2 - Policial gatinho e o enquadro na escola da Rua 7

Desde pequeno, Levi Kim era considerado um prodígio.

Seus pais vieram ainda muito jovens da Coreia do Sul, quando o país não era tão desenvolvido como é hoje. Se conheceram no Brasil mesmo, em um clube de encontros de jovens sul coreanos e, na primeira conversa, conquistaram o coração um do outro. Assim, o relacionamento cresceu rápido, como uma comédia romântica de Hugh Grant e Drew Barrymore dos anos 90.

Ambos eram a exceção à regra de que pessoas iguais brigam como loucos. Ambos eram metódicos, analíticos e suas regras e planejamentos davam forma aos seus mundos. Planejaram todo o namoro e ele saiu conforme os planos. Planejaram um casamento tranquilo e assim o fizeram. Até a quantidade de filhos e os sexos deles, milagrosamente, acertaram. Dois homens e uma garota.

O que estragou todo o planejamento dos Kim foi o filho do meio.

Daniel, o filho mais velho, seguiu os planos dos pais. Com 26 anos de idade, era um advogado bem sucedido, trabalhando em um grande escritório na Avenida Paulista. Luana, que acabara de fazer 18, passou em medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro e havia se mudado há pouco tempo para lá.

Os planos dos Kim para Levi era Engenharia. Assim completariam a Trindade do Sucesso em seus filhos: um advogado, um engenheiro e uma médica. E, por muito tempo, Levi considerou a opinião dos pais, ao ponto de ingressar no curso de Engenharia Civil na PUC. Mas, desde quando brincava de polícia e ladrão com os filhos dos amigos de seus pais, Levi Kim mantinha incubado em si um sonho diferente. Algo que era e não era clichê. Algo que estressou seus pais ao ponto de ser expulso de casa.

O pai de Levi enlouqueceu quando ele deu as três notícias de uma vez:

"Passei no concurso da PM."

"A Academia começa depois do ano novo."

"Vou precisar trancar a faculdade, foi mal."

Não que ser policial fosse ruim. Era melhor do que ser servente ou frentista, de acordo com as palavras do pai dele. Mas era jogar quatro malditos semestres pagos de engenharia, fazer a família passar vergonha diante dos amigos e se arriscar em um emprego de formação de ensino médio quando ele poderia se formar e ganhar muito mais. Tudo isso, também, de acordo com as palavras de seu pai.

Mas, o estopim para ser expulso de casa foi Levi explodindo.

"Eu tô cansado! Tô cansado de vocês controlando minha profissão, minha vida, com quem ando... Até com quem namoro! Ou melhor, a raça pessoa que namoro, já que vocês são uns racistas de merda."

"Levi?", A mãe se assustou, derrubando um copo que se desfez em pedaços no chão, já que ele nunca falou sequer um palavrão na frente dos pais.

"Quer saber, vão pro inferno. Vocês, a faculdade, os planos de vocês, as reuniõezinhas sociais. Os quatro semestres são o problema? Eu pago. Mas eu vou viver a minha vida!"

Naquele momento, mesmo vermelho de ódio, o pai se levantou da mesa e com a voz baixa, disse a frase apenas uma vez.

"Pois bem. Se nossos planos são tão ruins pra você, saia agora da minha casa."

E foi assim que Levi Kim foi morar na casa de seu amigo da academia, André Ferriello.

Demorou muitos meses para conseguir se ajustar, mas ele conseguiu com determinação. Depois de um tempo na delegacia, foi bem reconhecido por seu desempenho. Seu sangue coreano e a vontade de provar ao pai que estava errado, fazia com que ele fosse competitivo e sentisse a obrigação de estar sempre no topo. Queria voltar para sua casa condecorado, com um cargo de prestígio e bem falado.

Mas a sua posição de queridinho da 18ª foi ameaçada quando a filha do lendário Bacci Trovão entrou.

"E é por isso que eu não gosto dela.", Levi concluiu seu discurso enorme sobre regalias, herança e hierarquia, enquanto ele e André tomavam banho no vestiário.

Ambos estavam em jornada dupla. Começaram às 3 da manhã e terminariam mais ou menos a uma da tarde. Estavam em uma pausa de uma hora e meia, onde poderiam se limpar e tirar um cochilo.

"Tá, mas você sabe que nenhum desses motivos é suficiente para odiar uma pessoa sem conhecer ela, né?", André rebateu, do outro box

"Quer mais motivos?", Levi jogou shampoo direto da embalagem nos cabelos lisos. "Ela é só uma filhinha de papai que, com certeza, teve um empurrãozinho pra entrar aqui."

"Kim, tu também é filhinho de papai."

