Sol e chuva, casamento da raposa.
América
Estou há horas no carro digirindo de Austin para Waco com a finalidade de ver os meus pais. O clima não está nada bom, desde que saí da faculdade hoje pela manhã a chuva não parou um segundo sequer. Já não bastava eu sair atrasada por motivos externos, ainda vinha essa chuva bendita.
Coloco o som de Bon Jovi que tenta brigar com o barulho da chuva que cai no meu impala 64 azul turquesa e vou cantando no caminho. Depois de uma eternidade, chego na entrada da cidade, já podia sentir as minhas pernas com saudade de se esticarem e movimentarem-se.
Paro pois há um carro parado logo à frente, aqui não tem semáforo então não há motivos para tal. Buzino várias vezes para chamar a atenção do motorista e nada. Desço do carro com convicção e paro ao lado do homem que dirige um Ford Pampa 88.
- Com licença, poderia tirar essa lata velha para eu passar ?
O homem me olhou, tirou o boné da cabeça, sorriu e disse:
- Claro docinho, se você tirar esses trinta carros que estão logo à frente.
Olhei para frente e quase não enxergo a luz da esperança, havia um enorme engarrafamento ali e com certeza não iria abrir passagem tão cedo. Olhei ao redor e o Sol bateu nos carros deixando-me cega. Voltar pianinha para o meu carro era a decisão mais sensata.
Desligo-o, deito o banco e fico lá sem ter o que fazer. Peguei o meu celular e mandei uma mensagem para a Lana:
Vou chegar atrasada, pede para a mamãe guardar comida para mim.
Ela não iria responder, nunca responde, se recusava a colocar crédito no celular para não ficar recebendo mensagem de operadora.
Cochilei umas três vezes ali naquele Sol escaldante. Interessante, estava chovendo para burro e agora vem esse Sol de matar. Essa mudança repentina de tempo pode adoecer muita gente.
Finalmente a porcaria da estrada é liberada, bebo o último gole de água e olho no relógio 11:45 p.m. se eu fosse rápida o suficiente conseguiria chegar em casa antes de devorassem a comida.
Cheguei no rancho e desci para abri a porteira. Assim que pisei o pé no chão ele atolou na lama e eu caí de cara. Levantei a cabeça e respirei para pegar o fôlego que o chão tinha me tirado. A minha calça flare vermelha estava abarrotada de lama, junto com a minha blusa cropped branca de crochê. Isso América, se arruma toda e dá de cara com a lama, era por isso que eu vivia de moletom. Deixei Carla me convencer de que eu deveria usar roupas mais femininas e dá nisso.
Nem entrei no carro, pulei a porteira e fui em direção ao casarão. De longe o Donatello me avistou e veio correndo até mim.
- Ei garoto, vem cá bebê. - eu disse chamando-o.
Ele me olhou, me cheirou e saiu correndo. Esse cachorro sempre ri da minha cara.
- Mas o que houve com você ? - minha mãe se espanta ao me ver naquele estado.
- Comi lama. - falei e revirei os olhos - Me dá um abraço.
- Não não. - ela falou dando passos para trás - Você irá tomar um banho no banheiro de fora.
- Mas o quê ?
- Sim, América. Arrumei a casa hoje, não vou deixar que você a deixe imunda.
- Certo chefia. - bati continência e fui em direção ao banheiro.
A cada minuto que passava, a lama secava e ficava mais difícil de andar. Entrei naquele banheiro improvisado onde eu já havia levado vários sustos de sapos cururus que apareciam. Hoje em dia com essa apatia tudo se tornou mais preto no branco.
Deixo a água cair sobre os meus cabelos e retirar toda aquela sujeira do meu corpo. Minha mãe trouxe uma camisa e um short do meu pai para mim. Ela me conhecia o suficiente para saber que eu não vestiria as roupas da minha irmã.
Pego a blusa do Ramones e um short preto, visto e saio do banheiro em direção à casa.
Quando chego na sala de jantar, eles estão almoçando junto com o pastor Franklin.
- América, quanto tempo! - o pastor disse e todos olharam para mim.
Minha irmã se virou, me viu com aquela roupa e caiu na risada.
- Olá gótica. - ela disse e riu, eu lhe retribui uma língua.
- Eu acho que ficou muito estilosa. - meu pai comentou e eu me sentei perto dele.
Coloquei a maior quantidade de comida que cabia no prato e comecei a comer, estava faminta.
- Como vai a faculdade, América ? - minha mãe perguntou.
Eu pensei em dizer que ela não vai à lugar algum, mas não iria falar isso na frente de todos.
- Bem, eu estou me adaptando cada vez mais. - um sorriso forçado.
- A Lana passou pra medicina veterinária. - meu pai disse
- Mesmo? Legal. - eu falei.
