Capítulo 36

Observando sorrateiramente Asher pelo canto do olho, vi-o reunindo galhos secos para uma fogueira. Cada movimento delineava seus músculos, evidenciados sob a camisa fina de botões que ele vestia, já que o frio não o incomodava. Seus cabelos ruivos caíam desalinhados pela testa, lhe conferindo uma aparência rebelde, o vermelho vivo contrastando com sua pele clara. Observei cada gesto com uma mistura de curiosidade e fascinação.

Uma onda de vergonha me invadiu, tingindo tudo em seu caminho com uma intensidade perversa. Isso persistia desde o... beijo.

Evitamos falar sobre o ocorrido, como se uma barreira silenciosa nos separasse, embora eu sentisse que ele queria expressar algo. Continuamos nossa jornada, agindo como se tudo permanecesse inalterado, mas para mim, tudo havia mudado.

Eu não conseguia mais olhar em seus olhos por tempo demais, sentir o calor do seu corpo próximo a mim como antes, nada de conversas descontraídas. Sempre que estava próxima dele, um calor sorrateiro tomava conta, um formigamento muito parecido com antecipação e uma sensação desconhecida, mas muito ansiosa, quase torturante. E em seguida, tudo desmoronava em um grande constrangimento.

Essa estranheza perdurou por dias, nos perseguindo pelo caminho como uma presença indesejada. E segui, decidida, assim como quando o beijo acabou, a fingir que nada tinha acontecido. Ao que parecia, meu corpo não estava seguindo tal resolução, lembrando a todo momento de cada segundo, clamando por algo que eu me recusava a reconhecer.

O percurso desenrolava-se em um silêncio profundo, mas agitado. Durante o dia, avançávamos com nossa velocidade sobrenatural, aumentando a distância entre nós, os Ignis, a Sociedade Sagrada e, principalmente, o rei. Com a chegada da noite, encontrávamos descanso em abrigos improvisados. Em cada fonte de água que nos deparávamos, fazíamos uma breve pausa, não só para saciar a sede, mas também para nos refrescar. Cada encontro com animais se tornava um alívio para nossos estômagos ávidos.

Segundo Asher, adentramos Calandria, e à medida que cruzávamos a fronteira, as metamorfoses no clima e na paisagem impunham certo temor. Se antes as disparidades entre meu lar e Zeranthia despertavam minha atenção, agora, nesse novo reino, tais diferenças tornavam-se cristalinas. A paisagem se desenhava com árvores secas e retorcidas, enquanto ao longe, montanhas vestiam finas camadas de gelo, delineando o horizonte com sua majestade gélida. O clima, por sua vez, apresentava-se desagradavelmente frio e desconfortável.

Apesar do desconforto, esse caminho revelava-se mais seguro para encontrar uma embarcação, distante dos olhares vigilantes da capital, onde a empreitada seria excessivamente arriscada. Em breve, eu retornaria ao meu lar.

Adoraria ter Elisa por perto, contar sobre o meu desastroso primeiro beijo e então lhe pedir para me dizer o que fazer. Ou talvez, se ainda estivéssemos com os Ignis, Naeli poderia me esclarecer, provavelmente tendo mais experiência do que nós duas juntas.

Asher percebeu meu olhar, e rapidamente desviei a atenção para uma árvore do outro lado, fingindo grande interesse na estrutura retorcida de galhos quase sem folhas à vista, enquanto apertava a túnica nervosamente ao meu redor. Ele continuou sua tarefa, enquanto eu permanecia ali, tentando ignorar tudo, torcendo para que essa estranheza logo desaparecesse.

Algum tempo depois, sentamos em frente à fogueira que acendi com magia. O calor emanando dela não se comparava ao que percorria meu corpo, exacerbado com a presença do vampiro ao meu lado, mesmo que uns bons dois palmos nos separassem. Comemos a carne em um silêncio incômodo, mas eu estava grata por colocar algo no estômago. Asher havia saído mais cedo naquele dia, e retornado com uma ave, algo pelo qual fiquei grata, já que tínhamos consumido todo o estoque da bolsa.

— Mor... — ele falou de repente, sua voz hesitante.

Aguardei que continuasse, e quando não aconteceu, finalmente olhei em sua direção. O que enxerguei em seu rosto, seus olhos brilhando sob as chamas da fogueira, sua expressão serena e compreensiva, me fizeram perder o fôlego. Continuei ali, apenas encarando sua figura, sem saber o que deveria dizer.