"Mas entrei aqui com meu próprio esforço."

"E quem disse que ela também não?"

Levi bufou e deixou a água quente cair em seu abdômen.

"Não confio nela. Tem cara de metidinha."

"Mas admite que ela é gostosa!", André deu um risinho que ecoou no vestiário todo.

"Ah ela é, cara. Mas dane-se, não consigo me atrair por uma garota que vai me colocar na rua."

"Quem disse que ela vai te colocar na rua, mano?"

Levi desligou o chuveiro.

"Vai sim, vei. Só por aquela carinha, já vi que vai me fazer perder a linha. Então, além da justa causa, vou pra cadeia por homicídio."

"E eu vou pegar a pipoca. Pra ver quem vai se matar primeiro."

***

O silêncio estava prestes a matar Raquel. Não era isso que ela esperava como um bom primeiro dia.

Ela e Levi estavam parados com a viatura em frente a uma escola estadual há mais de duas horas. O rádio tocava baixinho uma música chiclete da Ariana Grande e Levi dormia de boca aberta no banco do motorista, enquanto Raquel jazia ao seu lado, extremamente entediada.

Ela cutucou levemente o braço do colega, que não despertou. Tentou dar outros três cutucões consecutivos e nada. Por fim, deixando de lado a educação e o medo das consequências, deu um tapa na cara dele, que se sobressaltou, assustado.

"Ai, o que foi?"

Ele se endireitou no banco e olhou ao redor, assustado. Tudo o que encontrou foi Raquel olhando para a sua janela, com os olhos arregalados, fingindo distração.

"Você... acabou... de bater... na minha cara?", falou pausadamente, esfregando a bochecha.

"Em minha defesa...", ela finalmente olhou para ele. "tentei te chamar de outras formas."

Levi ficou encarando o nada por quase um minuto até conseguir normalizar a mente do bug que teve.

"Ok.", ele olhou o celular. "Por que me acordou? Falta uma hora ainda pra acabar a ronda."

"Ronda? Tudo o que a gente fez nesta ronda foi dar uma volta na esquina, parar na padaria pra você comprar meia dúzia de coxinhas, coxinhas essas que você sequer me ofereceu e, depois, ficar duas horas parados no mesmo lugar, enquanto tudo o que você fez foi roncar no meu ouvido, com Billie Eilish e Ariana Grande tocando de fundo!", ela tomou ar, percebendo que estava quase gritando.

"Princesa, caso não tenha notado, é justamente isso o que se faz em uma ronda escolar onde a única escola que tem num raio de quatro quilômetros é esta!", ele apontou para o muro grafitado.

"Primeiro, não me chame de princesa. É machista e não te dei essa liberdade."

"Tudo bem, quer que eu te chame como? Trovoada? Relâmpago? Relampião?"

"Me chama de Bacci! Ou Raquel, sei lá. Qualquer coisa, menos princesa, ou qualquer uma das suas gracinhas."

"Tá, tá, Bacci!", ele repetiu com uma careta e depois suspirou. "Ronda escolar é a coisa mais chata que tem pra se fazer na 18ª. Ninguém gosta, porque é entediante. A gente não faz praticamente nada, porque só tem essa escola. Já já vai bater o sinal, os pivetes vão sair e depois a gente volta pra delegacia."

"Não é possível que não tenha nada pra fazer. Se não tivesse, não existiria ronda escolar."

"Ronda escolar é preventiva, prince... Bacci! Ela existe pra evitar que crianças sejam aliciadas por pedófilos, evitar confusão dentro e fora de escola e pro caso de alguma adolescente cair no meio da rua por queda de glicemia por ficar beijando dentro do banheiro ao invés de comer a merenda."

"Isso foi bem específico.", ela retrucou.

"Jé me ocorreu umas três vezes.", ele deu de ombros.

Eles ouviram o sinal bater atrás dos muros. Raquel e Levi colocaram o cinto de segurança. Uma multidão de adolescentes, pré-adolescentes e crianças saíram pelo portão cinza de metal, aos gritos e correria. Alguns garotos tiraram a camisa, ligando uma caixinha de som, tocando um uma música alta e proibida. Uma garota de regata e cabelos tingidos de vermelho sangue se agarrou ao pescoço do garoto loiro, de pele leitosa, que começou a revirar o bolso. Eles não pareciam ver a viatura, já que a mesma estava encostada na esquina e escondida na sombra de uma árvore.

"Hum, aquele ali não me cheira bem..."

"Ué, como você sabe?"

Ele levantou um dedo.

"Cabelo pintado de amarelo.", depois levantou outro. "Tatuagem no pescoço.", e outro. "Bigode fininho... Se não é bandido é o quê?"

