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"HANGYUL!"
Bianca gritou, no mais alto som, na recepção de check in do aeroporto de Guarulhos. Uma série de pessoas que estavam ao redor a encararam, parando de prestar a atenção em seus próprios universos para assistir a seja lá qual fosse o escândalo que ela faria.
O garoto de boné sentado próximo ao bebedouro imaginou que eles poderiam ser namorados e ela poderia ter descoberto alguma infidelidade. Ele era o tipo de pessoa que gostava de ver desgraças alheias, então parou a partida de Free Fire para assistir, já que o ping estava muito alto e, de qualquer forma, acabaria perdendo.
A senhora que estava com um netinho jogando Baby Shark imaginou que poderia só ser um daqueles jovens barulhentos que gostam de se aparecer. Logo, tentou voltar ao foco na revista que estava lendo, sobre o último capítulo da Maria da Paz.
Uma garota, de no máximo 13 anos, que usava uma camiseta de um boygroup famoso, não tirava os olhos de Hangyul e só conseguia pensar em como seria legal ter um namorado assim, se não fosse a loira chata gritando por ele. Por outro lado, a garota mais velha, sentada a três cadeiras de distância, sorria, imaginando que talvez fosse um reencontro amoroso. Ou uma confissão desesperada antes que aquele rapaz fosse embora para longe. Imaginou os dois se beijando apaixonadamente alguns minutos no futuro.
Mas, apesar das muitas suposições da plateia de estranhos, e, apesar de algumas delas terem chegado perto da realidade, nenhuma foi, de fato, certeira. Nenhum pensamento ou suposição nunca é como a realidade.
A coisa mais irônica disso tudo era como a vida de Bianca, de uma hora para outra, se tornou quase uma fanfic. Uma fanfic finalizada com um toque cruel da vida real.
Porque ela, literalmente, estava apaixonada por um quase idol. Mas agora ele iria embora.
"Bia?"
Bianca se empertigou, com as mãos trêmulas escondidas nas dobras da saia lisa. Hangyul estava com uma mala de rodinhas e outra pendurada nas costas. O moletom do Flamengo que ela havia lhe dado de amigo secreto do curso e os cabelos negros mais bagunçados que o normal. Ele sorriu, quando viu a amiga e foi até ela. Aos poucos, as pessoas voltaram aos seus próprios mundos, deixando Bianca sozinha com a conclusão daquela história.
"O que faz aqui? Você não tinha prova? Tá fazendo o que em São Paulo?"
Bianca segurou a língua e o coração. Tentando não deixar aquele sentimento transpassar as barreiras que ela mesma colocou em si. Transpassar em alguma expressão, ou fala desesperada. Então, tudo o que ela disse foi:
"A Anny veio ver a vó dela. E me chamou para conhecer a cidade."
Ele deu um sorrisinho.
"E você se aproveitou e correu pra despedir de mim…"
Bia entortou o nariz e logo fechou a cara.
“Não, sua besta. Na verdade…”
Ela coçou a cabeça. Era assim que ela estragaria tudo. Havia planejado desde a noite anterior uma declaração. Uma forma de demonstrar para ele todo aquele sentimento que ela havia mantido incubado por tantos anos. Ela imaginou a mesma cena diversas vezes. Se imaginou dizendo “Não vai. Por favor. Não tô nem aí se você vai se tornar famoso e rico, eu só quero nós dois em Brasília, enchendo o saco um do outro porque eu gosto muito muito de você!!!”
Mas a realidade é talentosa em se desviar completamente de tudo o que alguém, um dia, imaginou.
“Na verdade eu vim te entregar isso.”
Ela tirou um pacote da mochila pesada. Algo fofo enrolado em um papel de presente dourado-metálico. Hangyul sorriu e meneou a cabeça.
“Presente?”
“É meu, da Andressa e da Anny.”
Era mentira. Era só dela. Na verdade, aquele presente era uma cartada final bem cafona à sua declaração. Entregar ela sem ter falado tudo o que pensava era só mais um desvio do plano.
Ele abriu cuidadosamente a embalagem e tirou uma camiseta branca, de algodão, com uma estampa negra e simples, com uma fonte animada. Estava escrito: “Can I be your Bia?”
Hangyul riu, encarando a estampa e disse, com os olhos um pouco úmidos.
“Faltou um S. Can I be your bias?”
“Na verdade, está bem certo.”
Foi a coisa mais ousada que ela conseguiu dizer.
“É um trocadilho. Ninguém vai entender mesmo. Vão achar que é uma camiseta defeituosa e…”
Hangyul a surpreendeu com um abraço. Apertado, longo… daquele que esmaga costelas e o coração. Ela quase pode sentir o coração dele batendo contra suas bochechas, enquanto seus lábios selaram, com ternura, um beijo inocente em sua testa.
“Vou sentir sua falta, Bia.”
“Pois eu não.”, ela engoliu o choro. “Não aguentava mais você ser a estrelinha das marias hashis do curso.”
Ele sorriu e segurou as bochechas dela.
