Amor em confinamento

Era uma vez dois corações que sentiam o elo traçado pela flecha do filho de Vénus e de Marte. Era uma vez dois adolescentes que, envergonhados pelos olhares alheios e pelos pensamentos traiçoeiros de quem não tem mais nada que fazer que meter-se na vida dos outros, guardavam para si mesmos o segredo do amor em que as suas mentes viajavam. Era uma vez o nono ano e a última oportunidade de abrirem a gaiola que trancava as emoções infligidas pelo Cupido antes de cada um escolher um curso e seguir o seu caminho no Secundário. Era uma vez a coragem. E do nada uma maldição destinada a separar o casal de enamorados que dava pelo nome de pandemia surgiu.

Março de 2020 e o que era para ser umas férias da Páscoa antecipadas transformou-se num confinamento prolongado. Num dia, a garantia de que as escolas nunca iriam fechar e no outro a certeza de que ninguém pisaria uma sala de aula até ao próximo ano letivo. Venham as máscaras, o álcool-gel, o distanciamento físico, as videoconferências e os arco-íris nas janelas, esperança renovada de que, um dia, as ruas espetrais e vazias encher-se-iam de ajuntamentos alegres outra vez.

Miguel e Alexandre haviam trocado os olhares acanhados por mensagens tímidas. Ocasionalmente, faziam uma videochamada ou outra em que o tema da conversa divergia mais para a entreajuda nas tarefas assíncronas que os professores mandavam a turma realizar do que propriamente para o sentimento de um vermelho fumegante que saía do buraco coronário provocado pela flecha do Amor.

Como dois grandes amigos a viver num mundo solitário em que as codrilhices das vizinhas se passavam à janela e a moda dos planos de treino baseados em vídeos do YouTube viera para ficar, era frequente a preocupação um com o outro. Iam-se conversando online naquela realidade tenebrosa apocalíptica e distópica, navegando no barco da sobrevivência enquanto tentavam manter a sanidade mental.

Um dia, Miguel começou a manifestar aquele malfadado sintoma que, socialmente, transformava os seus portadores numa espécie de monstros carnívoros à solta e que dava pelo nome de tosse. Assim que soube, o alarme e a inquietação tomaram conta do ser de Alexandre.

- Então? É positivo? - Perguntou Alexandre numa videochamada com a sua cara-metade, de olhos a brilhar de aflição.

- O médico diz que... Um coração? Porque é que me mandaste um coração no chat? - Disse o outro rapaz, numa mistura de tosse e riso. - Toma lá um coração também! Uma guerra de emojis de corações!

- Sabes, Miguel, tenho uma coisa para te dizer já há algum tempo... - Começou um dos apaixonados, interrompendo os toques das inúmeras mensagens e as gargalhadas. - É que sempre que te vejo, a minha mente sai de órbita, vai para outra dimensão...

- Eu também te amo, Alex. Beijo virtual?

Os dois rapazes esboçaram sorrisos cúmplices. No canto do olho de Alexandre, escorria uma pequena, quase invisível, lágrima emotiva.

- Para quê tanto choro? O PCR deu negativo! 'Bora jogar um videojogo!

- 'Bora, gamer do meu coração!

(499 palavras)

Monte, 2024

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