1 - Raquel, a filha do comandante Bacci Trovão
Ela era o tipo de garota que as pessoas subestimam.
Quando Raquel estava no último ano da faculdade de nutrição, se deu conta de que havia feito a escolha errada depois do ensino médio. Se guiou por alguns testes vocacionais idiotas do Guia do Estudante e a opinião das pessoas, que sempre a relacionavam com profissões, de certa forma… delicadas, ao seu ver.
"Você seria uma boa veterinária!"
"Uma universidade de estética, Quel! Você é tão detalhista!"
Você tem um senso de moda sensacional. Devia ser estilista."
Só que uma coisa que pouquíssimas pessoas sabiam - e jamais cogitaram - é que Raquel sempre achou a profissão de seu pai a coisa mais incrível do mundo. Via como o seu pai contava com orgulho, mesmo que intrínseco, sobre o seu dia no jantar. Desde uma blitz na Imigrantes, até o enquadro de suspeitos de uma quadrilha de roubo de celulares, no depósito onde preparavam os aparelhos para venda, em Itaquera. O pai de Raquel rodara muitos setores, em delegacias de diversas regiões de São Paulo.
O que ele fazia era importante. Era relevante. E a adrenalina só de imaginar fazer o mesmo fazia a cabeça de Raquel formigar.
Enquanto todos faziam críticas por não tentar emprego na área de nutrição, Raquel estudava para o concurso da polícia militar desde o terceiro ano da faculdade. Apenas os pais sabiam e, apesar do claro ciúmes de seu pai, eles sempre incentivaram Raquel a seguir os seus sonhos. O tanto que choraram na sua formatura na academia de polícia provou isso.
Era somente disso que ela precisava. Da sua própria força de vontade, o apoio de sua família e o pulso firme, para lidar com todo o tipo de situação que veria no dia-a-dia.
E o resto…
***
O despertador de Raquel tocou com um single novo do J-hope, a primeira prova do dia de seus gostos adolescentes vergonhosos. Ela desligou rápido. Mal tinha dormido. Estava uma pilha de nervos, já que não fazia ideia do que esperar do primeiro dia.
Na cama, ao deitar, tinha ficado com os olhos cravados no breu do quarto, imaginando se eles seriam chatos, nervosos ou legais. Tinha criado dezenas de cenários em sua mente até que, após horas, ela deixou esses mundos imaginários a levarem a um sono leve.
Ela levantou e acendeu a luz do quarto, incomodando seu irmão que resmungou uma série de palavras incompreensíveis e dormiu de novo. Ela encarou o uniforme cinza: a calça, a camisa de pano grosso, o cinto, o coldre vazio e o colete.
Ela sorriu e se levantou quase saltitando, levando as roupas correndo ao banheiro. Não via a hora de passar o dia e contar as novidades para a Agatha.
A mãe, também, mal havia dormido. Estava preocupada sobre como Raquel iria lidar com essa nova fase. Era um emprego perigoso e pensar em todas as vezes que o marido poderia não voltar no final do dia era extremamente doloroso. Só de imaginar ter que passar isso de novo, também com a filha, a deixava com dores fortes de cabeça e arritmia. No entanto, vê-la comendo empolgada o café da manhã e tagarelando sobre suas expectativas tiraram um pouco do peso de seus ombros.
"Não vejo a hora de enquadrar uns pebas.", ela brincou, usando a gíria de Brasília.
A mãe deu um peteleco em seu óculos.
"Ai mãe!"
"Ei, menos! Você nem começou. Nada com essa de 'enquadrar pebas.'"
"Mas mãe, os pebas são inofensivos!", ela secou a boca, se levantou da cadeira e colocou a mochila nas costas.
"Nada é inofensivo nesse trabalho.", o pai chegou, também uniformizado.
Seu pai já tinha patente alta na polícia. O que era um alívio, já que poderia aconselhar Raquel e ser um socorro em momentos de emergência. Este último, ela não queria que fosse necessário. Queria ser independente e chegar aonde o seu pai chegou, um dia.
"Oi pai! Café?", ela ofereceu a xícara, com um sorriso espertinho.
O pai começou a rir e deu um tapa leve em seu ombro.
"Vamos logo. Você não quer se atrasar no seu primeiro dia, né?"
"Vai me levar?"
"Claro, ué. Também quero ver um pessoal."
"Ah não pai, não quero que fiquem falando 'olha lá, a filha do Bacci Trovão'", ela recitou o apelido do pai com desagrado e ele riu ainda mais com a expressão dela.
"E você ainda acha que manda em você?", a mãe respondeu, pegando a mochila dela. "Vamo, levanta esse popozão daí que seu pai tem hora também."
“Mãeeee! É sério! Não quero chamar tanto a atenção logo no primeiro dia!”
“Ai, tá bom.”, o pai falou. "Eu não entro.”
Raquel sorriu e se levantou animada, com a consciência limpa por impedir que o pai fosse. Não por vergonha dele, mas por não querer que já, desde o início, todos a identificassem como a filha do comandante da centésima quinta.