"Não é saudável estereotipar alguém assim."

"Pode ser. Mas minha intuição me diz que naquele bolso daquela calça branca com enchimento tem drogas. Pra venda e pra uso próprio."

"Vai fazer o que então, Sr. Visões da Raven?"

"Enquadrar...", ele deu um sorrisinho de canto, tirando o cinto que acabara de colocar. "E eis que vem a emoção de uma ronda escolar."

Raquel deu um sorriso também, tirando o cinto, afobada.

"Finalmente, Jeová!"

Na hora que os dois saíram da viatura, viram, de uma forma estupidamente rápida, uma parte da multidão formar uma roda e gritos saírem da mesma.

"Merda."

'"O que foi?"

"Briga de escola.", ele revirou os olhos. "Um pouco de emoção, mas vai atrapalhar o enquadro."

"Ué, não dá pra um apartar e outro enquadrar os meninos?"

"Uma pessoa não consegue segurar essas minas, Bacci. Tem que ser nós dois. Vamos só acabar com isso logo e depois a gente parte pra cima dos outros."

Ele foi à frente, enquanto Raquel ajeitava o coque embaixo do quepe cinza.

Levi se afundou no meio da multidão, empurrando os adolescentes com uma força que Raquel não entendia. Ela, já se preparando para os hematomas que levaria nessa brincadeira, se afundou na multidão também, empurrando os jovens com um receio que Levi não tinha.

"Parou, parou, parou!", ele xingou um palavrão e gritou. "Ei, ei!"

Ele puxou uma das garotas da briga, a de cabelos vermelhos, de cima de uma outra. Esta, puxando consigo um tufo de cabelos da oponente. Raquel puxou a morena contra si, que quase deslocou o braço dela com a força que fazia para se separar.

"Sua vagabunda!", A morena gritou.

"Você que é, sua piranha...", impaciente, Raquel deu um chacoalhão tão grande na menina, que jurou que viu os olhos dela saírem das órbitas.

"Já chega!!", Raquel gritou. "A próxima que abrir a boca vai levar uma coronhada."

Levi olhou para Raquel, com a boca entreaberta.

"Pra casa, agora.", Levi gritou e a gritaria cessou, tornando-se apenas uns resmungos altos.

"Vem, Bacci, vamos jogar essas duas na viatura.", ele disse, algemando a ruiva.

"Ah não, seu policia, por favor...", a ruiva choramingou.

"Já que vocês gostam tanto de se agarrar, vão se agarrar lá. Bora!", Levi sinalizou para Raquel com a cabeça.

Depois que jogaram as duas meninas no fundo da viatura, Levi olhou ao redor.

"Droga, os caras foram embora."

"Quer dar uma volta pra ver se acha eles?"

"Ah mas é claro! Até parece que vou perder a chance de enquadrar aquela molecada."

Ele entrou na viatura e rodou a chave na ignição, mas não ligou a sirene.

"Vamos bem quietinhos aí quando a gente avistar eles, dá só um toque leve na sirene pra ver eles pulando. É muito engraçado!", ele colocou o cinto e deu partida.

"Você é meio estranho e masoquista. Mas eu adorei.", Raquel deu um sorriso animado, sentindo as bochechas pinicarem de emoção.

Eles rodaram algumas esquinas, procurando o grupo de rapazes. Até que os encontrou, sentados nos bancos de uma praça. E era bem visível, o loiro com um maço de notas de cinquenta reais na mão e os outros dois formando carreiras de cocaína com dois cartões.

"É a hora, Raquelzinha. Pega sua arma, que coloca mais medo."

Raquel sentiu o rosto esquentar por ouvir ele chamar seu nome no diminutivo. Sabia que devia corrigi-lo, como fez antes. Mas via os olhos dele brilhando com a empolgação. Sabia que os seus olhos estavam brilhando também.

Levi deu o toque da viatura e eles se sobressaltaram. Antes que pudessem correr, ele estacionou a viatura, atravessado na calçada.

"Ei, bostinhas, vão pra onde?", ele deu um tapa no volante e riu. "Anda, encosta todo mundo no muro.", ele apontou para o muro branco da praça.

Os garotos, com os ombros murchos, obedeceram. Levi olhou para Raquel com um sorriso.

"Eu disse que às vezes, só às vezes, a ronda escolar é legal. Você deu sorte no seu primeiro dia, bichinho.", ele deu um soquinho no ombro de Raquel, usando o apelido clássico dos novatos.

Raquel sorriu, saindo satisfeita da viatura. Talvez o policial gatinho não fosse um parceiro tão ruim quanto ela imaginava que fosse.

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