Capítulo 39

— Segurem a porra do escudo! — sua demanda ecoava como um trovão, cortando o ar com autoridade enquanto ela avançava pela fileira, a ira pulsando a cada passo.

— Encontraram a garota? — Sapphire questionou assim que se aproximou de nós.

— Jacob e Lirian ainda não retornaram. — Dariuz respondeu com uma calma calculada — Mas temos problemas mais urgentes, que importância tem a garota agora?

Apesar da aparente serenidade de Dariuz, seus olhos revelavam a tensão compartilhada. A verdade sobre Morrigan pairava como uma sombra, uma traição não dita pesando em nossas consciências.

Por mais arriscado que fosse, eu não poderia consentir em arrastar a pobre garota até o coração dos Ignis. Era evidente que Sapphire planejava atos inomináveis para forçá-la a cumprir a maldição. Não poderia ficar impassível diante de tamanha crueldade, considerando especialmente o sofrimento já imposto àquela criança. Permitir que ela partisse aliviou uma fração do peso em meu coração, mesmo que ínfima diante de tudo que já fiz.

— Que importância têm? — A resposta de Sapphire foi um vislumbre demoníaco em seus olhos, como se a crueldade fosse uma chama acesa dentro dela. — Assim que ela cumprir a maldição, não precisaremos nos preocupar com esses estorvos.

— Ela vai cumprir, é o destino, um que já foi traçado — Dariuz falou, estalando a língua com um tom resignado — Independente de nossas interferências, ela cumprirá.

— Aquele maldito vampiro — ela continuou como se não tivesse ouvido uma única palavra, sua voz uma serpente sibilante — Ele a levou e sabemos para onde, a coisinha queria voltar para a família. Tudo que precisamos fazer é nos reunir com o restante dos Ignis e destruir a maldita Irmandade dela.

— Precisamos decidir o que faremos agora — Dariuz olhou ao redor, avaliando a situação.

— A garota é a última de nossas preocupações atualmente. — Minha voz cortou o ar, não querendo prolongar a discussão sobre Morrigan.

Sapphire virou-se para mim, uma fúria contida faiscando em seus olhos.

— Então, o que você sugere, Sebastian? — Ela cuspiu meu nome com desprezo.

— Resolver o problema atual? — Olhei na direção da fileira à nossa frente, minha expressão firme — Nos defender nessa maldita batalha?

Sob a luz pálida da lua, as fileiras dos Ignis se alinhavam, uma muralha de determinação contra o avanço das forças da Luz. Seus olhos brilhavam com a promessa de violência.

A tensão era palpável, um eco do iminente confronto que se aproximava com cada batida de coração. Os sons da floresta ecoavam ao nosso redor, o farfalhar das folhas misturando-se ao murmúrio do vento, como uma sinfonia macabra que prenunciava o derramamento de sangue.

Eles haviam surgido do nada, sem nenhum aviso ou sinal. Muitos, talvez milhares deles, brotando como o prelúdio da destruição. Anjos, bruxos e humanos aos montes, todos com expressões destemidas e as armas reluzindo com a promessa do que viria. Havia uma energia elétrica no ar, carregada com a iminência do embate, a magia e a força dos Guerreiros da Luz colidindo com nosso escudo com determinação.

A guerra havia chegado e não tínhamos para onde correr ou nos esconder. Logo o escudo cederia e seríamos forçados a lutar.

— Já enviei um recado para os outros, logo Samaela trará o restante dos Ignis e vamos ensinar o quão estúpido é nos atacar tão próximo do nosso território.

Sapphire irradiava uma aura de fúria contida, seus olhos faiscando com a intensidade de mil sóis. Sua mandíbula estava firme, os músculos tensos com a raiva que fervilhava sob a superfície.

Um estrondo ensurdecedor rasgou o silêncio do campo, reverberando contra o escudo que nos protegia. A luz, intensa e cegante, ofuscou meus olhos por um instante, como se o sol tivesse descido à terra em um instante fugaz. Meu coração pausou, como se o tempo em si retivesse a respiração, antecipando o desenrolar do caos iminente.

Então, um ruído insuportável, como o som de vidro sendo arranhado, rasgou o ar em um lamento agudo. Sapphire rugiu um feitiço poderoso, uma manifestação da sua determinação inabalável em manter a barreira intacta. Ao nosso redor, os bruxos seguiram seu comando, a magia fluindo deles como um rio desesperado, entrelaçando-se com o tecido do escudo. Era uma dança caótica de poder, uma tentativa desesperada de conter o avanço avassalador da Luz.

"Protego Scutum Impenetrabilis" — as vozes ecoavam incessantes, como um cântico macabro. Cada palavra pronunciada era um grito de desafio contra o inevitável, uma resistência feroz diante da tempestade iminente.

O estrondo de outro impacto contra o escudo ecoou, e desta vez, senti uma rachadura se formando. Uma corrente de pânico se espalhou entre nós, mas a voz de Sapphire cortou o ar como um relâmpago.

— Resistam! — sua voz ressoou, uma mistura de comando e encorajamento.

