Capítulo 44 - Parte III

Analisei as feições do Príncipe e percebi, com alguma confusão, que não estavam em desespero como almejei, mas enfeitados por um sorriso satisfeito de triunfo.

"Minha filha", as palavras carregadas pelo vento vieram seguidas do perfume de violetas.

Olhei ao redor, procurando a fonte da voz, mas não encontrei nada. No entanto, eu podia jurar que sentia uma poderosa presença ao meu redor.

- Quem está aí? - Sussurrei.

"Você precisa soltá-lo, está fazendo exatamente o que ele quer", a voz proferiu.

- Não - gritei resignada; aquilo só poderia ser um truque, uma artimanha criada pela terrível criatura que pensei amar.

- Solte, minha querida, liberte essa magia antes que seja tarde - essa voz diferia da primeira, familiar de alguma forma. E parecia vir de algum lugar próximo, não da minha cabeça.

Olhei à minha volta, mas todo o bosque continuava coberto pelo véu negro que minha magia causou.

- Olhe para mim - a voz tornou a falar, e senti uma mão segurando meu queixo - Sou apenas eu, Selene.

Aquele nome quebrou meu estado hipnotizado, e de alguma forma, consegui enxergar minha avó bem à minha frente, com uma mulher deslumbrante ao seu lado.

- Não. - Astaroth rugiu, mas com um gesto de mão da misteriosa mulher, sua boca fora coberta por uma espécie de corda feita de galhos carregados de folhas.

- Você não pode continuar, se fizer isso, vai cumprir a maldição e condenar a todos. - Selene estava tão diferente, um brilho suave envolvia sua forma, como uma aura.

- Ele precisa pagar, ele matou Eli... - não consegui terminar, não pude concluir aquela terrível verdade - Ele me enganou.

"Para que você fosse quebrada, e então libertasse as Trevas, você está fazendo exatamente o que ele planejou, minha filha." A voz soou em minha cabeça novamente, parecida vindo de lugar nenhum, mas algo dentro de mim gritava a certeza de que aquelas palavras pertenciam à linda mulher de cabelos prateados e olhos de ametista.

- Quem é você? - questionei finalmente.

"Essa não é a questão mais importante", ela rebateu. "Quem é você, Morrigan? Uma arma criada pelos Príncipes de Abaddon? Uma garota criada por mentiras causadas pelo medo, moldada para reprimir seus próprios instintos? Ou você é dona de si, de suas próprias escolhas e destino?"

Ouvir de outra pessoa que minha família havia mentido para mim doeu, e a dor de arrependimento que vi em Selene foi a maior confirmação que eu poderia ter. Mágoa me preencheu, parecida com a dor que a traição de Asher me trouxe.

- Por que mentiram? - questionei minha avó - Jamais teria aceitado partir com ele se soubesse de tudo. - indiquei com o queixo o demônio que seguia amarrado por minha magia e a mordaça da mulher.

- Oh, meu bem, eu sinto tanto - a bruxa respondeu entre lágrimas - Me perdoe, por favor, me perdoe. Você precisa saber que não fizemos por mal, Caius era o único que sabia de sua verdadeira origem, a história de Anarah, sua bisavó. Ele viveu muitos anos com medo de gerar alguém que carregaria a maldição, ele teve uma vida triste e solitária, e não quis que nenhum de vocês passasse por isso.

- Então resolveram sentar e rezar para que nada de ruim acontecesse? - rebati amarga.

- Estávamos em busca de uma forma de quebrar a maldição e eu... - um soluço sofrido escapou de seus lábios, e ela desviou o olhar - Encontrei, consegui uma forma, você vai se libertar...

Selene continuou falando, mas não pude mais ouvir, pois a mulher misteriosa começou a falar, obstruindo qualquer som. Eu ouvi atenta a cada palavra, cada instrução, antes de assentir com pesar.

Só havia uma maneira de impedir que todo o poder de Abaddon fosse liberto, e eu era a única capaz de fazer algo a respeito.

A mulher colocou as mãos nos ombros de Selene, e parece ter dito algo em sua mente, pois minha avó me falou em seguida:

- Preciso ir, meu bem.

- Fique, preciso de você, apenas mais um instante - implorei com lágrimas nos olhos; eu não poderia ficar só naquele momento.

