2 - Poço

Érica


Depois de ficar completamente sem chão, eu fui resgatada de uma depressão por um anjo. Não estou tentando ser romântica ou piegas. Fui praticamente arrancada do fundo de um poço frio e escuro pela diretora de uma instituição de caridade. Neila Medeiros foi a mão que me apoiou no pior momento da minha vida.

Euestava sentada em um banco, embaixo de uma árvore, no pátio da ala infantil,enquanto a observava toda linda conversando com a fundadora do instituto Anjosde Resgate. Nunca um nome foi tão adequado para um lugar. Lembrei do meupróprio resgate.

Eu estava completamente entregue à tristeza, não queria viver mais, não fazia sentido. Perdi o meu único filho de forma muito cruel. Me vi completamente impotente, não pude sequer ajudar o meu bebê com um transplante. Não era compatível. Movi o mundo para ajudá-lo e mesmo assim ele se foi. Nada tirava da minha cabeça que foi por incompetência minha, então eu merecia morrer também. Ou talvez merecesse definhar, sofrendo por não ter cuidado direito do meu filho.

Todos esses pensamentos depressivos povoavam a minha mente vinte e quatro horas por dia. Voltei a morar com os meus pais, que tentaram me tirar daquela zona de tristeza profunda, mas não conseguiram. Eu só queria ficar no quarto, escuro, de preferência, e calculando quanto eu viveria se ficasse sem comer. Depois de um tempo não conseguia sequer sentir cheiro de comida que ficava enjoada.

Se meus pais discutissem como qualquer casal, eu já via motivos para ser melhor morrer e sair da casa deles para que fossem mais felizes.

Eu sempre fui muito fechada, recebi uma educação rígida demais para os tempos atuais e acho que aquilo danificou a minha autoestima, minha capacidade de socialização, enfim, eu jamais conseguiria sair sozinha daquela zona depressiva.

No dia certo eu acordei com uma briga feia dos meus pais na hora do café da manhã. Eles falavam de várias coisas, mas eu só conseguia pensar que o motivo da briga era o fato de eu estar lá com eles há mais de seis meses, entocada naquele quarto.

— Vou sair daqui. — disse já em lágrimas de novo. — Não vou mais incomodar ninguém.

Fui ao banheiro, tomei um banho, coloquei uma roupa e saí. Nem fui vista por eles, que brigavam na cozinha. Não me lembro de ver os meus pais brigando daquela forma antes.

Andei por uns minutos. Entrei em um café e pedi um puro, sem açúcar. Sentei numa mesa no fundo, não queria ser vista nem observada por ninguém, pois veriam apenas uma casca, sem nada por dentro.

O meu filho chegou à minha mente, com sua inocência e sorriso lindo. Não tive como evitar as lágrimas, mas peguei um guardanapo e as sequei. Passei muito tempo ali, pensando em tudo. Perdi a Júlia, perdi o meu filho, perdi a minha vida completamente. Viver não fazia mais o menor sentido. Mas morrer também não.

Fui puxada para a realidade quando ela sentou à mesa que eu ocupava. Com seu cabelo louro platinado muito curto, olhos azuis com uma leve maquiagem os realçando. Destilando toda a sua altivez e beleza ali, na minha frente.

— Com licença! — pediu, sentando-se.

Eu acenei com um sorriso forçado e voltei a olhar para fora do local.

— Você está bem?

Ela perguntou e a encarei, notando que o local estava quase vazio e não havia necessidade de ela pedir para sentar comigo.

— Sim... — respondi seca.

— Vai soar um pouco clichê, mas eu posso te pagar uma bebida. Um chá ou outro café?

Respirei fundo e a analisei por uns segundos, consegui sentir o cheiro dela.

— Obrigada, mas eu já estava de saída. — Mencionei me levantar, e ela insistiu.

— Meu nome é Neila.

— Oi, Neila... desculpa, mas eu realmente preciso ir.

— Tudo bem! Se quiser eu posso procurar outra mesa. Eu a notei refletindo e chorando e resolvi falar com você. Você é linda, apesar do rosto abatido. Espero que fique bem e tudo se revolva.

