18 - As mais variadas formas de sentir culpa

Daniel se sentou na beirada da mesa de Lucas Lim, seu arqui-inimigo, quase derrubando as pastas dos processos dele. Lucas, assustado, tirou os olhos do computador e fechou a cara quando viu que era o Kim mais velho, lhe importunando.

"O que você quer agora, Kim?"

"Nada. Só vim ver o que você tá fazendo."

Lucas deu uma risada fingida e rolou os olhos.

"Acha que eu não sei o que está acontecendo, Kim? Não se atreva a abrir a boca. Se falar algo, vou direto contar pro Maia."

Lucas se levantou, pegando algumas pastas e se direcionando a uma das muitas salas de reuniões do andar. Daniel sabia que não seria fácil convencê-lo. Ele e Lucas tinham um rixa carregada por anos. Apesar de Daniel ser pacífico e nunca ter desejado isso, Lucas Lim sempre foi extremamente competitivo. Não gostava de como Daniel era sempre o centro das atenções nas reuniões de seus pais, não gostava quando ele tirava notas mais altas que as dele e, definitivamente, odiou quando Daniel passou na universidade que ele queria antes dele. Daniel Kim foi uma sombra que perseguiu Lucas por muitos anos, mesmo que inconscientemente. Não havia o porquê dele ajudá-lo.

Por isso, Daniel teve que ser metódico. Pensou bem em quais argumentos usaria para convencer seu nêmesis a ajudá-lo. Respirou fundo e reuniu suas forças, torcendo para não gaguejar. Lembrou-se da primeira vez que armou uma defesa. O frio na barriga, a secura nos lábios. Era exatamente a mesma sensação. Só que agora, muito mais estava em jogo.

A liberdade da sua irmã e de seu cunhado dependiam disso.

90 dias antes

Raquel estava de bruços, com a cabeça entre os joelhos, sentada no corredor do pronto-socorro. Não esperava que a noite fosse terminar assim. Não esperava que, de repente, chegaria tão perto de perder alguém que ama assim. E ela, boba, demorou tanto para admitir que o amava que acabou admitindo tarde demais.

Ela hiperventilou e ergueu a cabeça, respirando profundamente, buscando preencher seus pulmões com o ar, de forma calma, mas sentia o desespero tentando fazê-la vacilar. Os pais de Levi estavam do outro lado do corredor. A mãe segurava o celular com dedos rígidos e não tirava os olhos da porta da sala de cirurgia. O pai andava de um lado para o outro, falando com alguém ao telefone. O rosto estava pálido e inexpressivo. Os lábios finos se abriam poucas vezes e soltavam balbucios que Raquel não conseguia interpretar.

Daniel estava sentado ao lado dela no chão. Os cabelos bagunçados, os olhos vermelhos e marejados. Os lábios secos e cerrados. Naquele corredor só haviam sombras do que já foram pessoas.

De repente, o Sr. Kim deixou o celular cair no chão. Colocou as mãos na boca e, pela primeira vez, começou a chorar. Chorar de forma tão sentida que os soluços cortaram o silêncio do corredor. Raquel, assustada, se levantou do chão e foi até ele. Daniel, logo atrás.

"Sr. Kim, o que houve?"

"Deus... por que isso está acontecendo comigo?", ele disse entre soluços.

Por um momento, Raquel imaginou o pior. Imaginou que o médico poderia ter sido covarde demais e lhe deu a notícia por telefone. Que Levi...

Sua respiração ficou pesada. As mãos tremiam e a cabeça latejava com uma dor inexplicável. Ela engoliu pela centésima vez o choro intenso e desesperado, quando a esposa perguntou:

"O que aconteceu?"

Ele se voltou para Daniel. Não para a mulher, ou para Raquel. Apenas para o seu primogênito, com um olhar suplicante.

"Preciso falar com você. É sobre a Luana."

Daniel assentiu, sem mais perguntas e Raquel não entendeu porque raios ele não perguntou mais nada. Depois que saíram, por longos minutos, Raquel e sua sogra compartilharam o silêncio até que voltassem.

Mas somente um voltou. Daniel não voltou mais.

***

Raquel não se atreveu perguntar onde estava Daniel, ou o que havia acontecido com Luana. Não era da conta dela e Luana não era importante agora. Tudo o que era da conta dela agora era Levi. Levi e somente o Levi.

Ela sabia que as chances eram muitíssimas poucas. Ele tinha levado um tiro na testa. Um tiro que, até aquele momento, não tinha explicação alguma e, no mundo, quem sobreviveria a um tiro na cabeça? Mas não podia deixar de pedir a Deus que ele se salvasse. Que ficasse bem. Que um milagre acontecesse.