- Não pertenço mais a este plano. - diante do meu olhar confuso, ela explicou - Tive que fazer isso para conseguir o artefato que vai quebrar a maldição, não fique triste, não estou arrependida e tive a honra de ser escolhida pela Deusa Syrenah - ela indicou a mulher ao seu lado, me deixando atônita - Sacrifícios às vezes são necessários, e se forem por uma boa causa, valem a pena.

Envolvi minha avó em um abraço apertado, lágrimas escorrendo livremente enquanto ela se despedia com palavras amorosas. Seu corpo se desfez lentamente, deixando um rastro brilhante no ar, enquanto a Deusa permanecia por mais um momento, me presenteando com suas últimas palavras.

"Abaddon não foi o único a te escolher. Eu estava lá, sabia? Quando você ainda estava no ventre de sua mãe. Tão preciosa, eu não permitiria que uma filha minha fosse tocada pelas trevas sem interferir, mesmo que fosse contra as regras de Shangri-La.

Eu a abençoei com meus próprios poderes, com minha essência e amor. Não existem apenas sombras aí dentro, há mais luz do que você jamais imaginou.

Você foi escolhida, filha da Lua. Se duvidar das minhas palavras, basta olhar em seus próprios olhos. Eu sempre estive com você."

Minha atenção foi direcionada aos seus olhos únicos, como os meus, que me observavam intensamente. Percebi a singularidade da cor ametista, algo que mais ninguém da minha família possuía.

Com determinação, avancei em direção a Astaroth. Ao me ajoelhar diante dele, mesmo com a mordaça, poderia jurar que seus olhos se estreitaram em um sorriso satisfeito.

- Hoje não - declarei com frieza.

Busquei profundamente dentro de mim toda a magia, e quando finalmente a toquei, arfei surpresa. Era um poderoso fluxo, profundo e incrivelmente enriquecedor, repleto de luz.

Há mais luz do que você jamais imaginou.

Uma sensação formigante e estranha percorreu minha lombar, avançando pelas minhas costas até repousar em minha nuca. Em uma explosão de luminosidade, asas magníficas, puras e tão brancas quanto as de minha mãe, desabrocharam atrás de mim. Com um simples pensamento, elas se moveram com uma elegância radiante, como se estivessem finalmente livres. Lágrimas de felicidade banharam meus olhos, sempre desejei voar, uma melancolia constante por não poder acompanhar Caius e Arya, e agora...

Enviei aquela magia pura para o pentagrama, ainda mantendo firme meu domínio sobre as trevas, segurando um em cada mão, em equilíbrio. Eu não era uma bruxa das trevas, tampouco da luz... Morrigan, apenas Morrigan.

Você é dona de si, de suas próprias escolhas e destino?

- Você aprecia maldições, não é? - proferi, fitando seus olhos odiosos - Aprendi uma. Gostaria de assistir?

- Aperire portas ad infernum, fato destinum obsecro,
In abyssum vincula, me permitto,
Obsecro, cohíbe potentiam meam in hoc mundo migrandi.
Signatum in abyssum obsecro, impelle maledictionem ad tenebras infernales.

Continuei repetindo o feitiço, buscando forças nas palavras da Deusa da Lua e da Magia.

É tarde demais, eu sinto muito.

O solo tremeu, e meu poder fluía descontrolado, estendendo-se tão longe que parecia abranger toda Aranthia.

Mesmo que a sua maldição seja quebrada, as brechas que vêm criando e as que abriu hoje não serão seladas.

Um abismo se abriu, envolvendo nossos corpos, nos isolando do restante do bosque. Nesse momento, Astaroth lutava freneticamente, em uma tentativa vã de me deter.

Abaddon não foi o único a te escolher... Eu a abençoei com meus próprios poderes, com minha essência e amor.

A dor que me envolveu era terrível, sufocante, mas resisti firme a cada segundo, ciente do que seguiria.

Só há uma maneira, minha filha. Mas você precisa ser forte.

E então, ele emergiu ao fundo, olhos desesperados encontrando os meus, gritos ecoando com um tremor terrível. Caleb implorou com o olhar, tentou me alcançar em uma corrida desesperada, e essa foi minha última visão antes de ser engolida pela escuridão.

Gostaria de ter tido tempo de dizer para ele as palavras de Selene: Sacrifícios às vezes são necessários, e se forem por uma boa causa, valem a pena.

Mas não pude fazer nada, a não ser olhá-lo uma última vez antes de ser selada para sempre em Abaddon, com os danos que causei.

Fim.

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