2. Ambientações

Anderson

Desliguei o motor e observei Gia abrir a porta. Ela me ofereceu um breve sorriso antes de sair. Como de costume, começou a se alongar ao lado do veículo. Permanecer sentada durante tantas horas de viagem, foi para ela uma grande provação. Mais do que para a maioria das pessoas.

Gia não suportava o confinamento.

Nosso primeiro encontro foi num parque público. No dia em que a conheci, ela se alongava exatamente do mesmo jeito que agora. Parece que foi ontem, embora já tenham se passado cinco anos.

Tão graciosa, a minha Gia, que não pude deixar de reparar em sua beleza morena, de cabelos rebeldes, que não seguiam as convenções da moda. Isso por si só, já depunha sobre a personalidade de minha esposa.

Autêntica demais para se deixar caber dentro de um padrão.

Como, aliás, penso que todo artista deva ser.

O que um cara como eu, que passa a maior parte do tempo contemplando as estrelas, ou com o nariz enfiado nos livros, fazia num parque? Bem... O veterinário disse que o meu parceirão de longa data precisava de exercício (e o preguiçoso do dono também). Assim, resolvi começar a caminhar com Otis duas vezes por semana. Duas, estava de bom tamanho!

E foi assim que encontrei a minha futura esposa. É, mano... O destino costuma ser uma coisa sem noção de tão interessante! Não dá para explicar as engrenagens envolvidas. Conspiração cósmica? Pode ser...

Só sei que enrolei o mais que pude, na esperança de que aquela deusa me notasse. E adivinha! Ela me notou... Rolou uma paquera. Sorrisos e olhares... Sabe como é... Então, eu me aproximei com o pretexto de levar o Otis até uma moita muito específica, pertinho de onde ela estava.

Não que Otis realmente quisesse ir até lá, ou estivesse apurado para fazer Xixi (o cão já tinha esvaziado o tanque). Na verdade, ele fazia força para caminhar na direção contrária. Estava acostumado a me arrastar, quando desejava ir a algum lugar. Desta vez, contudo, ele é que foi arrastado por mim!

Gia notou a nossa aproximação. Ela nos encontrou no meio do caminho – bem a vontade e descontraída – com o pretexto de agradar o cachorro carrancudo (sim, carrancudo!). Conversa vai, conversa vem... O resto é história.

Até hoje Gia alega que foi Otis quem a conquistou. Eu teria entrado no "negócio" como brinde.

Lembrar de Otis me causou tristeza. Fiquei com saudades do meu parceirão. Ele estava velhinho demais para ficar num hotel para pets, ou para seguir viagem com a gente. Além do mais, ficaríamos no hospital. Não havia como ele permanecer conosco. Assim, Otis foi para a casa da minha mãe.

Como toda vovó coruja, Dona Célia mima tanto que ele nem deve se lembrar da gente.

Lembro de ter comentado isso com Gia, em tom de brincadeira, quando estávamos deixando a cidade.

– Lembra sim – dissera Gia. – Você não viu a carinha dele, quando a gente se despediu?

Claro que vi... Não quis comentar que, para mim, o cão me olhou como se nunca mais fosse me ver de novo. Tamanha tristeza só espelhava a minha própria. Mas, como sempre, empurrei o sentimento para baixo do tapete. Não queria que Gia visse o quanto eu estava...

... Com medo do que fosse acontecer, dali para frente.

De volta ao presente, a realidade nos aguardava sob a forma de uma caixa de concreto, com dois a três andares, fachada revestida em branco e azul desbotado, com janelas espelhadas e o letreiro escrito: Centro de Tratamento Oncológico São Francisco.

Com um suspiro, eu me forcei a sair do carro.

Gia observou discretamente o esforço que fiz para ficar de pé. Mas não tão discretamente que eu não tenha reparado. Ela queria me deixar à vontade, mas ao mesmo tempo, sentia–se insegura do que fazer, como me ajudar. Ou quando oferecer ajuda...

Eu não queria ajuda. Aceitá–la seria o mesmo que reconhecer que eu estava perdendo a batalha.

Dei a volta no carro e retirei a mala de dentro do bagageiro. Não estava pesada, mas me custou muito erguê–la e depositá–la no chão, sem parecer que eu tivesse levantado pesos pesados.