Cada golpe na proteção ressoava como um eco de minha própria inquietação e medo. Eu não era um guerreiro por natureza, e o derramamento de sangue sempre me assombrava. A ideia de tirar outra vida estava longe de meus desejos mais profundos; já havia conhecido o suficiente da escuridão para repudiar qualquer sombra que se aproximasse.

Tudo o que eu desejava era uma saída, um caminho para escapar da violência que engolia tudo ao meu redor. Cada estrondo que ecoava era um lembrete doloroso de que eu estava enredado em um conflito que não era meu. Em minha mente, só havia um pensamento: pegar Dariuz e fugir dali, longe daquele caos ensurdecedor, longe do clamor que me dilacerava por dentro.

E, ao lembrar do momento em que convenci meu parceiro a deixar Morrigan escapar, um sentimento agridoce me invadia. Por mais certo que estivesse de minha decisão, uma pontada de arrependimento me atravessava. Desesperava-me por ter tido coragem suficiente para ir junto, ansiando por um vislumbre da liberdade que tão desesperadamente almejava.

O silêncio repentino de Dariuz capturou minha atenção, desviando meu olhar dos guerreiros da Luz para ele. Seu semblante roubou meu fôlego, um vislumbre de violência contida que fazia seus membros tremerem. As mãos erguidas não lançavam mais o feitiço de proteção familiar; ao invés disso, uma magia terrível exalava dele, espessa e terrivelmente errada, deixando um gosto amargo em minha boca.

Palavras ininteligíveis foram sussurradas, perdidas no rugido ensurdecedor que reverberava em minha mente. A magia demoníaca fluía dele, conectando-se ao nosso escudo, e eu testemunhei o exato momento em que ela se amalgamou à barreira, despedaçando inúmeros guerreiros que colidiam com ela no mesmo instante.

O riso de Sapphire ecoou, como se a morte de dezenas fosse uma piada para ela. Ela replicou o feitiço com uma empolgação quase infantil, revelando uma faceta terrivelmente demoníaca.

A magia deles impregnava o ambiente, tornando o ar denso e viciado, enquanto um odor fétido carregava consigo um sutil resquício de enxofre. O aroma provocou lembranças dos pactos sombrios que concediam seus poderes, um acordo tenebroso feito com o próprio Príncipe Daeva. A revelação abalou-me profundamente, fazendo-me cambalear. Havia passado muito tempo desde que aquela energia se manifestara, uma força que fluía diretamente de Abaddon.

Não, não podia ser… teria Morrigan desencadeado a maldição? Se assim fosse, já estaríamos cercados por demônios, se não pelos próprios Príncipes.

Contudo, a sensação era inconfundível, uma magia errônea e destrutiva. Surpreendentemente, tomei-me fazendo algo que não praticava há muito tempo… orei para alguém há muito esquecido, suplicando a Hamash, Deus do Sol e da Vida.

Memórias de um tempo distante, quando eu era apenas um garoto devoto dos deuses, alheio ao chamado da crueldade. Tudo mudou quando a Sociedade Sagrada se transformou em algo sombrio. Tudo mudou quando o conheci, meu amor, minha outra metade. Dariuz, ele também fora uma boa pessoa, moldado pela crueldade humana, e eu me deixei arrastar junto para a ruína, para a destruição de tudo o que eu era.

Ouvi suas histórias, de todos eles, e me permiti acreditar que aquela luta era correta, até mesmo nobre. No entanto, ali estavam, a poucos metros de nós, não apenas anjos e bruxos, mas humanos que lutavam ao lado deles, pela mesma causa. Os fanáticos religiosos eram os vilões, sem dúvida, mas os Ignis não eram os heróis; transformaram sua dor em ódio e destruição, não apenas contra seus algozes, mas contra todos que se opusessem.

Fui arrastado para esse horror, seduzido por um amor inocente. E quando me tornei vampiro, perdi completamente a noção de quem eu era, entregando-me ao frenesi da destruição.

Enquanto observava o exército corajoso, um lampejo de branco capturou minha atenção. Gadiel havia chegado, rondando o escudo como um tigre impaciente, uma fera prestes a atacar. O anjo era apenas uma sombra do que já fora, sua luz apagada, e quem poderia culpá-lo? Não conseguia sequer imaginar a dor de perder meu amado, o quanto isso me dilaceraria.

A criatura escrutinava as fileiras com seus olhos penetrantes. Por algum motivo, ou talvez destino, seu olhar encontrou o meu enquanto observava os que estavam atrás daquela muralha humana. Quando seus olhos se fixaram em mim, soube instantaneamente o que ele procurava: Morrigan. Essa percepção me levou a agir impensadamente, negando com a cabeça, tentando comunicar que ela não estava mais conosco.

De alguma maneira, o anjo pareceu captar a mensagem, e sua atenção mudou abruptamente. Seus olhos agora estavam fixos em Sapphire, sua aura emanando uma única coisa: vingança por sua amada.

Naquele momento crucial, tomei minha decisão. Com pesar, mas com determinação, decidi deixar aquele lugar para trás, abandonar toda a violência e a morte. Se por algum milagre Dariuz concordasse em me acompanhar, seria um alívio, mas, caso contrário, mesmo que meu coração se partisse, teria que seguir meu próprio caminho, sozinho.

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