4 - Anjo

Érica


Neila era muito envolvente, e eu não estava me reconhecendo. Ou talvez eu estivesse simplesmente tentando viver e me aproveitei daquele impulso. Ela iria embora em breve, então... por que não? O máximo que poderia acontecer era eu fazer uma amiga.

Ela fez questão de me levar em casa depois de me mostrar o que fazia. Trocamos números de telefone e marcamos de nos encontrar às 5h, daquele dia.

Eu cheguei em casa e fui direto para o meu quarto. Estava mais leve. Até abri a janela. Meu pai já estava no trabalho àquela hora. Minha mãe bateu à porta suavemente, como sempre fazia.

— Oi, mãe... — disse ao abrir.

— Como está, filha? Fiquei preocupada, você saiu daquele jeito.

— Eu precisava esfriar um pouco a cabeça. Desculpe não ter avisado.

— Tudo bem. Seu pai ficou nervoso. Vou fazer almoço, você vai comer um pouquinho?

— Sim, mãe. Obrigada. Eu vou lavar as mãos e vou ajudar a senhora.

Minha mãe era professora, estava de férias. Meu pai estava reclamando de tudo ultimamente, e eu via o que ela fazia para que ele parasse sem que eu me magoasse com as discussões. Eu não comia direito. Perdi dez quilos depois da morte do João e isso a preocupava muito. O fato era que eu não queria saber de nada. Só comia porque ela insistia muito e eu queria ficar quieta.

Cheguei à cozinha e vi minha mãe preparando as coisas para fazer o almoço. Olhei tudo ali e notei que não tinha observado de fato como aquela cozinha tinha mudado desde que saí de casa. Pela primeira vez em meses eu estava indo ajudar a minha mãe a cozinhar. Notei que aquilo a deixou muito feliz.

Eu estava com milhões de pensamentos na cabeça enquanto fazia uma salada. Minha mãe contou que a vizinha estava se mudando e depois emendou o assunto com um problema de um aluno dela, que se envolveu com uma mulher casada. Eu estava monossilábica. Ela contava as novidades na intenção de me animar.

— Eu vou sair mais tarde de novo, mãe... — avisei colocando a mesa.

— Tá bom... — Ela disse sorrindo. Não questionou nada. Gostei daquele espaço.

Quando meu pai chegou, ficou surpreso com a minha presença à mesa.

— Oi, filha. Que bom ver você assim! Está com uma aparência melhor.

— Obrigada, pai. Preciso reagir...

— Fico feliz que tenha decidido isso, filha.

— Não foi uma decisão, foi uma obrigação, pai. — Eu já começava a pensar no que não era saudável e me levantei. — Com licença... — Fui para o quarto.

— A vida continua, Érica. Vamos buscar conforto em Deus, filha. — Ele disse para que eu ouvisse.

Eu respirei profundamente, sentia um nó na garganta. Ouvi o meu pai reclamar de contas atrasadas naquela manhã. E acreditei que a discussão foi para que eu escutasse, pois raramente brigavam. Aquilo me incomodou muito e foi por isso que eu saí. Eu não morava com eles havia mais de sete anos, por isso aquilo me deixou tão mal.

Meu pai era bancário. Moreno, alto, católico rigoroso, muito conservador. Deu uma surtada quando soube que me separei do Henrique. Para ele, casamento é para a vida toda. Ficou furioso, mas mesmo assim não contei a verdade sobre as agressões. Não queria preocupá-los. Ele passou a achar que o Henrique estava me traindo. Uma vez quis tirar satisfações e precisei ser bem convincente para evitar que ele fosse até Fortaleza. Quando reatamos, ele ficou feliz.

— Pelo menos para alguma coisa boa a doença do meu neto serviu.

Engoli aquilo em seco. Ele não fazia ideia do que eu passava.

Depois que o João se foi daquela forma tão drástica e dolorosa, eu não pude mais evitar a ida deles para Fortaleza. Ele não entendeu nada quando soube que eu havia me separado mais uma vez do Henrique. E o maldito deixou a entender, na conversa que tiveram, que a decisão havia sido minha. Eu ainda saí como vilã. Ele só soube do que eu sofri depois do sequestro da Júlia. Aí ele soube de tudo. Dos abusos, dos reais motivos da separação, do meu relacionamento com a Júlia.