Seus pais chegaram em certo ponto da madrugada. Sua mãe trouxe um lanche e blusa de frio para ela e Raquel se sentiu aliviada por ter o ombro da mãe para chorar silenciosamente. As horas se passaram dolorosas e agoniantes.

As paredes pareciam mais curtas. Seu mundo parecia menor. Ela fechou os olhos e viu o rosto feliz de Levi na escuridão de suas pálpebras. Os abriu de novo, encarando a luz forte da lâmpada da sala de esperas, a qual se locomoverem por pedido dos seguranças. Fechou os olhos novamente, com o rosto enterrado na blusa de lã da mãe. Lembrou-se de Levi, menos de uma semana atrás, rindo das fotos que ela tirava deles em seu celular.

"Você conseguiu deixar meu nariz parecendo o de orangotango.", ele ria de si mesmo.

"Um dos fofos.", ela apertava as bochechas dele entre as palmas de sua mão e dava beijos rápidos no nariz dele.

"Nem preciso de cassetete. Meu nariz já dá um jeito nós vagabundos."

"Seu nariz não é tão grande, foi a câmera."

Ela abriu os olhos e viu os fios soltos do tecido da blusa da mãe. Molhando-se com suas lágrimas salgadas. Raquel engoliu o bolo da garganta. Não sabia o quanto amava ele. Não sabia como o sentimento havia crescido de inimizade, curiosidade e amizade a isto. Se odiou por ter fugido dele depois da noite passada. Se soubesse... se soubesse que logo depois não teria mais ele...

Que boba ela era.

Lembrou-se de como ele, apesar de afobado, foi carinhoso o tempo todo. Lembrou-se que ele hesitava sempre, com medo de ultrapassar um limite inconscientemente estipulado. Lembrou-se de como os olhos deles brilhavam apaixonados quando ela saiu da casa dele, com pressa. A culpa agarrou a sua garganta e quase a esganou.

Quando quase pegava no sono, apoiada em sua mãe, o médico apareceu. O sono abandonou completamente Raquel e ela pulou da cadeira.

Todos se reuniram ao redor dele e, por fim, ele falou as palavras decisivas.

"A bala não era das melhores. Não transpassou o crânio. Já removemos e ele está estável."

O alívio tirou o peso dos ombros de todos ali. A mãe dele deixou as lágrimas desabarem e a de Raquel apertou os ombros da filha. O médico continuou.

"Mas não sabemos se houve sequelas. Aparentemente, na tomografia, a bala não atingiu nenhum local que comprometesse o cérebro dele. Mas, quando se trata desse assunto, tudo é bem complexo. Precisamos fazer mais exames e esperar ele acordar."

Eles assentiram e Raquel deixou o seu corpo cair na cadeira de novo. Estava menos preocupada, claro. Ele estava vivo. Mas ainda temia em descobrir algo que poderia ter acontecido com ele, ao acordar. Não sabia se podia suportar a ideia de um Levi que não pudesse viver plenamente como antes. Enquanto o doutor falava com o pai de Levi sobre alguma coisa além do que Raquel já tinha ouvido, a sua mãe foi até ela e tocou em seus ombros tensos.

"Vai pra casa, querida."

Raquel levantou a cabeça. Seus olhos estavam pesado, suas pernas arrepiadas e seus braços endurecidos com frio. Mesmo que seu corpo implorasse por descanso, estava relutante em ir. Mas, assim que abriu a boca para contestar o pedido de sua sogra, a mesma a interrompeu.

"Você tá exausta e com frio. O doutor disse que não dá pra deixar um acompanhante, de qualquer forma. Vamos ter que ir todos embora."

Raquel apertou os lábios uns contra os outros e sorriu, sem jeito. A sua mãe deu algumas palmadinhas em suas costas, assentindo com suavidade. Ela devia estar com uma feição horrível. Sentia como se seus lóbulos afundassem em sua caixa craniana, depois de tanto chorar e limpar essas lágrimas. Ela se levantou, segurando-se no braço direito de sua mão, sentindo um leve tremor com a brisa fria vinda do ar condicionado.

"Tudo bem, senhora Kim."

No caminho todo, de volta para casa, Raquel se sentiu culpada por deixar Levi sozinho. Mais um dos muitos sentimentos de culpa que agarravam o seu coração. Chegou rápido em casa e deixou que sua mãe cuidasse dela. Deixou que a colocasse no chuveiro e, depois a agasalhar. Deixou-a arrumar a sua cama e colocá-la para deitar, feito uma criança. Com um olhar de pena, a mãe afagou os seus cabelos e disse, em um sussurro que tudo ficaria. Mas Raquel não era mais um menininha. Sabia que palavras não bastavam, apesar de prezar a fé.

