10 - Pare de fingir que não há nada entre nós

"Espera, o quê?"

"O que tem de estranho em te chamar pra ir ver um filme, Bacci?"

"O que tem de estranho?", ela pensou. 

A verdade era que tudo, absolutamente tudo o que estava acontecendo com Raquel, naquela semana, estava muito mais do que estranho. Desde a noite em que Levi a beijou, eles não interagiam mais como antes. Nem mesmo como quando trocavam farpas por qualquer coisa, mas também não mantinham-se em silêncio. Era quase como uma eterna entrevista de emprego ou o Chá das cinco com a rainha Elizabeth. Uma formalidade e receio que ambos não conseguiam compreender.

No dia seguinte à "grande noite", Raquel estava com o corpo fraco, os olhos pesados, e o coração disparado como um paradoxo a toda moleza que do sono, misturado à ansiedade pela expectativa de vê-lo depois de tudo. Se perguntou se Levi teria esquecido de tudo, já que estava bêbado como um marinheiro daqueles livros de piratas de tiazonas. Mas, quando chegou à delegacia e bateu os olhos nele, percebeu que ele lembrava de tudo apenas pela linguagem corporal. O corpo rígido, os olhos atentos e o sorriso de quem parecia tentar ser indiferente. Raquel sabia que aquilo era fachada, porque estava exatamente igual.

“Bom dia!”, ela cumprimentou os colegas que estavam na mesa da copa, com um sorriso sem jeito. 

Levi deu bom dia, assim como os outros, sem olhar para ela. Mas não parecia ser coisa de seu habitual mau humor.  Parecia mais com constrangimento. Raquel se sentou do outro lado da mesa e pegou um dos pães que Jonas havia comprado. Os colegas estavam conversando sobre uma ação que aconteceu em uma comunidade do ABC, repassando os relatos de seus amigos que estavam lá. 

“Vocês tinham que ver a cambada de bandido que eles pegaram. Era muita droga, cara. Muita droga mesmo. Falaram que aquele era o maior centro de distribuição de Santo André.”

Raquel não conseguia parar para prestar atenção no assunto, por mais que ele parecesse interessante. Olhava, de soslaio, para Levi, que encarava o copo de café um pouco desconcertado. 

Ela começou a se lembrar da noite anterior e o rosto começou a esquentar. Se lembrou dos lábios húmidos dele, do calor que sentiu, das mãos em seu cabelo, daqueles mesmos lábios em sua garganta e ombros… Não parecia real. Vendo-o ali, tomando café, com a farda de sempre… parecia uma realidade alternativa. E, mesmo não querendo ser pessimista, Raquel sabia que aquilo entre eles - se é que existia algo mesmo - era fadado ao fracasso. 

Primeiramente, não tinham nada em comum. Raquel se considerava uma pessoa otimista e era mesmo. Sorridente, sociável, pacífica. Levi era o total oposto de tudo isso. Ele parecia querer comprar brigas, enquanto ela fugia de todas. Ele parecia sempre ver primeiro o lado ruim das coisas, enquanto ela via as vantagens. Ele era energético, impulsivo e ela gostava de pensar mil vezes antes de acabar se precipitando. Como pessoas tão opostas poderiam ter levar qualquer relacionamento adiante? Mal eram amigos!

Também lembrava-se do conselho de seu pai. Ele dizia, antes mesmo de Raquel passar no concurso, que se envolver com parceiros da polícia não era uma boa. Ele sabia, porque já viu colegas que eram casados misturando o trabalho com a vida pessoal. Mas, de acordo com o próprio pai, o mais triste de tudo era o medo diário de perder a pessoa que ama, ou deixar os filhos órfãos, já que os dois vivem em risco.

Parecia que seu pai, de certa forma, adivinhara que Raquel acabaria se apaixonando por outro policial.

Apaixonada? Será que ela estava? 

E Levi, como se sentia?