Quem aquela mulher pensava que era me invadindo daquele jeito? Eu queria correr dali, odiava ser observada, despida daquela forma. Só queria curtir a minha tristeza em paz. Mas... senti algo estranho. Ao mesmo tempo em que queria sumir, uma espécie de magnetismo me impelia a ficar. Talvez aquele olhar azul hipnotizante que me despia a alma. Não sei... só sei que havia algo naquela mulher, apesar da intromissão, que não permitia que a gente se afastasse dela.

— Obrigada.

— E seu nome, você vai me dizer ou preciso fazer algo para merecer isso?

Eu soltei um sorriso meio nasal.

— Érica. — disse e nos cumprimentamos.

— Adoro esse café com creme daqui. Estou fazendo um trabalho na cidade e sempre venho aqui quando estou em São Paulo... — disse saboreando a bebida e passando a língua no lábio superior.

— Essa é a primeira vez que entro aqui. Mas gostei do café deles...

A Neila era uma jornalista famosa, e eu não sabia quem ela era porque o mundo era desconhecido para mim, não só pela perda do meu filho, mas por tudo, desde que eu nasci. Fui privada de ver TV desde que eu era criança e isso me fez criar certa aversão pelo meio de comunicação.

— Você mora aqui?

— Sim, me mudei há seis meses. Na verdade eu sou daqui, mas morava em Fortaleza.

— Sério? Amo aquela cidade. Sou do Rio.

— Fui lá uma vez. A cidade maravilhosa faz jus ao nome.

— Concordo. Mas e você por que saiu de Fortaleza? Se não quiser responder tudo bem, mas eu vou continuar perguntando, porque sou insistente e sinto que você precisa falar.

— Longa história... — respondi e suspirei, olhei para a janela vendo a movimentação frenética de carros.

— Tenho até meio-dia...

O que ela era? — perguntei-me. — Depois de um tempo de conversa ela parecia minha amiga há anos.

Ela pediu dois drinks de café, eu nem sabia que lá servia aquilo, mas acabei aceitando. Logo as bebidas chegaram. Ela tirou dois canudos de bambu da bolsa e os colocou nos copos.

— Qual é a sua história? — perguntou sorrindo.

Eu sorri e passei a observar aquela mulher. Sofisticada, linda e gentil. Se era do Rio de Janeiro, iria embora logo e nunca mais me veria, então desabafar com ela talvez fosse bom. Ou não. Mas ela se mostrou interessada de verdade e resolvi falar, se ela se cansasse iria embora e eu voltaria a observar os carros em seu fluxo.

— Eu sempre vivi presa por algo ou alguém. Quando pequena eu não podia me expressar como as outras crianças, pois era repreendida pelos meus pais... — falei devagar e a vi ouvir atentamente, sem tirar os olhos de mim nem para pegar um biscoito e colocar na boca. — só saía de casa para ir à escola ou à missa no domingo. Em momento algum eu podia brincar com amigos ou colegas do colégio.

Ponderei por uns segundos tentando evitar que lágrimas saíssem e me envergonhassem diante daquela estranha e engoli saliva.

— Eu me sentia mal, mas como não sabia de nada, aceitava. Isso me tornou tímida demais, reclusa a ponto de evitar pessoas. Eu brincava sozinha. Na adolescência, eu lia muito. Ficava em casa enquanto os outros adolescentes estavam conhecendo o mundo e sua fase. Era a filha perfeita para um casal conservador e religioso como os meus pais.

Naquele momento eu notei o quão me fez mal ter deixado a minha vida passar.

— Infelizmente alguns pais confundem repressão com educação. Tenho certeza que eles não fizeram por mal.

— Acho que não. Eu estudei muito, me formei cedo, com honra. Eu era a careta da escola. No ensino médio era excluída por não fumar nem beber ou usar outras drogas. Eu sonhava em encontrar o homem dos meus sonhos: bonito, gentil, trabalhador... mas isso parecia algo impossível. Saí com dois rapazes na época do ensino médio, mas ambos me decepcionaram logo nos primeiros encontros.

— A gente só se dá conta de que isso é impossível quando somos decepcionadas algumas vezes... — Ela disse sorrindo, talvez tivesse se decepcionado com homens também, apesar de linda demais. Como o Henrique dizia: homem não presta.