- Poderia fingir mais entusiasmo. - Lana criticou.
- Tanto faz. - dou de ombros e continuo a comer.
Conversamos bastante sobre coisas aleatórias e nesse meio tempo fiquei sabendo que a Lana irá morar comigo na fraternidade Broken, a filha do pastor também passou para a faculdade. Parece que a garota estava realmente saindo do campo.
- Bom, eu acabei. - falo e levanto da mesa. - Onde está a Mel, pai ?
- No estábulo meu amor. - ele disse e eu saí.
Quando me aproximei senti aquele cheiro tão familiar, inspirei fundo e me aproximei lentamente. Era bom estar no rancho, em Austin tudo é repleto de carros e buzinas, mal dá para ver as estrelas, fora o cheiro ruim.
Ao me aproximar eu vi o Josh alisando o garanhão, Hush. Fiquei ali encostada em um banco observando-o conversar com o cavalo. Lembro-me que foi nesse estábulo que nos beijamos pela primeira vez quando tínhamos doze anos. Também foi aqui que terminamos quando eu descobri que ele engravidou a minha "melhor" amiga, a Amara.
Nesse dia eu peguei o dodge charger 1970 do meu pai e saí dirigindo com algumas garrafas de cerveja na mão. Começou a chover do nada e a estrada ficou escorregadia, perdi a direção e acabei batendo em uma árvore, ao invés de sair eu dei ré e acelerei com o carro todo destruído e caí no rio.
Quando acordei no hospital eu não estava mais triste, feliz ou preocupada. O médico disse que quando o meu cérebro ficou sem ar, o meu sistema límbico foi afetado e isso me impede de compreender a maioria das emoções.
- Ei! - Josh está na minha frente estalando os dedos para mim. - Estava viajando de novo ?
- Sim, desculpa. - falei e sorri.
- Já viu a Mel ? Ela está linda.
- O Hush também. Ele vai competir esse ano ?
- Não, eu estava passeando com ele e parece que ele se machucou, não quero que ele se sinta obrigado a competir comigo.
- Entendo.
- Vamos estudar no mesmo lugar agora... - ele disse e me olhou com seus olhos verdes.
- Passou para qual curso ?
- Engenharia da computação.
- Parabéns. E a Amara?
- Moda. - ele disse e sorriu orgulhoso.
- Tudo a ver vocês dois.
- Não estamos mais juntos.
- Que pena, fico triste por isso.
- Não fica nada. - ele disse e cutucou a minha barriga
- E quanto ao bebê? - perguntei rindo.
- Ela perdeu...
- Nossa.
- Pois é, essas coisas acontecem.
- Sim.
- Acha que vamos nos ver na faculdade ?
- Creio que sim, não é tãaaaaao grande. - falei e sorri.
- Fico feliz por isso.
- Sim.
- Deu a minha hora, a gente se vê, América.
- Sim. Adeus Josh.
Fui até a Mel e comecei a escovar a sua crina, ela era tão linda e tão forte quanto eu me lembrava.
- Você é linda, sabia ?
- Ainda fala com animais? - Lana chega por trás de mim.
- Eu sempre falarei. - respondi sorrindo.
Ela sentou-se no banco e ficou olhando enquanto eu escovava a crina da Mel. Mel era da raça clydestale, a intensidade do seu amor por nós sempre me admirava. Às vezes quando as coisas estavam ruins na faculdade, eu apenas corria para o rancho e abraçava a Mel.
Passei por trás da Lana para pegar a outra escova e a vi mexendo no celular e suspirando.
- Que foi ? - perguntei atrás dela fazendo ela derrubar o celular sobre as pernas.
- Não me assusta não.
- Desculpa. - falei dando meio sorriso. - O que houve ?
- Conheci um cara no clube de música.
- Hmm, um cara é? Como ele é?
- Ele é lindo, nós nos beijamos uma vez. - ela falou com um brilho nos olhos.
- Ah tá, só isso?
- Você poderia soar mais animada né.
- Desculpa, mas qual o motivo desses suspiros? - perguntei enquanto tirava os pelos da escova da Mel.
- Eu o achei no facebook, mas não sei se devo mandar solicitação.
- Me dá aqui. - passei por ela e tomei o celular.
O que eu vi naquela tela me deixou sem palavras literalmente. Eu reconheceria em qualquer lugar aquele sorriso de lado, os olhos azuis penetrantes e aquelas covinhas que se formavam quando os lábios dele se curvavam. Esses lábios, ainda podia sentir o gosto e o hálito de menta que mesmo depois de algumas cervejas, ainda estava ali. Seu nome: Christian Dale.
- O que vai fazer ? - Lana perguntou se levantando e me tirando daquele transe.
- Vou mandar a solicitação. - falei e teclei; devolvi o celular à Lana e ela me olhou com os olhos estreitos.
