Amor Afogado


"Olha: o amor pulou o muro/ o amor subiu na árvore/ em tempo de se estrepar./ Pronto, o amor se estrepou./ Daqui estou vendo o sangue/ que corre do corpo andrógino./ Essa ferida, meu bem,/ às vezes não sara nunca,/ às vezes sara amanhã." (Carlos Drummond de Andrade - O amor Bate na Aorta)

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— Henry, meu filho, não há nada de errado com você. Se acostume, pois vamos passar mais de um ano aqui nesse país — minha mãe me dizia isso sempre, era terrível escutar isso toda vez que eu era chamado de estranho na escola.

Ninguém melhor que eu para saber o que era ser um estranho. Após meus pais decidirem fazer um trabalho voluntário no Brasil, precisei me despedir dos meus amigos em Londres para morar em um país totalmente desconhecido. Aos quinze anos, eu já tinha amizades consolidadas e até uma paixonite escolar por Margot, uma colega de classe, mas deixei tudo para trás com lágrimas nos olhos e um sentimento bem ruim em relação aos meus pais.

Ao chegar no Brasil, me deparei com uma cultura totalmente diferente, um idioma igualmente estranho e muitos empecilhos para a felicidade. Na idade ápice da adolescência, tentei resistir de todas as maneiras, mas seus pais foram impositivos e não quiseram deixar o filho com nenhum tio ou outros parentes, sob o pretexto de que a viagem seria uma experiência singular. Mal sabiam eles que estava corretos.

A escola era um drama a parte, como eu poderia estudar se não sabia o básico do idioma? Dessa maneira, tinha aulas normais pela manhã e aulas particulares de português em quase toda a tarde, todos os dias. Era um tédio, eu não entendia a maior parte do conteúdo passado na sala de aula, pelo menos por uns dois meses, até conseguir falar o básico do básico. Porém, havia um lado bom, uma das garotas da minha sala não tirava os olhos de mim e eu devolvia os flertes, já que sempre fui um galanteador.

Certo dia, tomamos coragem e conversamos um com o outro, meio desajeitados nas palavras, ela arriscava um pouco de inglês e eu me esforçava pelo português. A expectativa era de acontecer alguns beijos, mas uma amizade surgiu naturalmente, sem dar espaço para outros tipos de envolvimento, o que foi muito bom para mim, que me sentia perdido naquela escola.

Os recreios agora estavam mais leves, pois eu tinha uma amiga com quem dividir risadas. Ela até me apresentou para outros amigos, a escola estava se tornando um lugar melhor. Com um novo grupo de amigos, ficou muito mais fácil aprender a falar português, havia várias pessoas com quem treinar. Com pouco mais de um mês, já conseguia entender e participar de uma conversa, mesmo que ainda falasse com o meu sotaque fofo, como diziam as minhas amigas.

Como todo adolescente, odiava qualquer atividade que envolvesse meus pais, mas eu era obrigado a ir ajudar no trabalho voluntário todos os sábados. A comunidade que visitávamos para entregar alimentos era muito pobre, então eu me comovia com a situação daquelas pessoas, logo esquecia que estava sendo obrigado e ajudava do jeito que podia. Às vezes era necessário assentar alguns tijolos para construir um barraco ou distribuir remédios, pois havia um surto de malária e dengue naquela época, eu participava sem reclamar, o que conseguia era feito. Até me divertia com alguns outros garotos, jogando futebol ou flertando com as meninas que passavam.

Foi num desses sábados que fui convidado, por um professor voluntário, a fazer parte das aulas de teatro promovidas na escola da comunidade. Meus pais ficaram receosos no início, eram daqueles hipócritas que se dizem empáticos, mas são cheios de preconceito, e não queriam o filho deles sozinho misturado com "aquele tipo de gente", era assim que falavam quando não tinha ninguém por perto. Eu nunca me importei, era livre de preconceitos sociais, então os convenci de que não haveria problema, seria uma ótima oportunidade para me aproximar das pessoas e me enturmar.

Eu nunca havia pensado em fazer aulas de teatro, gostava de matemática e, na minha ideia, não tinha nada a ver uma coisa com a outra. Meu sonho era ser astronauta, trabalhar na NASA e viajar pelo espaço, bem longe dos meus pais. Apesar disso, resolvi ir às aulas, seria um bom pretexto para sair a noite, beijar umas garotas, conseguir perder a virgindade. Esse último assunto estava me incomodando, minha impressão era que os brasileiros são mais precoces e eu estava ficando atrasado em relação aos amigos.