— Isso é verdade. Mas eu precisei de algo a mais que apenas uma decepção amorosa... no dia da minha formatura, eu conheci o Henrique, o homem dos seus sonhos. O personagem dos romances que eu lia na solidão do meu quarto. Lindo, barba feita, gentil, cabelos bem penteados. Era convidado de uma colega e me chamou para dançar. Eu sou muito insegura com tudo e principalmente com essa parte. Não sei o que tinha nesse café para eu estar contando tudo isso para você, mas jamais me imaginei fazendo isso com ninguém.

— Érica, às vezes, falar é terapêutico. Não precisa ser um profissional, você só precisa que alguém a ouça. Eu tenho muitos amigos que me ouvem e ainda faço terapia.

Ouvir aquilo me fez questionar mentalmente quais os tipos de problemas que aquela mulher tão perfeita teria. Pela pele, roupa e cheiro, parecia rica, no mínimo.

— Eu nunca tive amigos, nunca conversei sobre nada nem com os meus pais e confesso que estou me abrindo com você porque sei que eu vou embora daqui a pouco e não nos veremos mais.

Ela sorriu. Um sorriso lindo, cheio de brilho. Quem, em sã consciência, foi capaz de fazer aquela mulher sofrer? Era a pergunta que não calava de forma alguma.

— Mas continua, encontrou o homem dos sonhos e aí?

— E aí que dançamos e nos beijamos naquela mesma noite no portão da minha casa. Ele já pediu para conhecer meus pais, encantou a minha mãe na mesma proporção que me encantou, imediatamente. O meu pai demorou um pouco mais para cair de amores por ele...

— Pai é sempre mais duro.

— Sim, precisou de vinte minutos inteiros de conversa e informações valiosas como a tradicional família de advogados e políticos do Henrique.

— Meu Deus! — disse e riu, arrancando um sorriso meu.

— Ele avisou que fazia muito gosto do namoro e já firmou algo que nem existia ainda. Eu tinha acabado de conhecer o homem. Henrique já me pediu em namoro ali mesmo. Tudo lindo, perfeito, conto de fadas. Três meses depois daquela noite estávamos casados e nos mudando para Fortaleza. Parece coisa de 1920, né? Mas foi há sete anos.

— Você estava chorando por quê? — perguntou sem se importar se estava invadindo ou não a minha vida, mas eu já havia contado tanto a ela, que resolvi continuar.

— Eu perdi o meu filho de cinco anos há seis meses. — ela colocou a mão na boca e me olhou com os olhos cheios. — Ele era a razão da minha vida. Mas adoeceu. Lúpus. — Não contive as minhas lágrimas. — Eu fiz de tudo, mas infelizmente meu bebezinho não resistiu.

— Meu Deus, Érica, eu sinto muito. Não devia ter tocado em assunto tão delicado.

— Tudo bem, a minha história não existe sem essa parte, sem o meu filho.

— E o Henrique onde está? Deve ter ficado desolado.

— O Henrique eu matei. — disse e a vi arregalar os olhos, incrédula. — Aquele desgraçado se transformou rápido no homem de todos os meus pesadelos. Criou uma barreira a minha volta, me impediu de atuar na área que eu tanto queria. Estudei para lecionar e ele simplesmente ignorou o meu sonho, como se eu fosse um objeto, propriedade dele.

Consegui notar a ansiedade dela exalando pelos olhos. Naquele momento ela tinha os dedos entrelaçados, enquanto me observava.

— Quando eu finalmente bati o pé por algo que eu queria de verdade, ele me bateu. E o meu céu se transformou em um inferno. Ainda muito ingênua, eu via aquilo como forma de amor, cuidado. Mas ele foi ficando cada vez pior. Me obrigava a fazer sexo com ele quando eu não queria ou depois de me espancar. Até que engravidei. Foi o momento mais feliz da minha vida quando descobri que seria mãe. Tivemos poucos meses de paz. O João era a minha força e minha fraqueza. E o Henrique usou isso para me manipular.

O garçom chegou com mais café alcoólico, e ela sorriu agradecendo. Pediu-me para continuar enquanto sugava a bebida pelo canudo.

— Ele usava o filho de vocês?