“Qualquer outro hyung vai me substituir bem.”
“Dúvido muito. A maioria deles são chatos.”
“Acaba de admitir que eu sou insubstituível?”
“Tchau Hangyul.”, Bia revirou os olhos.
Hangyul tirou as mãos do rosto dela e deixou a correia da mala escorrer de volta às suas mãos. Foi se afastando aos poucos, deixando lentamente Bianca e seus arrependimentos para trás. Da forma mais dolorosa possível: encarando-a, com aquele sorriso triste.
“LEMBRA QUE VOCÊ AINDA É NOSSO!”, ela gritou, quando ele estava prestes a passar pela catraca.
“ME ASSISTE! EU VOU MANDAR BEIJO!”
A partir do momento que ela não podia mais ver Hangyul, ela teve certeza de que cometeu um erro. O erro de não ter dito para ficar, de não ter dito que não queria dividir ele com fangirls coreanas e demais telespectadoras. Ou, ao menos, ter dito um “Lembra que você ainda é meu!”, ao invés de usar o “nosso”.
Por que raios a realidade é tão ruim?
***
Hangyul vivia no Brasil desde os quatro anos de idade. A maioria das vezes, ele se sentia mais brasileiro do que coreano. Mas nunca, em momento algum, deixou de lado o amor que tinha pelas coisas de seu país de origem. Entre elas, o mundo da cultura pop sul coreana que, desde sempre, foi visto como algo estranho, mesmo com o boom dela no ocidente.
Então, desde os doze anos de idade, Hangyul soube esconder o seu sonho mais oculto de todos os seus amigos e até mesmo de sua família: ser uma estrela. Quando ele vinha da escola, tirava o uniforme, almoçava assistindo Super Shock e, depois, ia para o quarto, colocava uma música do Bigbang e se divertia imaginando que poderia ser o próximo Taeyang ou o G-dragon. Coisa que, naquela época, nem as amigas curtiam.
No início, ele era bem ruim. Tanto cantando, quanto dançando. Por isso, pediu ao pai para que o deixasse ir as aulas de coral do inglês. Isso o ajudaria, dando descontos na mensalidade e ajudaria Hangyul, que treinaria mais a voz e descobriria quais eram os seus tons. Depois disso, de fato, ele melhorou.
Quando completou 17 anos, ele quase desistiu. Pensou que era só um sonho bobo. Como ele seria um idol vivendo em Brasília? Pensou também em como qualquer pessoa do seu círculo social tiraria sarro da cara dele se soubesse.
Mas então ele começou a fazer monitorias no curso de coreano da UNB e quase se sentiu um idol quando acabou se tornando o centro das atenções das meninas. Poderia ser levemente estranho e doentio, mas ele idealizava como seria quando, de fato, tivesse fãs e acabou desfrutando demais daquela atenção.
A única garota que mais tirava sarro dele do que, de fato, demonstrasse interesse era a Bianca. Isso era algo que lhe incomodava, mas não de uma forma ruim. Incomodava muito mais de uma forma interessante. O tempo passou e as alfinetadas que trocavam acabou virando uma amizade. Sem que ele se desse conta de que estava se apaixonando pela amiga. Ele chegou a contar a ela sobre o sonho de ser idol. Esperou que ela risse, ou o desencorajasse, mas ela o surpreendeu com um apoio que nunca nenhuma das poucas pessoas a quem contou aquilo havia lhe dado.
A felicidade e o espanto dela quando ele deu a notícia no curso de que passara em uma audição de uma empresa de entretenimento coreana, para ser o seu o trainee representante do Brasil na nova temporada do Produce X 101, provou que ela realmente sempre acreditou nele.
Também provou que não doeria tanto para ela a sua partida.
Ele sabia que aquilo, aquela leve indiferença sobre a distância que viria separá-los, foi o que fez Hangyul escolher seguir o seu velho sonho ao invés de abandoná-lo por um novo bem mais comum e simples: ser o namorado da Bianca.
***
Quando Bianca chegou na casa da avó de Anny, ela estava vendo novela da Record na sala. Tensa, com os olhos presos nas tramas de Jezabel, mal viu que a amiga da neta havia chegado.
“Oi dona Gilvana. Onde está a Anny?”
“Tá lá em cima com o Luizinho.”
Bia assentiu, perguntando se ela estava bem, antes de tirar o sapato e subir até o quarto onde a amiga e namorado estava. Ela engoliu em seco, temendo flagrar alguma cena difícil de esquecer assim que entrasse, mas até que não foi das piores. Anny estava no colo do garoto, passando o pente velho da avó nos cabelos lisos e falando com voz de bebê, enquanto parava, um pouco, de pentear o cabelo dele, para apertar as suas bochechas.
O mais irônico disso tudo é que, antes de namorar, Anny vivia dizendo que seria bruta com o futuro escolhido. Antes de namorar Luizinho, ela o odiava com todas as forças. E agora…
“Nene lindo, Meu Deus… Olha o cabelinhoooo deleeeee aaaaaaaa.