Depois disso, pareci um balão murcho. Perdi o resto de gás que me restava. Mesmo assim, eu precisava andar do carro até o hospital.

O estacionamento estava praticamente deserto àquela hora da manhã.

O–oh, falei cedo demais. Outro veículo acabava de chegar. Um daqueles modelos esportes caros, provavelmente alugado. Eu era um vidente? Não, só que o motorista esqueceu de tirar o adesivo do para–brisa. Devia estar com pressa.

Observei por mais algum tempo, tentando adivinhar como seria o condutor, ou a condutora. O carro passou por nós, fez a curva e começou a manobrar com habilidade para estacionar do outro lado.

A porta se abriu em seguida, fazendo "ding–dong". Um rapaz alto e forte saltou. Vestia bermuda e mocassins de couro cru. Ele também parou para encarar a gente por sobre os óculos de sol Ray–ban, antes de se inclinar para o interior do carro. Seria paciente ou parente de paciente?

Bom, acho que médico não era...

– Deixa que eu carrego a mala pra você, amor – Gia pediu, tentando arrancá–la de minha mão; o que me distraiu do que fazia o outro sujeito.

Com uma careta, afastei o braço, tirando a mala e a mochila do seu alcance.

– Não sou um inválido – respondi, fazendo cara feia. Ela sorriu sem graça e me abraçou pela cintura.

– Eu não quis dizer isso, querido – sussurrou ela contra o meu ombro.

Gia não se importava com demonstrações públicas de afeto. No começo, eu ficava meio constrangido. Com o tempo, passei a sentir como se o dia estivesse nublado e frio, quando ela não me tocava.

Baixei a tampa do bagageiro e me voltei para ela.

– Eu sei – concordei, inclinando–me para lhe dar um selinho. De mãos dadas, caminhamos na direção do hospital.

–––

Plínio

Que legal! Eu me senti de volta à Austrália, ao avistar aquele casal saltando do fusca customizado, pintado de flores lilases em um fundo branco. Meu pai diria que era um típico casal de hip– pies dos anos 70. Mas lá, na Austrália, habituei–me ao jeito informal da galera. Encontrei todo o tipo de gente no meu trabalho, e me sentia grato por isso.

Já o senhor Dantas, meu pai, os veria com cautela. Eu conseguia até imaginá–lo criticando. Meu velho foi educado numa época em que o padrão era mais valorizado do que a beleza da diversidade. Só que até ele levava o conceito ao extremo.

Ao olhar para aqueles dois, ele iria reparar que o cara estava barbudo e cabeludo – a massa revolta sob um boné decrépito, rivalizando com o Capitão Caverna; notaria que vestia uma camisa xadrez tão velha que mal dava para lhe distinguir as cores. Diante do conjunto, sentenciaria que um homem com tal aparência não era digno de confiança, tanto quanto o próprio filho caçula (no caso, eu).

A mulher que estava com o barbudo, por outro lado, não deixaria por menos, na análise "qualificada" de meu pai... Seu Dantas diria que tem uma juba no lugar dos cabelos – rivalizando apenas com a Gal Costa no ápice da carreira.

Uma linda mulher, sem sombra de dúvida. A cabeleira escura destacando–se contra um vestidinho branco e leve, estampado com florezinhas nas mangas e no decote. Trajes insuficiente para um dia ventoso e gelado, como aquele. E as sandálias? Abertas. Do tipo egípcias...

De fato, meu pai ficaria escandalizado.

Eu me sentia ressentido, às vezes, por conseguir ver as coisas e as pessoas pela ótica do meu pai. Antes que eu voltasse para o Brasil, a terapeuta havia me perguntado algo curiosamente conexo. Se eu teria ido tão longe – a Austrália – a fim de escapar do controle. Como se o fato de construir um negócio e começar vida nova do outro lado do oceano, pudesse me fazer esquecer de sentimentos, dores e lembranças que, na verdade, eu carregava dentro de mim. Foi uma pergunta que ela não quis que eu tentasse responder durante a sessão. Mas para mim mesmo.

Quando achasse que estava pronto.

Agora, olhando para aquele casal lindo, eu me recordava da pergunta, temendo reconhecer a resposta. Eu não possuía os mesmos valores que o meu velho, em relação às pessoas e ao mundo. Mas temia me tornar inacessível, intransigente e manipulador como ele. Meu pai via o lado negativo e crítico de tudo. Às vezes eu me flagrava barrando pensamentos que julgava serem mais dele do que meus.

