Capítulo 42

Horas se arrastavam desde o início do impiedoso ataque. A perplexidade ainda permeava minha mente, sem compreender a súbita decisão dos guerreiros da Luz de nos atacarem, rompendo anos de uma trégua aparente.

Persistiam os incessantes golpes contra o escudo, mais cautelosos após nosso feitiço ceifar aqueles que se aventuraram muito perto. Feitiços e projéteis eram lançados em direção à proteção, e até mesmo uma maldita catapulta fora trazida para a frente do campo de batalha, me deixando perplexo.

Nossa situação era precária, presos entre a decisão de manter o feitiço de escudo e enfrentar um ataque constante, ou arriscar a retirada e sermos alvo imediato. A escolha nos deixava numa sinuca de desespero, prontos para o embate caso a proteção cedesse. E, considerando a aparente inesgotável energia das criaturas atacantes, a inevitabilidade da quebra do escudo pairava no ar.

Estávamos aguardando o restante dos Ignis, já que tínhamos uma desvantagem numérica naquele momento. A ansiedade, a inevitável luta que se aproximava, me deixava agitado, como se o tempo se arrastasse lentamente, prolongando a tensão no ar.

Foi então que Sebastian se aproximou, indicando silenciosamente o desejo de uma conversa privada. Seu semblante revelava preocupação, uma tensão que refletia temor em seus olhos. Este lugar nunca foi feito para ele; meu parceiro, desprovido de violência e distante de qualquer instinto assassino, parecia uma peça deslocada nesse campo de batalha. A guerra não era seu ambiente natural, e talvez, se fosse honesto consigo mesmo, ele estaria do lado oposto dessa batalha.

— Eles não são os inimigos. — Sebastian gesticulou para os guerreiros da luz, quando estávamos longe de ouvidos curiosos.

— Oh, não? Vieram para tomar um chá, acho que entendi os ataques de forma equivocada. — rebati seco, sem entender o que aquela conversa significava.

— Eles não representam a Sociedade Sagrada; não oprimiram sua espécie. Pelo contrário, ali estão bruxos lutando lado a lado com humanos e anjos — sua voz era agitada, acompanhada de gestos frenéticos com as mãos — Esta guerra não faz sentido, destruir seu próprio lar também não. Trazer as criaturas de Abaddon para cá é um erro terrível. Eles não se concentrarão em atacar os verdadeiros inimigos; vão destruir tudo, e não duvido que isso inclua os Ignis.

— Onde estavam os guerreiros da luz quando os religiosos nos levaram para a morte? O que eles fizeram quando foram injustos e cruéis, Sebastian? — minha incredulidade transparecia — Esses mesmos guerreiros estavam sentados assistindo minha espécie ser dizimada; aqueles bruxos do outro lado são caçados pelos fanáticos e não fazem nada contra isso. Os Deuses assistiram nosso massacre e não enviaram anjos ao nosso socorro.

Em resposta ao seu silêncio, dei um passo à frente, continuando meu discurso:

— E então, quando resolvemos agir, eles se levantam? Só então decidiram lutar, não contra os carrascos, mas contra quem resolveu dar um basta nisso — encostei o dedo no seu peito, acusadoramente — Abaddon foi o único que veio ao nosso socorro, e agora você sugere que eu devia dar as costas a isso?

— Eu me levantei por você — Sebastian berrou sua acusação, a voz tremendo com mágoa — Briguei pelos bruxos, seu maldito ingrato.

— Eu… — não tinha ideia de como responder aquilo, me faltavam palavras.

— Eu morri por você — Sebastian sussurrou — E então, quando me trouxe de volta, eu continuei morrendo a cada dia. Eu destruí cada parte do que eu era, cada pedaço de mim, dia após dia, ataque sem sentido após ataque, em cada ato cruel, em cada morte. Eu não sou assim, ou não era, pelo menos.

As palavras dele ecoavam no espaço carregado de tensão, como um lamento melancólico ressoando na atmosfera sombria. O peso da culpa pairava entre nós, envolvendo-nos em uma tristeza palpável.

— Você não precisa lutar… — falei enquanto traçava um carinho pela sua bochecha — Pode ficar protegido até tudo acabar.

O toque suave contrastava com a brutalidade do momento, uma tentativa de acalmar a tempestade que se formava dentro de Sebastian. O cheiro de sangue e suor impregnava o ar, uma mistura amarga que anunciava a proximidade do conflito iminente.

— Oh, eu posso? — ele afastou o rosto do meu toque — Posso ficar quietinho em algum canto enquanto você mata inocentes e então vir correndo abanando o rabinho quando tudo acabar!

— Sebastian…

— Não. — ele me interrompeu — Dei minha vida por você, eu lhe entreguei tudo que tinha, joguei fora tudo que era. E para quê? Qual a recompensa disso tudo? Morte e destruição.