- Você é louca. - ouvimos um bip e Lana arregalou os olhos. - Ele aceitou e já me chamou no chat.
- Ah que ótimo, aproveita. - falei e me virei para voltar onde Mel estava.
A foto do Christian ficava na minha cabeça. Qual a probabilidade de dormir com o mesmo cara que beijou a sua irmã ? Acredito que ele também não esperava isso. Tomara que eu não o veja novamente, preciso evitar embalos.
Montei na Mel e comecei a cavalgar com ela, fui até o outro lado do rancho, paramos, bebemos água e voltamos trotando. Quando paramos em frente à Lana eu ouvi um click e ignorei.
Desci da égua e coloquei-a de volta em seu lugar. Voltei para a Lana e ela estava fazendo posições estranhas para tirar selfies.
- Já tirou as trezentas fotos ? - perguntei provocando-a.
- Haha. Engraçadinha você. Eu mandei uma foto sua para ele.
- Quem deu autorização ? - perguntei
- Coloquei na câmara traseira e você estava linda montando na mel.
- Não dei autorização de você ficar enviando fotos minhas para estranhos.
- Calma, foi só uma foto. - ouvimos um bip - Ele respondeu.
Christian diz:
Sua irmã monta muito bem, adoraria vê-la montando novamente.
- Ele elogiou você. - Lana disse e sorriu.
- Tá me zoando. - falei e saí dali.
Eu sabia exatamente qual era o sentido que o Christian usou e o que ele quis dizer com "montar". É exatamente por isso que eu não me relaciono com ninguém.
Ao entrar em casa encontro minha mãe conversando com o pastor na sala, aceno e subo as escadas em direção ao quarto de jogos do pai. Do corredor dá para ouvir que ele está no karaokê cantando uma música do Guns n' Roses.
Abro a porta e me dou com aquela cena, começo a rir e ele olha para mim me chamando para cantar, eu nego com a cabeça e ele continua cantando.
- Gostou do meu show ? - ele pegunta guardando microfone.
- Sim, bem melhor que o Axl. - falo e sento na poltrona de massagem.
- Sobre o que quer conversar ? - ele pergunta e liga a poltrona.
- O que o pastor faz aqui ? - pergunto me afundando naquela maravilha.
- Estamos resolvendo algumas coisas do rancho.
- Está difícil de manter ? - pergunto e ele acena com a cabeça.
- Tem uma empresa querendo comprá-lo, mas não sei não.
- Se ao menos eu já estivesse estagiando.
- Não se preocupe com isso.
- Não estou. - falo e fecho os olhos.
- Você parece uma idosa.
- Shii.
- Amo você, América.
- Também te amo pai.
- Queria que as circunstâncias em que falasse isso fossem diferentes.
- Eu só não consigo entender, mas o meu peito fica apertado.
- Eu sei bebê. O que a nova psicóloga disse ?
- Ela disse a mesma coisa das outras: que eu tenho sorte, mas também falou que iremos começar um tratamento novo.
- Espero que esse dê certo.
- É, eu também.
Ou não.
♣️
Quando chego na faculdade domingo a noite ouço o som que vem da fraternidade Ayko, esses caras realmente não cansam de nada. Estacionei no local de sempre e fui até o prédio onde estava alojada; a fraternidade Broken.
Subi às escadas até o meu quarto e a porta estava fechada, bati uma, duas, três vezes e nada. Chutei a porta e a fechadura arrebentou fazendo com que a porta batesse na parede causando um estrondo. Entrei no quarto escuro e apertei o interruptor.
Carla estava dormindo tranquilamente em sua cama, eu havia esquecido que ela tem o sono de pedra. Coloquei a porta de volta no lugar, mas não fechou, puxei um puf e encostei para que ela não abrisse. Toquei no pé de Carla fazendo cócegas e ela pulou.
- Mas que diabos? - ela acordou espantada.
- Seja bem vinda ao mundo. - falei e ri.
- Você voltou. - ela disse o óbvio. - Como foi com a família ?
- Foi normal.
- Quero detalhes, América.
- Ok, minha irmã irá ficar conosco.
- O quê? Estou dormindo. - ela falou e deitou novamente como se estivesse entrando em coma.
- Deixa disso vai, ela não tem onde ficar.
- E aqui não tem espaço.
- É só a gente tirar esse closet gigante e comprar um menor.
- Não!
- Dá pra gente se perder aí dentro. - falei e ela revirou os olhos.
- Por pouco tempo. - ela disse e eu dei um sorriso.
Ela levantou, bebeu um pouco de água e foi até a porta que exibia uma frecha de luz. Sua tentativa de empurrar e fechar a porta foi em vão.
- O que houve com a porta ?
- Boa noite. - falei e deitei.
- AMÉRICA!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top