A única coisa que tinha certeza era que, se Levi saísse intacto de tudo isso, ela não daria mais, a si mesma, motivos de arrependimentos.

***

Raquel fez as rondas com André. Os dois ficavam em silêncio por grandes períodos de tempo, ambos com os ombros murchos e olhos tristes. Nenhum dos dois mantinha o foco na rua, nem no movimento dela. André chegou a quase bater na traseira de dois carros. Quando encerraram o turno, combinaram de ir para o hospital juntos na hora da visita do dia. Levi já tinha saído da UTI, mas ainda estava desacordado.

Daniel estava sumido há mais de uma semana. Quando Raquel perguntava aos pais dele onde estava, sempre davam apenas meias respostas. Sabia que estavam escondendo algo e temia que envolvesse Levi ou a saúde dele.

Antes de sair, Raquel pegou uma pequena mala de seu guarda-roupas. Jogou uma porção de doces escondidos entre mudas de roupas que pegou na casa dele no dia anterior, um tablet com alguns jogos e vídeos baixados e um mangá. Sabia que ele precisaria se distrair quando acordasse - e acordaria. Precisava acordar. E acordar bem. Então ela decidiu agir com a certeza de que isso aconteceria.

Encontrou Daniel na frente de sua casa, com a moto que Levi costumava usar. Colocou o capacete, sentindo algo entalar em sua garganta, como um princípio de choro. Engoliu o bolo se subiu na moto, agarrando a cintura de André, com medo de cair antes mesmo dele dar partida. Assim que chegaram ao hospital, Raquel se sentiu parcialmente aliviada por encontrar Daniel na recepção do primeiro andar, com o nome de Levi escrito a caneta na etiqueta de visitantes em seu peito.

"Dan...", ela o cumprimentou com um beijo no rosto e um abraço longo.

Um abraço que precisava, dolorosamente. Se desvencilhou dele, que também parecia tão mal quanto ela. As olheiras escurecidas pareciam quase machucar.

"Onde você estava? Sumiu..."

Daniel olhou para ela e André. Havia, desta vez, muito mais pessoas do que nos últimos dias para visitar Levi. Parentes, amigos da família, os garotos da 97 line que ele tanto falava e outros amigos pessoais dele. Sabia que o dia da visita seria bem corrido e que, provavelmente, não conseguiria vê-lo mais que cinco minutos.

"Porque tem tanta gente?". André perguntou. "O Levi nem acordou ainda."

"O Levi pode ser rabugento, mas é bem querido.", Daniel olhou para os lados novamente. "Preciso falar com vocês. Lá fora."

Raquel e André seguiram Daniel para o jardim do hospital, cruzando algumas ambulâncias estacionadas. O jardim ficava em uma das saídas do primeiro andar, com bancos circundando as árvores coloridas do espaço que, possivelmente, fora edificado para trazer tranquilidade. Sem sucesso, pois Raquel estava mais do que tensa.

"Luana e Bruno foram presos."

Raquel piscou duas vezes, sentindo o susto quase empurrá-la. Poderia jurar que era uma piada, mas Daniel não faria piada alguma em tamanha situação. Então só pode questionar.

"O que?"

"Encontraram coisas... no carro que Bruno tinha comprado de um colega em comum. Foram presos em flagrante."

André bugou, sentindo o peso das más notícias no ar. Já Raquel, ficou completamente sem reação.

"Que tipo de coisas encontraram lá?", André perguntou, andando de um lado para o outro.

Daniel deu de ombros.

"Drogas, armas e conversas estranhas em um celular que, aparentemente, só servia pra negociações de tráfico."

"O que o Bruno e a Luana disseram?", Raquel finalmente se manifestou.

"Não fazem ideia do que aconteceu. Tentei procurar o cara que vendeu o carro e o amigo que o recomendou. Mas não encontrei nada.", Daniel suspirou. "Não faço ideia de como vou armar a defesa deles. É algo grave. São suspeitos de participar de uma nova facção."

Raquel lembrou dos motivos em que ela, Levi e André estavam naquele baile há pouco mais de duas semanas. Do que estavam investigando. Havia pessoas ali envolvidas com aquilo. Uma luz brilhou em sua mente e ela entendeu que, aquele tiro que quase roubou a vida de Levi não foi por um acaso. Existiam mais coisas ali do que ela imaginava.

"André, você conhece o Ulisses da civíl, não é?"

André assentiu, com um olhar curioso.

"Alguém armou pra Luana e o Bruno. Alguém perigoso, que tem raiva deles. E tentaram matar o Levi. A gente precisa descobrir quem é."

Interrompendo a conversa, um dos amigos de Levi, Guilherme, apareceu com os olhos brilhando de alegria.

"Gente, gente! O Levi acordou."

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