No caminho, o pai de Raquel a levou em sua viatura, conversando sobre a forma como ela deve agir, quais as situações que ela passaria.
"...e eu sei que você tem um coração puro. Mas saiba que, muitas vezes, você vai ter que deixar um pouco sua ética de lado, pela sua própria segurança.", ele dizia, enquanto esperavam o farol da avenida abrir.
"Como assim?"
"É que existem situações complexas demais para você intervir sozinha. E, às vezes, nessas situações, os grandes não querem intervir. Existe corrupção em todo lugar, batatinha."
Raquel assentiu, compreendendo o que o pai quis dizer.
"Então eu só enquadro os pebas!", ela sorriu.
O pai apertou a bochecha dela e o farol abriu.
"Outra coisa… não são todos ali que você pode confiar. Falo dos policiais mesmo. Esse não é um trabalho individual, claro. Você terá parceiros, sua equipe. Mas não confie em ninguém, até que essa pessoa mereça essa confiança. E mesmo quando ela merecer, não confie."
"Você é muito desconfiado, papai."
"Sim. Mas tenho meus motivos."
Ele estacionou em frente à delegacia e deu um beijo no rosto da filha.
"Boa sorte, batatinha. Que Deus te abençoe."
Raquel saiu, com um sorriso satisfeito no rosto, subindo as escadas e encarando o prédio branco de listras vermelhas e pretas. Mandou uma mensagem para Agatha, antes de entrar:
Quel Polissiah:
AASHSAAAASHHSHSHAJAAAAAAAVDHHSHSJABA
Assim que entrou, a primeira impressão que Raquel teve foi que levaria um tempo para se acostumar. A fila para fazer os B.Os estava quase saindo do prédio. Algumas pessoas de olhar triste, chorando, outros tranquilos demais, dado o ambiente e até mesmo dois mendigos com feridas purulentas. No início da fila, um homem ameaçava uma mulher em frente à moça que registrava a ocorrência.
Raquel sentiu vontade de interferir, mas ela sabia que não seria inteligente. Desviou de algumas pessoas e foi até a outra moça, que parecia atônita, digitando uma série de coisas no computador que parecia velho demais.
“Ah, bom dia! Eu sou Raquel Bacci, a nova…”
“Primeiro andar!”, a moça apontou para cima, sem olhar para ela.
“C-certo!”, Raquel sorriu hesitante e foi até o final da sala de espera, subindo as escadas.
O andar de cima parecia bem mais calmo que o primeiro. Era, literalmente, um escritório, com diversas mesas, papeladas, máquinas copiadoras e gente concentrada em seus computadores. Um cheiro de café fresco vinha de uma porta, no canto direito, onde ela acreditava ficar uma copa. Ela encarou as pessoas e sentiu, ainda mais forte, aquela energia de empolgação com o novo emprego.
Não sabia quem chamar, então foi até a primeira mesa que viu. Uma moça negra de meia idade, com cabelos bem presos e camisa branca social ria com alguém no telefone. Demorou longos dois minutos para notar a presença de Raquel ali.
“Entendi… Martinha, vou ter que desligar. Beijos.”, colocou o telefone no gancho e sorriu para Raquel. “Você é a Raquel Bacci?”
“Sim!”, Raquel sorriu, sentindo as bochechas coradas.
Ela se levantou, deu um beijo rápido no rosto da menina e um abraço.
“Muito prazer, meu bem. Sou a Ana Paula, uma das analistas aqui. Vou te apresentar o pessoal e depois ao comandante e ao seu sargento.”
“Uou! Eu já vou conhecer o comandante ?”, ela arregalou os olhos.
“Claro! Ele é um grande amigo do seu pai. Quando soube que você ia ficar com a gente, ficou bem animado em te conhecer.”
“Ah!”
Raquel sentiu seu sorriso sumindo, quando ela mencionou o seu pai e o sorriso diminuiu ainda mais conforme ela ia apresentando a garota aos outros analistas.
“Amaral, essa é a Raquel Bacci, filha do comandante Trovão!”
“Ei, Gi. Filha do Bacci, o trovão.”
“Fabio, a filha do Bacci, a Raquel.”
Então, o que ela mais temia aconteceu. A delegacia toda sabia que ela era filha de seu pai. A delegacia toda já a conhecia como a filha de seu pai. Não como a garota que passou entre os dez primeiros no concurso e com as melhores notas na academia.
"Nossa, o pessoal conhece bem o meu pai, né?”, ela tentou não soar tão sarcástica.
“O seu pai é tipo uma lenda aqui.”
“Percebi... “, ela sorriu, sem jeito.
Quando Ana entrou na sala de descanso dos policiais, Raquel sentiu que iria desmaiar. Por sorte, havia apenas quatro policiais. Uma mulher mais velha, de testa grande e cara fechada, mexendo no celular, um homem mais velho de maxilar quadrado, pele rosada e meio calvo e outros dois… extremamente gatos. Foi a única definição que veio à mente dela assim que mirou os olhos neles.