Do outro lado da mesa, encarando por milhões de anos o leite com chocolate, Levi se sentia vencido. Derrotado pela garotinha prodígio. Destroçado pela filha do famoso comandante Bacci Trovão. Ele podia estar bem bêbado na noite anterior, mas não esqueceu nenhum pouco do que fez.

Quando chegou em casa, assim como Raquel, não conseguiu pregar os olhos. Aos poucos, a dor de cabeça substituiu o entorpecimento do álcool e, com a dor de cabeça, o arrependimento. Levi se detestou por não ter falado nada. Não era isso o que ele planejava como uma confissão. Não era assim que ele imaginava que admitiria os seus sentimentos para ela. Não havia admitido nem para si mesmo! 

Só se deu conta do quanto gostava de Raquel, quando a viu chegando, com as roupas que ele jamais viu, o cabelo solto e a maquiagem… Só se deu conta do quanto queria aquilo quando a tocou. Quando a beijou. Parecia que o beijo só aumentava as suas dúvidas sobre si mesmo e essas dúvidas só poderiam ser sanadas com outro beijo, e mais outro e mais outro e, caramba, tais dúvidas eram deliciosamente infinitas. A busca pelas respostas era viciante ao ponto dele jamais querer encontrá-las. 

Mas, depois de conseguir ficar sóbrio, ele soube que a resposta estava em tudo o que aconteceu. Ele gostava e muito de Raquel. Mas tinha estragado tudo. Caraca, que menina gostaria de um cara assim? Volúvel, que bate o pé no chão, o tempo todo, afirmando com atos e farpas que não gosta dela e não confia nela e, do nada, a beija com um desespero afoito. Ele tinha deixado-a confusa e não sabia o que fazer.

Quando entraram na viatura, o ar estava pesado. Ele engoliu em seco, ligando o rádio, que começou a tocar a música mais nova do Justin Bieber. Ele deu um riso horrendo, afrouxando a gola da farda e olhou para Raquel.

“Puta merda, essa música é horrorosa, né Bacci?”

Raquel o encarou, meio desconcertada e assentiu ficando, de repente, emburrada.

E foi aí que o clima estranho começou.

Eles não ficavam em silêncio, mas conversavam apenas sobre o serviço, atualidades e até política. Assuntos que fariam Raquel dormir, se fossem conversados com qualquer outra pessoa, mas que faziam o seu coração disparar como nunca, só de pensar nela e Levi sozinhos naquela viatura. A tensão sexual era tão forte que ela sentia que ia explodir até mesmo quando ele perguntou a ela se também não achava que as empadinhas da Dona Nair já não eram mais as mesmas.

André viu como a situação estava e decidiu intervir.

Levi cantava Thousand Miles no chuveiro, após um expediente regado por enquadros, apreensão de drogas e prisão de assaltantes de pontos de ônibus. Do nada, André abriu o box e Levi deu um pulo para trás, se cobrindo com a toalha.

“Cacete, André! Que isso, cara?”, ele gritou.

“Resolvi te pegar vulnerável. Sei que você odeia que te vejam peladinho.”

“O que foi?”, Levi perguntou, vermelho.

“Eu, seu irmão e a Agatha vimos claramente você e a Raquel se pegando forte semana passada?”

Ou era o vapor, ou Levi estava prestes a explodir de tão vermelho que estava. Ele desligou o chuveiro e deu um encontrão no amigo.

“E daí? Nunca pegou ninguém em festa não?”, resmungou, indo para o quarto.

“Eu sim. Mas você não, né?”

“Não sou tão virgem assim.”, ele pegou uma cueca da gaveta de André.

“Ei, essa é minha!”

“Droga, quase me importei.", ele a vestiu.

André rolou os olhos.

“Você claramente tá afim da Raquel.”

Ele bufou.

"Ok. Estou. Mas isso não importa mais."

"Por quê?", André falou um palavrão e esfregou os olhos, completamente impaciente com o amigo. "Vocês se beijaram. E ela correspondeu. Ela também gosta de você, qual é o mistério?"