— O que aconteceu naquele dia...

O interrompi abruptamente, sem querer ouvir o restante da conversa. Levantei-me e andei nervosamente, meus passos cambaleantes com o nervosismo, procurando criar alguma distância entre nós.

— Não precisamos falar sobre isso. — murmurei assim que encontrei alguma coragem.

— Ah, precisamos, sim. — eu pisquei, e o vampiro estava à minha frente, com uma rapidez assustadora. — Escute, quando nos alimentamos, nossos sentimentos ficam à flor da pele, amplificados. Por isso, sua raiva te atrapalhou tanto quando se alimentou na capital, por isso perdeu o controle.

Ele pegou minhas mãos trêmulas, fazendo uma pequena carícia que enviou arrepios pelo meu corpo. Asher me encarou, até que meus olhos finalmente se fixassem nos dele, e só então continuou:

— Tudo que sentimos é amplificado, tornando quase impossível manter algum controle. — um sorriso discreto e resignado pintou seus lábios — Eu deveria ter explicado isso antes, às vezes esqueço que mal sabe sobre sua própria espécie.

— Eu sinto muito, por... — não conseguia encontrar coragem para dizer o que fiz em voz alta.

— Eu não. — sua voz era firme, decidida — O que você sentiu, o que você quis, é perfeitamente natural, Morrigan. Você não faz ideia do quanto eu desejo você, do quanto tive que me controlar quando me alimentei. Se você quiser, eu passaria a minha eternidade satisfeito se me permitisse ter você em meus braços, simplesmente tê-la comigo.

Fiquei ali, imersa em um breve silêncio, tentando processar as palavras de Asher. Nervosismo e ansiedade dançavam em meu peito, como se o ar, de repente, se tornasse mais denso.

O vampiro percebeu minha hesitação e, com mãos hábeis, começou a trilhar um caminho pelos meus braços, subindo até encontrar minha nuca. Seus olhos, normalmente descontraídos, agora brilhavam com uma intensidade desconhecida. Uma pergunta silenciosa emanava daquele olhar, e uma emoção completamente nova se apoderou de mim. Debatia-me internamente, tentando compreender a complexidade das palavras de Asher e as emoções que transbordavam por todo meu corpo.

Seu toque era firme, suas mãos traçando caminhos desconhecidos pelo meu corpo. O calor da fogueira dançava em sua pele, destacando os contornos de seu rosto. Percebi um lampejo de intensidade em seus olhos, uma chama que queimava com a mesma urgência que sentia em meu âmago.

Em um instante, nossos lábios se aproximaram, selando um acordo não dito. O beijo foi suave, mas carregado de uma paixão inegável. Cada toque, cada movimento, era uma expressão de tudo que não tínhamos coragem de dizer. Eu mergulhei no beijo, explorando sensações que transcendiam o palpável, uma dança de gostos e texturas na qual me joguei sem medo.

Percebi duas verdades simultaneamente: passaria o resto da vida em seus braços, imersa nessa sensação singular. Mas, mais crucial, com Asher, eu encontrava a liberdade de ser eu mesma. Nestes dois meses, não precisei acenar com concordância para lições que desconsiderava, nem ocultar minha natureza, desejos ou anseios. Não era mais uma estranha em uma irmandade, era apenas Morrigan. Ao seu lado, podia ser quem sempre temi ser, sem represálias ou decepções. Era como finalmente encontrar meu lar.

Foi só quando um estalido agudo ecoou nas proximidades que nos vimos abruptamente arrancados de nossa bolha de intimidade. Viramos nossas cabeças em uníssono, os olhos se ajustando à escuridão que se estendia além da luz da fogueira. Galhos quebrando ecoaram novamente, mais próximos, como se algo ou alguém se aproximasse.

Uma realização gelada se espalhou por mim, uma epifania tardia de que estávamos tão mergulhados em nós mesmos que não notamos os perigos que se aproximavam na escuridão, negligenciamos os sons ao nosso redor, cegos para os sinais que a floresta noturna nos oferecia.

Num movimento instintivo, ergui as mãos em posição de defesa, pronta para evocar qualquer feitiço ofensivo que Naeli me ensinara. O coração batia acelerado, o eco dos galhos quebrando ressoava como um sinal de perigo iminente. Não havia tempo para fugir, pelos sons estava claro que estavam próximos e a incerteza do que ou quem se aproximava não dava espaço para planejar ou antecipar o que se seguiria...

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