O primeiro dia de aula de teatro foi bem interessante, pois houve uma atividade em grupo, na qual as pessoas tinham que formar duplas e encontrar características comuns com o seu par. Me diverti muito, descobrindo muita coisa da cultura daquele lugar, a cada cinco minutos os pares trocavam, haviam muitas risadas pela grande sala. Meu último par foi um garoto alto e bem magro, com a pele bem bronzeada.

— Olá, me chamo Daniel, mas pode me chamar de Dan — se apresentou enquanto abria um grande sorriso.

— Meu nome é Henry, sem apelido mesmo — rimos um pouco até que me peguei fitando os olhos negros do garoto. Ficamos algum tempo nos encarando, sem falar nada, apenas admirando a beleza um do outro, secretamente. O apito tocou, a atividade havia acabado.

O restante da aula foi tenso, em vários momentos nossos olhares se cruzavam, como Dan era um pouco mais alto, conseguia disfarçar melhor quando percebia que estava sendo observado ou que havia sido descoberto me encarando. Eu não compreendia o que estava acontecendo, mas era involuntário procurar aqueles olhos negros, algo chamou minha atenção. A atividade agora era uma dança, com o objetivo de soltar o corpo, melhorar a expressão corporal, mas eu não conseguia me movimentar com naturalidade, principalmente quando tinha que andar pela sala e dava de frente com Dan. Foi um alívio quando a aula acabou e eu pude voltar para casa.

No caminho de volta, nem vi o tempo passar, apenas pensava no rapaz da aula de teatro. Enquanto observava a cidade através da janela do ônibus coletivo, tentava entender qual o motivo de querer prestar atenção naquele cara, mas não encontrava razão aparente. Naquela noite, no banho, me senti mais excitado do que o normal, depois jantei calado e logo fui para a cama.

Acordei cedo e fui correndo tomar meu café, já avisei meus pais, em inglês mesmo, que naquele dia teria uma aula extra de teatro, o que era mentira. A verdade é que os amigos da escola iriam assistir um filme, na casa de um deles, e as novas aulas eram o pretexto perfeito. Aquele poderia ser o meu dia de sorte, pois já tinha sido informado que uma das garotas convidadas estava muito afim dele.

O dia passou devagar, estava ansioso para ir até a casa do meu colega e beijar a garota chamada Jéssica, tudo havia sido confirmado durante o recreio. As aulas de matemática eram as que eu mais entendia, números são números em qualquer país, eu adorava fazer contas e resolver equações. Porém, até essas aulas estavam entediantes perto do que poderia acontecer naquela noite.

Chegando na casa de Jorge, percebi que não havia ninguém, mas resolvi chamar mesmo assim. Um menino com cara de raiva saiu pela porta e disse que não teria mais filme, pois seus pais haviam chegado antes do combinado. Assenti e saí decepcionado, não queria voltar para casa, para onde iria? Quando dei por mim, já estava na entrada da comunidade que, por estar a noite, era um tanto perigosa.

— Ei, você tá maluco? O que faz aqui uma hora dessas? — Estremeci ao ouvir a voz de Dan.

— Eu... eu... nada, acho melhor ir embora — dei meia-volta e vi o outro garoto sem camisa, mas desviei o olhar envergonhado.

— Ir pra onde? — O garoto olhava a sua volta, parecia ter visto algo estranho, então me puxou pela manga da camiseta — Vamos ali em casa até tudo se acalmar.

— Como assim? O que tá acontecendo?

— Só vem, eu te explico depois.

Ao chegarem no barraco simples, percebi que o outro garoto morava sozinho, só havia uma cama de solteiro no local. Dan explicou que, apesar de ter quinze anos, seus pais moravam ali perto e que ele precisava se virar para viver, fazia aulas de teatro quando podia, mas que nem sempre dava certo, pois ele arrumava alguns bicos numa borracharia ali perto. Informou, também, que alguns tiros tinham sido disparados há pouco tempo e que a polícia estava investigando, sendo melhor eles ficarem ali até que tudo fosse resolvido.

Sem opções, concordei e começamos a conversar, mesmo tímidos. Falamos sobre muitas coisas, principalmente sobre a diferença entre nossos países, cidades, bairros. De vez em quando, eu percebia Dan reparando no meu rosto e eu ficava com as bochechas coradas e o olhava disfarçadamente. Eu já não conseguia mais ficar ali, sentia uma tensão permanente, mas eu não entendia. Ou não queria entender? Será possível? Mas ele é um garoto...

Passaram-se dois dias, já era sexta-feira, dia de aula de teatro, mas eu não queria ir, queria evitar os pensamentos sobre o garoto dos olhos negros. Não conseguia tirá-lo da cabeça, toda hora me pegava relembrando suas palavras sobre como ele gostava de atuar, como gostaria de ser um ator famoso, fazer filmes para o cinema. Decidi que iria, mesmo sabendo que Dan estaria lá, era certeza que ele iria, pois também deveria estar com a mesma... curiosidade.

