebendo a notícia de que eu estava fora perigo, mas que eu nunca poderia conceber uma criança, pois as facadas dilaceraram o meu útero, fazendo com que a minha única saída fosse uma histerectomia.

Uma das mulheres na plateia me pergunta:

— E por que você ainda está atuando como juíza?

Eu sabia que iriam me perguntar isso. Paro, olho na direção da mulher e respondo:

— Porque nesse mesmo dia, em uma audiência anterior, eu consegui determinar que uma enorme e conhecida fábrica de celulares pagasse uma indenização altíssima e o tratamento inteiro de mais de cento e cinquenta trabalhadores que foram afetados pela radiação emitida pelos componentes das peças em seu ambiente de trabalho! Eu quero continuar garantindo que os dois lados das histórias tenham a atenção que merecem e que o veredito final seja aplicado de uma forma responsável e plausível! Se o caso desses trabalhadores tivesse caído nas mãos erradas de um juiz corrupto, pois sabemos que isso existe aos montes em nosso estado… teríamos mais de cento e cinquenta homens com suas vidas e saúdes completamente destruídas para que uma empresa de grande porte pudesse lucrar mais.

Subo no púlpito, me posiciono com firmeza e digo:

— Eu sobrevivi! Agradeço a Deus por isso todos os dias! E sem falar que as páginas dos livros de direito tem um cheiro único! É viciante!

Arranco risadas deles.

— Fazer justiça de verdade está longe de ser um trabalho fácil! Dia após dia nós batemos de frente com um sistema problemático, difícil e em muitos casos corrupto! Só que pro azar desse sistema, existem muito mais juízes querendo fazer justiça do que gente querendo passar por cima de nós! Então por enquanto, nós ainda estamos em vantagem! E é confiando na geração seguinte que a gente constroi esse muro que separa o sistema de justiça de toda essa sujeira… tijolo a tijolo! Eu me orgulho muito de cada tijolo desse que leva o meu nome! E eu espero conseguir fazer que de alguma forma vocês saiam daqui determinados a colocar seus tijolos lá naquele muro também!

Eu dou mais uma pausa e me preparo para a conclusão do meu discurso.

— Eu não sei quais serão os desafios que vocês enfrentarão daqui pra frente. Mas não tenham medo! A nossa vocação exige que sejamos pessoas fortes! Nenhum fraco resolve virar juiz! Mas é claro que somos humanos e que teremos nossos momentos de fragilidade, medo, raiva, arrependimento… passem por todos esses obstáculos tendo a certeza que apesar de tudo vocês são capazes de conseguir! Não tenham receio ou vergonha de pedir ajuda! Pelo menos não pra mim! As portas do meu gabinete estarão sempre abertas para receber cada um de vocês! Com suas dúvidas, conflitos e também com suas vitórias, assim espero. Que este seja o início de uma carreira brilhante! Que vocês consigam alçar voos bem altos! Mas não se percam das suas essências e nunca esqueçam de onde vocês vieram. Muito obrigada!

    Os aplausos começam fazendo com que eu comece a me orgulhar de toda a minha trajetória. Ver todas aquelas pessoas de pé, me admirando e provavelmente me tendo como fonte de inspiração, faz cada sacrifício que eu passei valer a pena! Olho para o lado e o desembargador Torres também me aplaudia, confesso que meu ego inflou e não foi pouco! Assim que as palmas diminuem, a mesma mulher que me indagou a primeira vez me pergunta:

— Mas o que faremos com a raiva que você pediu pra guardarmos na gaveta de meias?

— Ela vai ter a mesma serventia que a sua dignidade teve no momento que você estava estudando pro concurso… nenhuma! Por tanto, só vai buscar ela quando você sentir que é uma juíza melhor do que os juízes que te fizeram sentir essa raiva.

— E você já tirou ela de lá?

— Quando eu abri a minha gaveta, ela já havia sumido! Quando um juiz é capaz de reconhecer a sua própria grandeza de forma limpa e sincera consigo mesmo, a raiva de um outro colega se dissipa automaticamente!

Sou aplaudida novamente e em seguida passo a palavra para Torres que diz:

— Bem gente, é isso! Depois desse furacão de mulher passar por cima de todos nós com esse discurso impecável, eu me despeço de vocês e desejo também tudo de melhor em suas carreiras. Obrigado!

O auditório começa a se esvaziar e com isso o desembargador me dá um aperto de mão dizendo:

— Muito obrigada pelas palavras! Seu discurso foi inspirador! Espero você aqui no ano que vem!

— Será um prazer!

    Desço daquele palco muito mais feliz do que eu subi. Estava me sentindo realizada, sentindo que cheguei exatamente onde eu queria. Por alguns segundos senti que não precisava de mais nada, até o momento de descer os degraus do auditório e ver o rosto de Marco… é, eu estava completamente enganada! Eu mais do que precisava daquele homem na minha vida! Dou um sorriso discreto e começo a caminhar em direção a ele. Seu olhar em minha direção é penetrante! Hipnotizante até! Ser escaneada por aquele homem fazia me sentir praticamente nua! E ele ainda não tinha encostado nenhum dedo em mim! Chego na porta do auditório e pergunto:

— Tá perdido detetive? — faço cara de surpresa.

Ele estreita os olhos enquanto me fita de cima abaixo.

— Não, com certeza eu já me encontrei…

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