Tornar–me igual ao meu pai, ou ter a sua sombra influenciando as minhas escolhas de vida... Se este não fosse o meu medo mais profundo, era a única resposta que me ocorria, diante da pergunta da terapeuta.

–––

Equilibrei a pasta e o notebook debaixo do braço, pendurei a mochila no ombro e bati a porta do carro. Caminhei devagar, travando as portas com o controle. Quis dar tempo para o casal hippie passar na minha frente. Acho que o que eu queria, mesmo, era vê–los aquecidos lá dentro.

Caramba! Tinha me esquecido do frio danado que fazia no sul do Brasil! Podia ser cruel – e estava sendo, naquele exato instante. Estremeci só de me imaginar usando roupas e calçados tão leves quanto os deles. A saia da moça esvoaçava com o vento gelado. Mas, acredite se quiser, o casal parecia bem à vontade.

Verdade seja dita, eu também não estava adequadamente vestido para enfrentar aquele clima. Ao menos, em minha defesa, foi uma questão de falta de tempo. Vim direto do aeroporto. Por sorte, encontrei uma loja a caminho do hospital, onde comprei um par de roupas extras, uma jaqueta grossa, e sapatos fechados. Estavam na mochila, apenas esperando uma oportunidade para me trocar. Até lá, eu tremeria em meus mocassins.

Quando cheguei à recepção do hospital, o casal estava diante do guichê de atendimento. Coloquei–me atrás deles, e esperei a minha vez. A mulher sorriu e o homem me cumprimentou com um aceno cordial de cabeça. – E aí? – murmurou.

– Beleza!? – respondi.

A conversa morreu, e esperamos em silêncio a nossa vez. A fila não era longa, mas demorou muito para andar.

O tédio já me dominava, quando relanceei os olhos pelas pessoas sentadas em frente ao guichê, com variadas expressões de cansaço e abatimento. Avistei uma família mais ao fundo – um casal idoso, e uma garota do tipo mignon, de cabelo preso num rabo de cavalo. Parecia ser a filha, pois tinha os braços passados pelos ombros do casal, de maneira protetiva. Ela batia o pé com impaciência e olhava toda indignada para o vigia.

– Calma, querida! – disse o idoso. A companheira acrescentou:

–Logo poderemos subir.

Um rapaz surgiu com um copo de café e lhe ofereceu. A espevitada sorriu, pegou o café, mas quando olhou para o segurança do hospital, fez cara feia de novo.

– Qual é? – reclamou, apontando o dedo para o relógio de pulso, como quem diz: "tá quase na hora".

– Nove horas em ponto – retrucou o vigia, resoluto.

A espevitada pareceu–me uma estranha figura. Bonita sem dúvida, mas usava uns cílios postiços que faziam dela uma espécie de boneca. Mais uma vez, procurei espantar a imagem do meu pai analisando–a, em minha mente.

Mais à direita, outra moça chamou–me a atenção por causa da magreza e do ar desamparado. Fisicamente, era o oposto da espevitada: sem curvas, rosto comum e desprovido de maquiagem, enfim... Meu pai a chamaria de "Madalena Arrependida". Eu, de resignada, mesmo.

A garota aguardava atrás da catraca, segurando um crachá na mão.

Não percebi que a espevitada se levantou e veio na minha direção. Para o meu total espanto, cutucou–me com o dedo indicador. Enquanto ainda registrava o ato tão inesperado quanto absurdo, ela apontou para frente, de maneira teatral. Como um autômato, acompanhei com os olhos a direção daquela unha comprida, pintada de vermelho–escândalo. (E o dedo dela apontava para a atendente do guichê, a me olhar fixamente com ar de aborrecimento). Alguém soltou uma risadinha.

O casal hippie já fora atendido e aguardava perto de onde a "Madalena" se encontrava.

Dei alguns passos em direção ao guichê de atendimento. Meus olhos baixaram para o crachá preso ao jaleco da atendente; lia–se: Aricleyde.

– Pois não? – perguntou a dita moça, num tom de "anda logo que eu não tenho o dia todo".