Eu estava muito abalada com tudo e acho que por isso... somente por isso, ele engoliu o fato de eu ter assumido amor por uma mulher. Na verdade, foi ele quem me convenceu a voltar para São Paulo. Não sei se por que queria o meu bem, me ter por perto para cuidar de mim, ou se porque queria que eu me mantivesse longe da Júlia. Enfim... o fato é que ele não é mais o mesmo comigo. Sei que se preocupa com o meu bem-estar, tenta ser carinhoso e tudo mais, mas lá no fundo percebo o olhar julgador. E acredito que a minha sexualidade seja assunto das brigas dele com a minha mãe.

Mas para falar a verdade, tirando o fato de me sentir um entulho na casa deles, a opinião dele já não me importava mais. Tudo o que eu queria era paz para pensar no meu bebê.

— O João era o meu lar! — disse em lágrimas na cama no meu antigo quarto enquanto abraçava o travesseirinho dele, que ainda tinha seu cheiro.

Eu guardei todas as coisinhas dele, de brinquedos a roupas de cama. Depois de um tempo eu aceitei que era só material, que ele estava em um lugar bem melhor, mas manter seus pertences perto de mim para que eu pudesse trazê-lo de volta sempre que tocasse, sentisse ou cheirasse, me acalentava, pois era como se ele estivesse só ido para a escola. Uma escola que eu não iria mais buscar e levar para casa contando uma história ou ouvindo como foi o dia de aula dele, mas eu gostava muito daquela proximidade que eu sentia quando abraçava o travesseiro. Em poucos dias, já não havia mais o cheiro dele lá, mas mesmo assim eu o sentia ali, sendo abraçado por mim. Sentiria aquilo para sempre.

Neila me ligou às dezesseis horas em ponto e perguntou se eu poderia ir com em um jantar.

— Neila, acho que não vai dar pra gente sair.

— E você ia me avisar isso que horas?

Respirei fundo num quase soluço.

— Eu vou direto para sua casa, Érica. Você chorou de novo, isso é sério.

— Não precisa se incomodar, Neila.

— Tchau! — disse aborrecida e desligou.

Larguei o celular e deixei as minhas lágrimas fluírem. Deitei na cama e abracei o travesseiro mais uma vez.

Eu pedia para morrer inúmeras vezes na esperança de encontrar o meu filho de novo. Não parava de me perguntar: Por que ele foi tão cedo? Tão jovem, sem viver nada. Por que não eu? Ele tinha a vida toda pela frente.

Bateram à porta do quarto. Fiquei em silêncio, minha mãe não insistia quando achava que eu estava dormindo. Mas daquela vez ela parecia disposta a me acordar. Levantei para atender e me surpreendi ao ver a Neila sorrindo para a minha mãe, já entrando no quarto.

— Não falei que estava acordada, dona Elisa? Obrigada... — disse e fechou a porta quando a minha mãe se afastou.

Eu a olhei, paralisada, o rosto encharcado de lágrimas. Ela me abraçou e outra represa de lágrimas se rompeu. Desabafei no ombro dela, que não disse nada, apenas me confortou naquele abraço que se encaixou perfeitamente.

— Desculpa! — pedi e me afastei, arisca e sentei na cama.

— Jamais peça desculpa por demonstrar sentimento, Érica. — disse num sussurro, sentando-se de frente para mim. — Esse abraço eu queria ter te dado naquele café, mas você parecia um bichinho machucado, então resolvi não avançar tanto, mas você precisa muito de abraço, de apoio. — falou secando o meu rosto.

Eu fitei aqueles olhos azuis e me perguntei se ela era real mesmo.

— Obrigada. Desculpa não poder sair com você, mas...

— Não, amor, eu vim te buscar... — avisou e se levantou, indo até meu guarda-roupa. Abriu, verificou todas as roupas e fez uma careta. — Você tem alguma coisa que possa ir a um jantar beneficente comigo? Lá vai ter muita gente endinheirada e quero arrancar uns milhões deles.