Eram mais ou menos da sua idade e, sim, muito bonitos. Mas cada um de uma forma singular. O da direita tinha pele e olhos claros, cabelos loiros e ombros largos. Mesmo sentado de forma relaxada, parecia um deus grego, das histórias que lia na adolescência.
O outro era igualmente lindo, mas de etnia diferente da do colega. Era asiático, com os cabelos negros, olhos escuros e concentrados em um livro sobre análise e pesquisa. Parecia bem alto, dado o espaço que suas pernas ocupavam.
Tudo o que ela pensou foi que ele fazia mesmo o tipo dela.
“Bom dia, gente. Vim apresentar a nova menina que chegou. Essa é a Raquel Bacci, filha do comandante Bacci Trovão. Raquel, esses são Marcos Fidelis, Lidia Amarantes, André Ferriello e Levi Kim.”
Os dois mais velhos se levantaram e cumprimentaram de uma forma um tanto seca, mas respeitosa. Depois deles, o garoto loiro deu-lhe um abraço caloroso.
“Bem vinda, Bacci. Espero que goste da décima oitava.”
“Obrigada… Hum, eu te chamo de André mesmo ou aqui também tem o esquema de chamar por sobrenomes?”
“Depende do apelido esquisito que você tem, ou a quantidade de charás que você tem..”, ele riu. “Você é a Bacci agora, já que tem a Raquel analista e a Raquel da copa. Eu sou o Ferriello e aquele ali de cara fechada é o Kim.”
O garoto sentado mostrou o dedo do meio sem tirar os olhos do livro.
“Ei, coreano. Mais respeito. Levanta pra cumprimentar a menina.”
Impaciente, Levi deixou o livro na mesa de centro e se levantou, oferecendo a mão.
“Então você é a tal filha do comandante Trovão.”
“Ah, sim…”, ela apertou a mão dele e soltou rapidamente. “Mas não gosto de me gabar disso.”
Ele deu uma gargalhada falsa e Raquel estreitou os olhos.
“É deu pra perceber.”, ele disse, depois de rir.
“O que quer dizer com isso?”, ela perguntou, séria.
“Nada não…”, ele coçou a cabeça. “Bora, Ferriello, hora da ronda.”
“O Carlinhos pediu pra gente esperar.”
Levi resmungou um palavrão e se jogou na poltrona de novo.
“Prazer em te conhecer, princesa Trovão. Agora, se não se importa, vou cochilar um pouco.”
Raquel acompanhou a analista para fora da sala de descanso, com uma sensação ruim. Era exatamente por isso que temia toda essa extravagância. Seu real medo era atrair hostilidade de seus colegas policiais e conseguiu isso em menos de cinco minutos. Os mais velhos mal se deram ao trabalho de tentar parecer simpáticos com ela e o tal Kim havia sido ainda pior. Não escondeu em momento nenhum que não foi com a cara dela. Dos quatro primeiros policiais que ela havia conhecido, apenas um parecia ter gostado dela.
Esperava ter sorte com os demais.
Foi até uma das muitas salas próximas à copa. A analista deu três batidas na porta até escutar uma voz rouca pedir para entrar.
Na sala, dois homens de meia idade. Um magro como um bambu e o outro negro e barrigudo. Ambos lembravam os tios de Raquel, com aqueles sorrisos simpáticos.
“Raquel, esse é o Mário Garcia, o comandante geral e Carlos Rangel, o sargento.”
Raquel bateu uma leve continência e eles riram, cumprimentando-a com um aperto de mãos.
“É um enorme prazer ter uma menina inteligente como você aqui, meu anjo.”, o comandante deu tapinhas na mão dela. “Seu pai está orgulhoso.”
"Ele está mesmo. E mandou lembranças.”
“Velho desgraçado. Fala que, na próxima, não quero lembranças e sim um convite pra um churrasco.”
Raquel riu, sem jeito.
“Pode deixar que eu vou lembrar ele disso.”
“Carlinhos tá bem ansioso pra te integrar na equipe.”
“É verdade.”, o homem negro e barrigudo concordou. “A gente tá precisando de sangue novo aqui. Passamos por algumas situações difíceis ultimamente, mas é história pra outro dia.”
“Pode ter certeza que farei o meu melhor.”
“O Carlinhos vai te entregar as armas, mas, antes, a gente vai te apresentar o rapaz que vai te acompanhar nesse mês. Ana, o Kim tá na salinha?”
“Aham.”
“Chama ele.”
Na hora em que o comandante falou “Kim”, demorou séculos até que Raquel entendesse de quem ele estava falando. Talvez o fato de estar tão animada a tenha distraído por estes segundos e ela só se deu conta do pesadelo em que entrou quando Levi Kim entrou com a analista na sala do comandante .
“Raquel esse é o Kim. Kim, essa é a Raquel. A partir de hoje vocês estão escalados pra ronda escolar da manhã e tarde.”
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