"Por que se incomoda tanto? Isso não é da sua conta!"

"Por que não aguento mais você agindo esquisito."

"Eu tô completamente normal!"

"Tu tava cantando a trilha das Branquelas no chuveiro, Kim!"

"Ele tá certo."

Do nada, como uma aparição ou um anjo enviado por Deus, Daniel surgiu atrás de André e entrou no quarto.

"Ah, ótimo, virou feira agora!", Levi resmungou.

"Eu só vim buscar um pedaço do bolo da dona Fátima e aproveitei pra fazer um serviço de irmão mais velho.", Daniel deu um tapa na tupperware roxa da mãe de André.

Levi vestiu a calça com raiva, enquanto Daniel sentava na cama.

"Levi, você precisa fazer alguma coisa."

"Isso também não é da tua conta."

"Eu sou seu irmão, caramba. Claro que é."

Levi, por fim, desistiu da calça e se jogou na cama. Colocou um travesseiro no rosto e gritou, emitindo um som abafado. Daniel riu e deitou também.

"Vi…", ele cutucou o rapaz. "...pense nisso como uma competição. Seu medo, contra você. Se seu medo ganhar, você perde a menina. Se você ganhar, seu medo vai pro inferno."

"Essa analogia não funciona comigo, hyung.", ele tirou o travesseiro do rosto.

"Vai ter que servir. Ou alguém, de verdade, vai acabar tomando a sua frente e tu vai perder ela de uma vez. A Raquel é uma ótima menina, Levi. E parece gostar de você. Então pare de idiotice e faça alguma coisa."

E foi assim, naquela tarde de quinta feira, bem em frente de um cadáver envolto de sangue, na hora mais indevida, que Levi tomou coragem.

Ele era mesmo um cara estranho. Mas, talvez, momentos inoportunos fossem sua âncora de vantagem.

"O que tem de estranho em te chamar pra ir ver um filme, Bacci?".

"Não sei, Kim. Talvez seja o fato de você me chamar enquanto esperamos a perícia e reforços para um caso de possível execução. Ou, pior ainda, me surpreender, já que você me odeia."

"O quê? Te odiar?"

Raquel, revoltando-se com toda aquela montanha russa de emoções e reações, acabou disparando o que guardava há meses.

"Ah, então quer dizer que todas as vezes que você implorou pro Carlinhos te colocar em outra viatura, ou com outra pessoa ou quando você pediu pra fazer a ronda escolar, só pra se livrar de mim, não foi demonstração suficiente que você me odeia?"

"É que...", ele gaguejou. "...você é muito chata!", ele ficou sério e decidido.

"Se sou tão chata assim, então por que quer sair comigo?", ela indagou.

Levi puxou Raquel, vencendo o medo. Mostrando que pode ser competitivo com os seus sentimentos também. E, desta vez, não tinha álcool para o ajudar.

Dessa vez, o mérito era todo seu.

"Pare de fingir que não há nada entre nós.", ele sussurrou em seu ouvido.

Enquanto conversava com Carlinhos, Levi encarou Raquel. Um olhar que, em suas analogias bobas de armas, faria um buraco maior nela do que o de uma SPAS 12.

"Não, Raquel.", ela pensou. "Tu não vai fazer isso. Não vai cair nessa!"

Ela jurou a si mesma que não ia nem pensar nisso. Que não ia deixar Levi fazer bagunça com sua cabeça de novo.

Ela não podia cair nessa. Mas o olhar dele já havia deixado claro que a história deles não se resumiria só às coxinhas que compartilhavam na viatura toda manhã e alguns cadáveres de traficantes em salas estreitas de um cômodo na zona leste. Ou as briguinhas, as conversas aleatórias e tudo mais…

Quando se sentou ao lado de Levi no camburão, com muitos outros policiais, ela sussurrou bem baixinho no ouvido dele.

"Amanhã, depois do trabalho. No shopping, às seis."



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