Prólogo

Giselle


— O que será que ela faria comigo se eu roubasse um beijo dela? — pensei, observando a Érica pondo uns enfeites de natal numa caixa.

Cheguei ao Anjo de Resgate cedo àquele dia, estávamos preparando tudo para o natal. Eu estava ali havia seis meses, mas ouvi que na véspera de natal o local enchia. As doações aumentavam muito e o instituo recebia muita gente, inclusive famílias carentes para a ceia.

Era a ala que eu mais gostava. Arrumei uma parte do salão e montei, junto com a Érica, a árvore de natal, também doação de uma loja. Decoramos a sala das crianças com câncer. Um trabalho bastante extenuante, mas o dia passou e nem notamos. Almoçamos rapidamente, terminamos a decoração e ela avisou que a diretora queria conversar com a gente, possivelmente sobre a ceia e fomos lá. Antes que Neila, a diretora, começasse a falar, eu vi uma fumaça saindo pela saída de ar do berçário. Naquele momento eu agi por instinto e apenas corri.

O berçário estava pegando fogo. A ala infantil inteira estava ameaçada. Entrei correndo ali e acionei o alarme de incêndio. Peguei um extintor e apaguei uma chama, que subia por uma cortina. Tentei controlar o fogo violento, mas o conteúdo acabou e larguei o objeto. Corri ao berçário e vi muita fumaça. Ouvi gritos e pessoas correndo. A sala de tratamento de crianças com câncer era ao lado. Havia muita criança ali, mas meu foco era quem não podia correr.

Corri e destravei os berços, os empurrei para fora da sala — as aulas de crossfit que eu me meti a fazer quando cheguei ao Rio estavam sendo úteis — vi Érica chegando e recebendo os objetos com bebês que esgoelavam assustados. Fiz isso com mais cinco bercinhos, até que ouvi um barulho de algo quebrando. Vi Érica pegar outro bebê no colo e sair com ele de lá. O calor estava insuportável. O teto começou a desabar aos poucos. Algo derretia, pois pingava no chão. Tentei chegar ao último berço que havia ali e uma viga caiu na minha frente, me joguei para o lado para não ser atingida.

A primeira coisa que a gente faz quando toma um grande susto é fechar os olhos, e naquele momento eu fechei meus olhos com força, mas antes vi a imagem da Érica entrando no berçário com outro extintor, enfrentando aquela chuva de pedaços do teto que desabava.

Os milésimos de segundo que passei com os olhos fechados já a imaginei machucada e me levantei, senti o calor daquela viga no meu braço e fui para perto do berço onde o bebê chorava. Felizmente consegui tirá-lo de lá. Protegi-o no meu abdome e tentei sair.

Mais partes do teto desabaram e mais uma vez com os olhos fechados, já ardiam com aquela fumaça densa, corri para a saída. Vi Érica tirando os móveis queimando com as próprias mãos para chegar até mim. Enquanto eu protegia aquele pequeno ser no meu colo, tentava passar pela montanha de móveis queimando.

Mesmo em meio àquela confusão de fogo, fumaça e madeiras caindo, eu vi o olhar de desespero dela. Tentei fazer algo, mas senti minhas pernas me desobedecendo, meu corpo desfaleceu e caí protegendo o bebê e só vi uma grande escuridão.

Não ouvi mais nada. E uma sensação de paz tomou conta de mim. Eu finalmente conseguia respirar direito.



Érica


Confesso que as investidas da Giselle em mim me deixavam com raiva. Ela era linda demais. Devia ter mais ou menos um metro e oitenta de altura. Morena de olhos verdes, cabelos castanhos, sorriso lindo, envolvente. Causava coisas indescritíveis em mim até em pensamentos, mas o meu profissionalismo me impedia de sequer olhar para ela com outros olhos. Eu não gosto de misturar as coisas. Mesmo se não houvesse esse impedimento, ela tinha um comportamento arrogante demais para o meu gosto. Era teimosa e tentava passar por cima das minhas ordens.

Apesar de demonstrar boa vontade com o trabalho que executávamos no instituto todo dia, ela tinha um ar altivo. Não sei explicar. Tinha mania de me olhar e me deixar constrangida, como se eu estivesse nua na frente de alguém que eu não conheço.

Era dedicada e sempre trabalhava no período da tarde, depois do expediente da empresa dela, e aos fins de semana chegava depois das onze, procurando café, bocejando demais. Visivelmente demonstrando que passara a noite acordada. Eu me peguei certa vez imaginando o que faria acordada a noite inteira e expulsei rapidamente os pensamentos, pois envolviam várias mulheres, bebidas... e enfim, achei melhor não especular mentalmente a vida dela, só me manter longe, pois a energia que emanava dela me atingia com força. O cheiro dela era viciante. Até sua pele quente me tirava do sério. Causava uma espécie de ardência pelo meu corpo.

Naquele dia, ela me surpreendeu e chegou cedo. Quando saí de casa para preparar o café da manhã das crianças, ela já estava terminando de recolher o lixo da sala.

De longe notei os fones de ouvido. Concentrada. Fiquei por uns segundos, parada, observando-a colocar o lixo no contêiner.

É linda demais!

Pisquei algumas vezes, passei as mãos nos cabelos e segui para buscar o café.