Ao chegar no local da aula nos encontramos e nos cumprimentamos, mas mantemos uma certa distância, ambos queríamos respeitar o espaço de cada um. Ao final, os integrantes da aula me chamaram para dar uma volta, estava muito quente e eles iriam tomar um sorvete. A noite já havia chegado, mas aceitei o convite, saímos do local para uma pequena sorveteria que tinha ali perto e ficamos por lá até quase oito horas.

— O pessoal já está indo embora, você quer dar uma volta? — Dan perguntou, sem jeito.

— Não sei se é uma boa ideia — ficou um pouco apreensivo.

— Eu... queria te mostrar um lugar, vem comigo?

— Tudo bem, mas não podemos demorar muito — eu nunca entendi o motivo de ter aceitado aquele convite, só sabia que foi mais forte que eu. Quando o braço de Dan passou pelo meu ombro, senti uma estranha sensação de segurança.

Não demorou mais que meia-hora para que chegássemos no local. Um lago, afastado da movimentação, exibia o reflexo das estrelas em sua superfície. A lua brilhava forte no céu limpo, o calor estava nos fazia suar. Ou era algo a mais? Rodei os olhos pela paisagem até que vi Dan tirando suas roupas, primeiro a camiseta, depois a bermuda e depois a cueca. Vi as partes íntimas do garoto e me senti embaraçado, eu queria desviar o olhar ao mesmo tempo que queria observar os detalhes. Eu já havia visto outros pênis antes, nas revistas pornográficas do meu pai, mas nunca assim, tão de perto. Dan entrou na água vagarosamente, parecia querer sentir cada centímetro do seu corpo adentrando o frescor da água.

Fiquei olhando sem reação, até que fui chamado para dentro da água. Meu corpo tremia como nunca aconteceu antes, o que eu estava sentindo? Sem pensar muito, deixando a curiosidade falar mais alto, tirei minhas roupas e fui fazer companhia ao jovem que havia acabado de dar um mergulho. Quando Dan emergiu, pude perceber ele observando os poucos pelos crescendo no meu peito, bem fininhos, fazendo um caminho até embaixo, senti um arrepio na nuca e mergulhei.

Após alguns minutos nos refrescando e nos entreolhando, sucumbimos à curiosidade e ao desejo, nos beijamos como se nunca tivéssemos feito aquilo antes. A água nem parecia refrescar mais, o calor subindo junto com o arrepio na espinha, a sensação diferente que eu sentia era inusitadamente boa. Quando senti que algo na parte baixa do meu corpo estava criando vida abaixo da água, me assustei e me afastei.

Fui o primeiro a sair da água e vestir roupas, me sentindo muito envergonhado, confuso e sem saber o que fazer. No caminho de volta quase não houve conversa, apenas uma ou duas palavras trocadas, não sabíamos o que falar. Cheguei em casa e nem prestei atenção na bronca que meus pais me deram por chegar tarde. Com um sorriso bobo, deitei na cama e adormeci com uma mão tocando meus lábios e a outra dentro da cueca úmida.

No outro dia, levantei da cama num pulo, nem tomei café da manhã, queria que o dia passasse rápido, queria muito rever o primeiro garoto que beijei. Apesar de confuso sobre minha sexualidade, eu era ávido por novas experiências, a ideia se naturalizou rapidamente e eu entendi que estava tudo bem gostar de garotos. No entanto, escolhi não contar aos meus pais sobre o ocorrido na noite anterior, eu sabia que a novidade não seria muito bem recebida.

Dan estava terminando de fazer um café quando cheguei em seu barraco, com o sol já se pondo. Sem dizer nenhuma palavra, nos grudamos em beijos e carinhos, esquecemos a existência do resto do mundo. E foi ali mesmo que a coisa mais mágica aconteceu: eu perdi minha virgindade. Foi algo tão intenso que eu jamais esqueceria, pelo resto da vida. Com os corpos suados, nos deitamos lado a lado, não conseguíamos esboçar nenhuma reação a não ser retomar o fôlego e sorrir. Ficaram daquele jeito um bom tempo, assimilando o que tinha acontecido.

Uma paixão nasceu. Os dias foram se passando e não conseguíamos mais ficar separados. Começamos a nos dedicar de verdade nas aulas de teatro e, sempre após, nos encontrávamos para nos amar escondido. Declarações de amor, carinhos e beijos eram recorrentes nesses encontros, mas sempre escondido, ninguém poderia saber.