– Bom dia, Aricleyde. como vai? – Ela não respondeu, de modo que prossegui: – Eu me chamo Plínio Alves, filho e acompanhante do Sr. José Dantas Alves.

Ela murmurou "Um instante" e teclou no computador.

– O acompanhante do Sr. Alves encontra–se com ele, lá em cima.

Confuso, eu me inclinei para o guichê. Logo recuperei a linha de raciocínio.

– O meu irmão Zeca, digo José Carlos, deve estar com o nosso pai desde a internação. Eu vim pra revezar com ele.

A expressão dela permaneceu inalterada.

– Ele precisa descer para o senhor subir.

– E como ele vai saber que estou aqui?

– Para isso existe o celular.

Com um sorriso amarelo, saquei o aparelho e chamei o meu irmão pelo WhatsApp. Enquanto esperava, pensei que Aricleyde poderia ser um pouquinho mais tolerante, considerando a fragilidade com que as pessoas chegavam ao hospital – preocupadas, desesperadas, sofrendo... As respostas poderiam ser mais gentis, mais compreensivas. Nem todo mundo consegue pensar nas opções e alternativas óbvias, em tais circunstâncias.

Ainda mais eu, que quase não preguei o olho no avião; e ainda estava sofrendo os efeitos do fuso horário.

Do outro lado, Zeca respondeu com chamada de voz. – Alô. Não perdi tempo com preâmbulos.

– Cheguei. Estou na recepção. Desce aqui.

– Ah... – a voz de meu irmão soou entre surpresa e aborrecida.

– Então, resolveu aparecer.

Respirei fundo, controlando o tom de voz.

– Como assim? Eu disse que viria. Olha... – consciente da plateia ao meu redor, baixei a voz ainda mais. – Você tem que descer para eu poder subir.

– Já estou indo... – respondeu Zeca, num tom preguiçoso e irritante. – Só vou me certificar de que o papai tem tudo o que precisa.

Abri a boca para dizer que se ele precisasse de algo, eu mesmo providenciaria, mas desisti. Melhor deixar o Zeca ter a última palavra, desde que eu pudesse entrar de uma vez.

Do outro lado do guichê, Aricleyde pigarreou. Olhei para trás e vi que alguém esperava para ser atendido. Desliguei o celular e saí da frente do guichê, para dar a vez a outra pessoa. Fui para o lado dos banheiros, onde não ficaria no caminho de ninguém.

As pessoas olhavam para mim, com curiosidade. Que ótimo! Nem bem cheguei ao hospital, e já estava numa "situação" com o meu querido irmão.

Notei que a "Madalena Arrependida" também me observava. Não parava de rodar o crachá no dedo indicador. Dei as costas a ela e me distraí com o movimento no estacionamento; o balançar das árvores aumentou, indicando que o vento estava soprando mais forte. Forte e gelado. Aquela noite prometia ser algo do tipo "Frozen". Enquanto esperava, retirei o casaco da mochila e o vesti. Senti–me aquecido de imediato.

Zeca finalmente apareceu no alto da escada.

A "Madalena" desencostou da catraca para que ele pudesse passar. Zeca inseriu o crachá no leitor, emitiu um bip suave, e ele passou para o lado da recepção. Eu o encontrei no meio do caminho.

– Que bom que você resolveu aparecer! – disse ele, em tom divertido, os braços abertos e um sorriso forçado nos lábios. Ele fez que ia me abraçar, porém, mal me tocou antes de se afastar alguns passos. Olhou–me de cima a baixo.

– A riqueza lhe caiu bem! Está tão bronzeado!

Como se trabalhar ao ar livre, sob o sol implacável da Austrália, fosse um sinônimo de boa vida. Levantei a mão, gesticulando de leve.

– Não me trate como um convidado – baixei a voz, tentando não ser ouvido pelos demais. No entanto, a "Madalena" não ar– redou o pé de perto da catraca. Ficou ouvindo a nossa conversa, na maior cara dura. Paciência. Se deixasse o Zeca perceber o quanto essas conversas cínicas, em público, aborreciam–me, ele iria adorar. E atacaria com mais insistência.

– Vai começar com os seus melindres? – disse ele, encarando–me com desprezo.

– Não, mano, vou terminar o que você começar – avisei, pois estava farto daquilo. – Quer saber, não vou mais tolerar os seus desaforos. Se falar o que não deve na frente dos outros, esteja preparado para ouvir o que não quer.