— Sim. Quando o João fez dois anos, Henrique extrapolou, me deu uma surra na frente do menino e ameaçou bater nele também, caso eu não acatasse as ordens dele. E foi nesse mesmo dia que eu fugi de casa. Esperei ele sair, como sempre fazia, e fui embora com o João. Fiquei um tempo escondida em uma pousada. Depois procurei a família dele e disse tudo. Fiz ameaças. Eles não queriam uma mancha dessas na família deles e mantiveram o Henrique longe de mim. Eu me separei e comecei a viver a minha vida com o meu filho. Arrumei emprego em uma escola e lá eu conheci a Júlia, uma mulher apaixonante. — Notei o olhar de Neila mudar, o cenho franzido de antes se desfez e ela me olhou com admiração.

— Você ficou com ela? — perguntou entusiasmada parecendo uma adolescente de quinze anos.

— Por três anos. Foi uma paixão que se transformou em amor muito rápido. Eu estava toda quebrada, quase literalmente, e recebi tanto amor que achava que nem merecia. E de uma mulher. Aquele foi o meu divisor de águas. Mas o João adoeceu. Precisou de um transplante de fígado, eu não era compatível e tive que procurar o desgraçado do pai dele.

— Ah, não! — lamentou com tristeza.

— Sim, ele me chantageou. Foi capaz de dizer que só doaria o fígado para o próprio filho se eu reatasse o nosso casamento, então eu não tive escolha. Terminei com a Júlia de qualquer jeito e voltei a morar com ele. — Senti os olhos embaçando novamente e os limpei com o guardanapo. — Eu só queria salvar a vida do meu filho. Me submeti a coisas horríveis. A saudade que eu sentia da Júlia me torturava. Ela, com certeza, pensou coisas terríveis de mim.

Tomei um grande gole do café alcoólico.

— Ele me bateu de novo e fugi de novo. Procurei a Júlia, pois não tinha para onde ir, mas ela estava com outra. Aquilo foi pior que os socos que o Henrique havia me dado, mas eu não a culpava, não naquele momento. Eu a larguei e voltei com o cretino do meu ex abusivo.

— Meu Deus, Érica! Por que não denunciou esse infeliz?

— Eu tinha medo. Medo dele, da família dele, de perder o meu filho, de tudo. Família muito influente. — Respirei fundo. — Eu passei um tempo na casa da Júlia. Ela me recebeu lá mesmo estando namorando outra. Cheguei a pensar em fazer umas loucuras, mas recebi um apoio enorme dela, uma força que só ela conseguia me oferecer. Falei com os meus sogros e voltei para casa, eles cuidaram para que o Henrique não se aproximasse de mim e do filho sem alguém junto e passei a cuidar do João com a ajuda da Júlia, que não me abandonou em momento algum. Ela amava o João como se fosse nosso. A namorada terminou com ela e nem assim ela saiu do meu lado, embora não tivesse mais interesse em mim como mulher, já que estava completamente apaixonada pela outra. Mas eu não podia julgá-la. Enfim... o João piorou, começou a recusar o fígado, os rins pararam de funcionar e ele não resistiu.

Cobri o meu rosto com as duas mãos e senti a de Neila sobre a minha em apoio. Depois de me recompor, eu continuei.

— O Henrique descobriu sobre o meu relacionamento com a Júlia e a sequestrou, a levou para a minha casa. Lá despejou todo o ódio que ele sentia, queria matar nós duas. Me bateu até eu desmaiar e só não me matou porque a Júlia usou uma escultura para acertá-lo na cabeça. Não fosse isso, estaríamos as duas mortas agora. Mesmo machucado e sem a arma, que havia caído no chão quando foi golpeado, ele foi para cima dela e a espancou também.

Tomei o último gole do café e passei as mãos no rosto.

— Eu peguei a arma e atirei nele. Vi a Júlia toda machucada no chão, inconsciente e parei de respirar até sentir os batimentos cardíacos dela.

— Estou completamente ofegante. Érica, que história!

— Pois é. Eu fui julgada, absolvida e voltei para cá.

— Me dá teu telefone, eu saio da emissora as quatro e te busco.

Aquilo foi surpreendente. O que aquela mulher queria comigo ainda? Eu já havia contado tudo. Agora apenas sumiríamos uma da vida da outra.



Música:

I Need Some Sleep - Eels

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