O ambiente parecia pesado, como se o peso das palavras carregasse consigo uma atmosfera de desespero. A textura do ar era densa, saturada com a dor que emanava da confissão de Sebastian.

— Amor — minha voz tremia com emoção — Foi por amor. Eu te amo, Sebastian, e daria tudo por você, tudo de mim também.

— Ótimo! — ele sorriu satisfeito como se esperasse ouvir exatamente isso — Venha comigo, quando essa barreira cair, vamos embora.

Fugir. Era isso que ele queria, que eu deixasse para trás tudo que acreditava, tudo pelo qual lutei. Que desse as costas aos meus irmãos, séculos dedicados por uma causa, apenas para abandonar quando estávamos próximos do fim.

— Não posso, você sabe que não. — respondi com pesar.

O vampiro se encolheu, como se eu tivesse lhe desferido um golpe. Suas feições se contorceram com dor, a reação me tirando o fôlego. Eu não poderia ir embora, deixar para trás tudo que planejamos por tanto tempo.

— Eu posso — ele enfim respondeu, uma lágrima solitária escorrendo por sua bochecha — E vou, Dariuz. Não estou pedindo permissão, estou te dando a escolha de vir comigo, de escolher a mim ao invés da destruição.

O sabor amargo do dilema pairava no ar, como o gosto salgado de uma decisão que mudaria tudo.

Demorei para perceber que o estrondo que ressoou em seguida não vinha da minha própria cabeça que rugia. O impacto reverberou pelos campos, enquanto meu corpo tremia com o impacto. O som perturbador preenchia o ar, fazendo meus ouvidos zumbirem. Sebastian, sensível aos sons como vampiro, se encolheu, seus olhos arregalados de espanto mirando ao longe. 

A barreira cedia, rachaduras se formando e se expandindo em uma corrida frenética contra o tempo.

Os guerreiros do outro lado aguardavam, em fileiras, a inevitável queda iminente. O rugido da terra se misturava aos gritos de Sapphire, comandando nossas tropas. Entretanto, outros gritos ecoaram, e o chão tremeu sob rugidos de raiva e determinação.

Samaela havia finalmente chegado, montada em um imponente cavalo negro, liderava os Ignis em marcha. Seus olhos âmbar injetados de fúria, cabelos prateados chicoteados pelo vento. Atrás dela, bruxos em cavalarias e vampiros com velocidade sobrenatural. O conflito se aproximava.

Voltei minha atenção para Sebastian, e ali, naqueles olhos que eu tanto amava, uma pergunta não dita brilhava, como se ele estivesse gritando ela repetidas vezes: venha comigo. 

Um pedido, um convite, uma súplica.

Analisei os guerreiros da Luz, os Ignis em suas fileiras e aqueles que chegavam. Então voltei meu olhar novamente para meu parceiro. Valia a pena perder ele para lutar uma guerra? A resposta era difícil e dolorosamente óbvia.

— Vamos. — sussurrei enquanto pegava sua mão, pronto para partir rumo a um destino desconhecido.

O sorriso largo e brilhante que ele me deu foi o suficiente para saber que eu tinha tomado a decisão certa. Seguimos cautelosos, para que ninguém notasse, então, aguardamos na borda do escudo, esperando o momento certo para fugir.

Uma trombeta soou ao longe, os sons de cascos batendo no chão e fazendo o solo tremer. Dessa vez, o barulho vinha da direção oposta aos nossos aliados. Esperei para ver quem estava vindo, e não precisei esperar muito. Ali, brilhando como o sol, aliados inesperados vestidos com suas armaduras douradas que ostentavam a insígnia do rei: o formoso leão.

Mas eles não estavam sós, absolutamente. O choque me invadiu quando enfim identifiquei as cores além do ouro ofuscante, ali, chegando para lutar lado a lado com bruxos, os malditos com capuzes negros que escondiam seus rostos odiosos.

Meu corpo tremia com a ira incontida, as bordas da minha visão ficando vermelhas. Sebastian percebeu quem eram, ou talvez tenha percebido minha reação, porque segurou minha mão com força, como se pudesse me impedir.

Eles se juntaram com a Sociedade Sagrada, malditos bruxos lutariam ao lado daqueles que os caçavam, como se fossem aliados desde sempre.

Tudo estava fora de foco, tudo além daquela visão pintada de um vermelho furioso. Meus pés pareceram ganhar vida própria, aproximando-me da fileira dos Ignis, aguardando ansioso o momento que a parede cederia e eu teria oportunidade de estraçalhar cada maldito religioso.

Tarde demais, me dei conta do que fiz quando meu foco enfim desviou dos inimigos. Sebastian não estava ao meu lado, tampouco onde o vi pela última vez. Dei um passo naquela direção, dividido entre lutar e ir atrás dele, mas não tive mais tempo, não quando a barreira cedeu e o exército caiu sobre nós como uma avalanche.

Sebastian se foi, levando meu amor consigo, meu coração e talvez, o último resquício de minha humanidade.

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