Naquele horário, só Laise Andrade chegava e me ajudava a arrumar e a servir. Ela era dinamarquesa, morava no Brasil havia mais de quarenta anos. Adorava conversar. Trabalhava com artesanato e me ajudava sempre. Depois de um tempo, nos tornamos amigas.

— Hoje vou tomar café com o Daniel, tá? — avisou com um sorriso que beirava a malícia no rosto e que me fez sorrir. Daniel era o namorado.

— Tudo bem. Obrigada por ter vindo. E esse lance de vocês, é sério? Já falou com seus filhos?

— Está ficando sério. Ainda não falei com as crianças. Comentei mais ou menos com o Fernando, ele é um doce, mas vou apresentar oficialmente aos dois.

E assim ela me ajudou a servir o café junto com Giselle e foi embora.

Trabalhei a manhã inteira ao lado da Giselle, que evitou me olhar daquela forma. Até desviava o olhar quando cruzava com o meu. Na noite anterior eu precisei ser um pouco dura demais com ela.

— Dia cheio, né? — perguntou no fim do dia passado, me fuzilando com aquele olhar. — O que acha de tomarmos uma cerveja? — perguntou, me secando descaradamente.

— Eu não bebo, mas obrigada.

— O que você faz pra se divertir, hein? Já chamei tantas vezes... eu não vou te morder, prometo. Se você pedir pode ser que eu quebre a promessa, mas...

— Giselle, para. Não vou sair com você. O que eu faço para me divertir não é problema seu. Para com esse assédio, já está ficando muito chato. Daqui a pouco vou ter que reportar à direção.

— Eita! Calma, mulher! Eu, hein? — disse levantando os braços em rendição. — Desculpa. Só achei que seria legal a gente se conhecer melhor... — disse saindo. — Mas não se preocupe, a senhora não precisa reportar nada à direção, não. Eu parei com o "assédio". — disse já chegando perto de seu carro e se foi.

Ela recolhia uns enfeites extras do chão e colocava numa caixa. Olhou em volta verificando se estava tudo certo.

— A Neila quer conversar com a gente. — avisei e recolhi uma guirlanda que sobrou. — Vamos lá, depois vamos descansar, que amanhã isso vai estar lotado.

Desliguei tudo e saímos. Entramos na sala da Neila e ela já nos esperava enquanto digitava algo no laptop. Ela nos cumprimentou normalmente e sentamos.

— Então, meninas, vocês estão fazendo um ótimo trabalho. Esse ano, estamos com previsão para receber quinhentas crianças carentes, então será um pouco...

Giselle olhou para o lado e saiu correndo sem falar nada, Neila franziu o cenho e olhou pela janela.

— É fogo, Érica! — gritou como se me empurrasse para fora da sala e pegou o celular.

Eu corri o mais rápido que eu pude. Giselle já empurrava os bebês para fora da sala já em chamas.

Peguei dez berços, um de cada vez — naquele momento agradeci por ter rodinhas nas bases deles —, entreguei para algumas pessoas que chegavam ali para ajudar. Tirei o décimo primeiro bebê do berço que estava obstruído e o levei para fora. Vi um extintor do lado de fora e o peguei para conseguir ajudar a Giselle, que arriscava a própria vida para salvar o bebê do fundo da sala.

O conteúdo do extintor é apenas para fogo de pequeno porte e aquele estava longe de ser pequeno, então acabou rápido. Um desespero enorme tomou conta de mim, e apenas entrei na sala, afastei uns móveis com as mãos mesmo. Vi Giselle se aproximando da saída com o menino no colo, mas a vi cambaleante. A exaustão estampada em seu rosto. Seus olhos transmitiam pavor e pedido de ajuda.

Tentei chegar até ela, que caiu ajoelhada e desmaiou. Peguei o extintor e quebrei uma viga que queimava impedindo a passagem e consegui chegar até ela. Minha garganta ardia. Consegui arrastá-la para fora da sala. Neila pegou o bebê intacto dos braços de Giselle, e eu tentei acordá-la. Ouvi a sirene do corpo de bombeiros. Apertei o rosto da Giselle, desmaiada sobre o meu peito e senti mãos com luvas me tirando dali e notei que iam socorrê-la.

Eu estava desorientada, o fogo havia destruído a ala infantil, não tinha ideia se havia mais feridos, mas impressionantemente só ela me importava naquele momento. Tentei correr para a viatura de atendimento e fui contida por Neila.

— Érica! Calma! Ela está viva. Você precisa de cuidados... — avisou e me levou para ser atendida também.

Aquilo foi como me tirar de um transe de desespero. Eu ofegava, minha garganta ardia como se estivesse queimada também. Cheguei perto dos paramédicos e senti uma máscara de oxigênio sendo colocada no meu rosto. Fui conduzida para o interior da ambulância de resgate. Giselle estava inconsciente, recebia oxigênio.

Você não pode morrer! — pedi em lágrimas. — Por favor, não morre. Prometo pegar mais leve com você.

O solavanco que a ambulância deu para sair das dependências do instituto me trouxe de volta novamente. Eu sentia o meu corpo inteiro tremer, as mãos arderem. Se a máscara não estivesse presa com elástico eu não teria como segurá-la, pois estava com as mãos queimadas. Só notei quando aproximei do rosto dela.

Eu só conseguia chorar, naquele momento.

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