— Eu tenho vestidos de festa, mas não vou ser boa companhia, Neila. Desculpa.

— Eu vou fazer um escândalo e vou puxar dona Elisa pra me ajudar. — Mencionou sair e a contive.

— Para. — pedi sorrindo e ela segurou meu rosto com as duas mãos.

— Vai tomar um banho e se arruma. Vou tomar um café com a dona Elisa... sem escândalo, tá?

Aquela era a Neila. Ela já estava bem íntima da minha mãe quando saí do banheiro. Dona Elisa já havia tirado foto com ela e servido biscoitos. Meu pai havia chegado e estavam os dois deslumbrados com a mulher.

— Filha, por que não nos disse que era amiga da Neila Medeiros.

Porque eu não era?

— Seu Conrado, eu vou levar a sua filha para um jantar beneficente, tá? — Neila avisou, impedindo-me de responder, e entrou no quarto comigo.

Ela mesma secou o meu cabelo e fez uma maquiagem em mim. Saímos meia hora depois. Meus pais ficaram extasiados, olhando as fotos que tiraram com ela.

Neila adorava conversar, contava muitas histórias e numa delas, contou que a filha dela, de vinte anos, estava morando na Europa.

— É modelo. — disse e me mostrou a foto da menina, linda como a mãe. Até parecia que era filha só dela.

— Esse jantar é de algo da emissora onde você trabalha?

— Ah, não! Eu sou diretora de um instituto que tem sede no Rio, o Anjos de Resgate. É um centro de reciclagem humana. Então bajulamos alguns milionários e ganhamos dinheiro com isso. A gente recebe muitas doações anônimas, mas a cada três meses fazemos um jantar assim. Os leilões geralmente são de obras de arte, carros antigos. Muitas vezes quem doa é quem compra...

— E qual é o sentido disso? — perguntei sorrindo em tom de brincadeira. — Não poderia só doar o dinheiro?

— Esse povo gosta de arrastar sua riqueza na nossa cara... — disse sorrindo.

Passamos no hotel onde ela estava hospedada, e quarenta minutos depois saímos.

— Chegamos, mas depois quero te explicar melhor sobre o instituto... — Estacionou na frente de um luxuoso hotel.

— Nossa! Isso me trouxe lembranças não muito boas... — disse fazendo uma careta e me lembrando dos encontros políticos do Henrique.

— Oh! Eu sinto muito.

— Tudo bem. Não posso evitar as lembranças, não posso impedir o que aconteceu, né?

Ela levantou a minha cabeça, puxando o meu queixo suavemente com o dedo indicador e o polegar, e a olhei. Ela ficou me analisando por uns segundos e falou:

— Isso é verdade. — disse e passou a língua nos lábios. — Vamos entrar.

Aquele hotel, aquelas pessoas, o ambiente, até o cheiro daquele lugar me fazia lembrar do Henrique. Mas eu não podia simplesmente sair dali. Eu precisava enfrentar aquele incômodo.

— Você será a esposa mais linda da festa inteira, meu amor! Todos aqueles caras têm umas mulheres todas acabadas, velhas. — Henrique disse tentando me animar a ir àquele jantar cheio de gente hipócrita e corrupta.

O primeiro encontro com os colegas dele que fui foi até tolerável, mas depois de saber o que eles faziam para fazer projetos superfaturados, para manipular pesquisas, ganhar eleições, eu passei a sentir um imenso nojo daquele mundo.

Segurando a minha mão, ele me conduziu a entrar no grande do hotel de luxo em Fortaleza.

— Grande Domingos! — exclamou ao ver um homem barrigudo, que sorriu. Trocaram um caloroso abraço e ficaram conversando sobre assuntos triviais por pouco tempo.

Quando me cumprimentou em despedida, senti o espesso bigode dele na minha bochecha.

Depois de toda aquela bajulação, Henrique dirigiu até em casa falando mal dos colegas. Eu não costumava comer de fato nesses jantares, sentia como se até a comida fosse suja.

— Érica! — A voz de Neila me tirou das minhas lembranças.

— Oi, desculpa.

— Tudo bem... — disse sorrindo e entramos no local.