— Não podemos deixar ninguém descobrir, as pessoas da comunidade não entenderiam, já sofro por fazer aulas de teatro e ser chamado de "veado", pensa o que poderiam fazer se descobrissem sobre nós — Dan revelou sua preocupação lançando um olhar triste para mim.

— Eu entendo, meus pais nunca aceitariam também. Gostaria que o amor fosse livre — suspirei e me aconcheguei no abraço.

Tardes amorosas se passavam, noite calorosas no lago sob as estrelas eram cenários de amassos quentes e loucuras adolescentes. O Brasil havia se tornado um lugar especial para mim, aquele lago me entregou ótimas memórias, eu nunca esqueceria aquelas águas calmas. Dan fez com que a paixão pela atuação despertasse em mim e sonhávamos juntos em viajar para Hollywood e sermos famosos.

Tudo estava indo muito bem, até que certo dia, ao chegar na aula de teatro, percebi que meu namorado não estava presente. Passei todo o período preocupado e saí mais cedo para verificar o que aconteceu. Perguntei um e outro sobre Dan e fui parar na borracharia onde ele fazia seus bicos. O garoto explicou que contou aos seus pais sobre sua sexualidade e foi rechaçado, sendo obrigado a deixar as aulas de teatro e arrumar um emprego fixo na borracharia.

Não entendi muito bem aquela atitude, mas Dan explicou que não aguentava mais guardar isso, que estava muito feliz e isso não era errado. Porém, as coisas saíram diferente do imaginado e, agora, todo mundo olhava torto para ele. A pressão era muito grande, qualquer atitude era motivo de chacota, o menino não estava aguentando mais. Dias de angústia começaram a ser comuns, assim como nossos desencontros, cada vez mais frequentes.

Algumas semanas se passaram, já faziam uns três dias que não nos víamos, quando cheguei na comunidade e percebi um alvoroço, uma multidão. Não acreditei quando soube que Dan tinha tirado sua própria vida, pois não conseguiu suportar o preconceito e a pressão de todos. Não entendi o motivo da tristeza das pessoas, já que foram elas que causaram aquilo. Fiquei desolado, saí correndo dali sem direção, chegando no lago onde tudo aconteceu pela primeira vez.

Fui até uma árvore em que tínhamos gravado as iniciais "D&H" e me lembrei do momento em que estivemos ali pela primeira vez. Com os olhos cheios de lágrimas, percebi que um pedaço de papel estava visível fora de um buraco na árvore. O papel era um bilhete de Dan: "Não se esqueça nunca dos seus sonhos, não deixe que as pessoas os destruam, me desculpe fazer isso com você, mas eu não pude suportar. Siga em frente, não olhe para trás, deixe apenas as nossas boas lembranças, eu te amo muito e não quero que sofra junto comigo. O meu sofrimento precisa terminar agora, até breve. Dan".

Me encostei em uma grande pedra e chorei como nunca, as lágrimas escorriam e eu praguejava as pessoas, o preconceito, a discriminação. Eu não conseguia entender porque as pessoas não aceitavam o amor. O que tinha de tão errado? Qual era o problema? Ficou muito tempo ali, observando o lugar, a água calma do lago, os pássaros voando livremente. Meu amor estava afogado, todos os meus sentimentos foram levados para o fundo daquelas águas, junto com as minhas lágrimas.

Foi difícil aceitar a morte do meu amado, apesar de nosso amor ter durado pouco tempo, foi muito intenso. Eu nem sei se consegui aceitar, mesmo depois de tanto tempo. O primeiro homem que beijei, a pessoa com quem perdi a virgindade, não suportou a pressão, não aguentou viver sofrendo debaixo do preconceito doentio que as pessoas têm em relação ao que não se encaixa na norma. Durante dias eu fiquei fechado no meu quarto, meus pais não sabiam o motivo de eu estar daquele jeito, guardei segredo, receando que eles pudessem ter qualquer reação parecida. Algumas semanas depois, voltei para a vida normal, mesmo sentindo falta do Dan, a vida seguia e eu precisava buscar os meus objetivos.

Voltei às aulas de teatro e fiz um juramento secreto: iria me dedicar, me tornar um ator famoso e honrar os sonhos que um dia tive com o menino da pele bronzeada pela labuta. Sua morte não seria inválida, não seria em vão. Decidi nunca me revelar para ninguém, o medo de que as pessoas descobrissem minha sexualidade era muito grande, percebi o quanto isso poderia afetar minha vida. Aprendi que, mesmo não sendo errado, era algo a se manter escondido, pelo meu próprio bem. Mal sabia eu que, no futuro, conheceria alguém tão especial que me faria mudar de ideia.

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