“AI QUE NOJO!”
Anny caiu do colo de Luizinho e, automaticamente, da cama também. Ele começou a rir dela e ela devolveu com um soco no ombro dele.
“Ai. A dualidade, meu Deus.”, ele resmungou.
“Sua vó sabe que vocês tão fazendo um neto indiozinho aqui na cama dela?”
“A gente não tá fazendo nada de errado, Bia.”, Anny fechou a cara.
“Ainda né? Sempre que você começa com essa de nenê lindo vocês dois acabam sem roupa.”
Anny abriu a boca, ultrajada.
“Nada a ver!!!!!”
“ O Luizinho me contou umas coisas. Ram…”
Ela o encarou, com a cara emburrada.
“Eu menti?”, ele arqueou as sobrancelhas.
Anny bufou e se levantou do chão.
“E ai nega, falou com ele?”
A fisionomia de Bianca, mais uma vez, murchou. O sorriso sumiu, os olhos se estreitaram, como se buscassem guardar as lágrimas.
“Ah… eu dei a camiseta e ele foi embora.”
Anny arregalou os olhos.
“Amada?”
“AI, Anny, eu não tive coragem de falar os negócio tudo. Eu me tremi toda na hora e acabei só dando boa sorte, ou sei lá.”
“AMIGA, SUA BURRA!”
“Não me julga! Eu fiquei nervosa.”, ela choramingou.
Anny revirou os olhos e se colocou na frente da amiga, dando soquinhos leves na testa dela. Depois a abraçou e Bia sentiu o coração se aquecendo com o carinho da amiga.
"Ai bebê. Eu te entendo. Mas você devia ter falado, cara!"
"Anny eu fiquei com medo." Bianca se desvencilhou do abraço. "Medo de, afinal de contas, eu acabar me declarando a toa. Ou de acabar destruindo o sonho dele."
"E só isso deixou seus sentimentos debaixo do tapete?"
Bianca fungou e esfregou o nariz.
Não existia muita explicação para a covardia. Ela só acontecia. Ela é necessária, em toda e qualquer ocasião, mas assim como todas as coisas, se vem em excesso, acaba se tornando um empecilho que divide águas. Era exatamente isso o que estava acontecendo.
A covardia de Bianca acabou matando a última chance dela dizer como se sentia.
"Olha, meninas, não sei se eu devia falar isso…"
A voz de Luizinho atraiu a atenção das duas amigas. Anny e Bia se entreolharam e Luizinho hesitou.
"Ah deixa pra lá.", ele deitou na cama da avó de Anny, mexendo no celular, como se nunca houvesse falado nada. Como se não estivesse nem ali.
"Nananinanão, Seungyoun Cho! Vai falar agora.", Anny cruzou os braços.
"Não é nada demais, meu xuxu.", ele deu um sorriso falso.
"Eu te conheço sua praga. Se você começou a falar e ficou quieto é porque é treta. Bem igual aquele dia que você literalmente me ferrou com meu chefe. 'Ain amor não é nada só de dedurei, mesmo!'", ela imitou o garoto com um sarcasmo descomunal.
"Amor foi sem querer!!!", ele choramingou.
"Dane-se querido. Fala logo."
"Não posso!"
"Por que não?"
"Porque é segredo do Hangyul, oras."
O coração de Bianca deu um pulo. Um segredo do Hangyul. Talvez fosse algo muito bom ou muito ruim. A ansiedade fez com que ela sentisse um choque frio na espinha e ela olhou a amiga de um jeito suplicante. Pedindo, sem palavras, que ela exercesse seu poder feminino no namorado. Ela entendeu bem aquele olhar e sentou na cama, ao lado de um Luizinho estirado, que tentava fingir indiferença.
"Olha amor, meme do Narutinho.", ele riu sem graça.
"Seungyoun…", Anny sussurrou, com um olhar firme nele. "Para de olhar essa droga de Narutinho e olha pra mim."
Relutante, ele largou o celular. Por cinco longos segundos Anny o encarou. Nos olhos castanhos dela, um misto de ternura, raiva, lascívia, ameaça, vingança e bilhões de outros sentimentos que deixaram Luizinho com vertigem. Ele piscou e bufou. Anny sorriu, sabendo que vencera, mais uma vez.
"Tá, tá bom, mulher. Meu Deus! Bia, o Hangyul gosta de você."
A ansiedade parecia ter feito o coração de Bianca congelar. Mas não parar como havia feito depois de ouvir a frase rápida de Luizinho.
Ela sabia que os dois eram amigos há um tempo. Famílias coreanas eram muito amigas e, consequentemente, a nova geração criava laços. Mas não sabia que eram tão amigos a ponto de Hangyul desabafar algo do tipo. Sentiria ciúmes se o assunto não fosse ela mesma.
"É sério?"
"Pelo amor de Deus, não contem pra ele. Ele me fez JURAR que eu não ia contar pra vocês."
Bianca suspirou e enterrou os dedos nos cabelos.
"Poxa… acho que eu sou mais burra do que eu imaginava."
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