Ela fez o mesmo trajeto de cumprimentos e sorrisos que Henrique faria se tivesse interesses pessoais. A diferença era que, pelo que entendi, Neila os bajulava para conseguir doações para a instituição de caridade.

Quando finalmente chegamos à mesa, fomos recebidas por duas mulheres que já estavam esperando há um bom tempo. Uma negra alta, muito bonita e uma ruiva tão linda quanto. Bem diferentes da maioria dos presentes.

— Meninas, desculpem a demora. Essa é Érica... Érica, essas são Andrêina e Shelda, elas fazem parte do conselho do Anjos de Resgate e são donas de uma rede de restaurantes, um dos fornecedores de comida do Anjo.

Eu cumprimentei as duas e sentei no lugar indicado por Neila, que sentou ao meu lado e tocou na minha perna.

— Você me acompanha numa bebida? — sussurrou.

— Sim, obrigada.

Um garçom nos serviu e brindamos. Neila me explicou algumas coisas sobre o instituto. Eu fiquei fascinada com o que ela falava.

— Está vendo aquela menina lá no palco? — Apontou para uma jovem de cabelo louro, curto e repicado. — Ela é a fundadora do Anjos de Resgate. É minha sobrinha. — disse e imagens começaram a surgir em um telão. — Me apresentou esse projeto quando tinha doze anos e me encantei de imediato. Você precisa conhecer pessoalmente.

Eu estava vidrada na imensidão daquele lugar. As imagens perfeitamente editadas já enchiam os olhos. Mesmo deslumbrada com aquele portfolio sendo exibido, notei, por várias vezes, Neila me observando.

Naquele momento eu não sabia, não fazia ideia do que ela pretendia, mas foi a melhor coisa que me aconteceu. Depois de todos aqueles meses de sofrimento, eu poderia amenizar um pouco aquela angústia. A saudade do meu filho me torturaria para sempre, mas vi uma luz boa no fim daquele túnel escuro e úmido.

Saímos do hotel quando o evento terminou. Cumprimentei a todos, parabenizei alguns que lembrei o que arrematou e vi o olhar sorridente de Neila para mim. Eu sorri. Naquele sorriso havia grandes sentimentos. Eu a agradecia.

Quando saímos, vi Shelda abraçada a Andrêina enquanto esperavam seu carro. Neila acenou para o manobrista e chegamos perto delas. Estava bem frio lá fora.

— E então, meus amores, o que acharam? — Neila quis saber.

— Magnífico, como sempre! — Shelda respondeu em um tom animado, e Andrêina aquiesceu.

— Érica, foi um prazer te conhecer. — Foi a vez da ruiva falar.

— O prazer foi meu. Vocês formam um lindo casal. — Fui sincera e recebi olhares simpáticos das duas.

Neila mencionou falar algo, mas no mesmo momento um rapaz uniformizado chamou e nos despedimos.

Neila abriu a porta de seu carro para que eu entrasse. Em seguida, despediu-se dos funcionários do hotel que trabalhavam ali fora e entrou no veículo. De lá, seguimos para o hotel onde ela estava hospedada. Eu estava muito cansada, mas era um cansaço bom.

Notei que ela não tinha intenção de me levar para casa quando entrou no banheiro e saiu usando um robe de seda. Enviei mensagem para a minha mãe e avisei que passaria a noite fora. Neila sorriu quando se aproximou de mim.

— Obrigada.

— Eu que agradeço. Consegui tirar toda a imagem ruim que o Henrique deixou com esse tipo de evento. — Fui sincera, parecia uma substituição de lembranças. — Vocês fazem um ótimo trabalho.

— Sim, fazemos. É nossa forma de fazer desse mundo melhor. — falou olhando nos meus olhos e tocou no meu rosto, acariciou-o com o polegar.

Senti o meu coração acelerar e um calor fora do comum tomar conta de mim quando ela aproximou a boca da minha, puxando-me pela nuca.

O beijo começou tímido. Era novo para mim, eu estava muito nervosa, excitada por todos os acontecimentos do dia, mas senti os seios dela contra os meus quando me apertou, e a minha timidez se foi, tornando aquele beijo lascivo e quente.




Música:

Here Without You - 3 Doors Down

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