– Por que tanta raiva acumulada? Ah, já sei... O seu voo não foi satisfatório. Não fazem mais primeira classe como antigamente, né?

Dessa vez, fui eu quem o encarou com desprezo. Atrás dele, a "Madalena" estava contendo o riso. Evitei olhar diretamente para ela.

– O crachá – exigi, erguendo a mão. Pretendia, assim, encerrar a conversa desagradável.

Zeca depositou o crachá na minha mão, em silêncio. Também não falei nada. Contornei os dois – o meu irmão e a "Madalena" enxerida – e fui direto para o guichê.

Quando Aricleyde finalmente se dignou a me atender, senti um pouco de alívio em preencher o cadastro. Ela recitou de cor os horários e as regras. Não entendi a metade, pois minha mente estava recheada de algodão. Acho que tinha a ver com o fuso horário. Ao final, ela mencionou que todas as regras estavam no panfleto, na caixa ao lado do guichê. Peguei um exemplar e me virei para a catraca.

Quando já estava nos degraus da escada, ouvi às minhas costas a voz da "Madalena" – uma voz suave e tão frágil quanto a sua aparência.

– Você não pode subir. Ainda não são nove horas. Fiquei furioso.

– Observe–me.

Continuei subindo até alcançar o segundo andar, onde me deparei com uma porta, dessas "de emergência"... Com um gesto grandiloquente passei o crachá, empurrei a alça pesada da porta e...

Nada aconteceu. O crachá não funcionou. Eu estava trancado do lado de fora. Então, caiu a ficha. O crachá só faria a porta abrir quando fossem nove horas. Mas nada no mundo me obrigaria a voltar para o térreo. Preferi esperar ali mesmo.

–––

Plínio

Nove horas em ponto e o pessoal que esperava lá embaixo, começou a subir. Escutei os passos na escada. Quis entrar antes que me alcançassem, para que não me vissem ali, parado, como um idiota – mas não deu! O "negócio" não funcionou. Tentei passar o crachá quinhentas vezes.

A "Madalena" surgiu antes dos outros, no alto das escadas. Aproximou–se de mim e levantou a cabeça com um olhar de satisfação. Mostrou o próprio crachá e o levou lentamente à frente do sensor, o qual mudou de vermelho para verde, emitindo um apito sonoro. A garota empurrou a alça da porta e fez um gesto para que eu a precedesse. Encolhi os ombros. "Uma vez em Roma"...

Enquanto caminhávamos lado a lado, reparei vagamente que o topo da cabeça dela dava na altura do meu peito. Ela devia estar pensando o mesmo, ao inverso, pois disse:

–Você é muito grande para um surfista.

Que coisa...! Respondi com um arquear de sobrancelhas. Ela sorriu, enquanto atravessamos outra recepção, com sofás e uma televisão de tela grande aparafusada na parede – estava ligada num dos programas da tarde.

Aquela não era bem uma recepção, mas a sala de espera do andar, o qual se alongava para além dos elevadores. (Nossa, eu poderia ter vindo de elevador!) No canto extremo havia uma porta–janela de vidro, de correr, que dava para um terraço coberto, largo, com mais sofás e mesas, algumas de vime. A vista da rua era excelente e alcançava a área verdejante do outro lado.

Eu até acharia bonito, ou de bom gosto, mas estava mais preocupado em não me perder. O lugar parecia um labirinto.

– Não vai perguntar como sei que é surfista? – Ela tentou puxar conversa.

– Não.

– Por quê? – ela pareceu mais divertida, ou mesmo curiosa, do que chateada com o meu corte.

– Porque não sou um surfista – respondi no mesmo tom.

– Eu vi a sua foto na internet – explicou, atenta às listas amarelas pintadas no chão. Eu viria a descobrir mais tarde que elas indicavam os caminhos para diferentes lugares, lá dentro. Como as migalhas de pão no labirinto do Minotauro.

Fiquei para trás, entretido em mapear todas as listas, en– quanto ela se adiantava ao balcão para cumprimentar a enfermeira com familiaridade.

– Oi, Nanci! Esse aqui é o... – A "Madalena" olhou para trás, pedindo sem palavras a minha colaboração.

Inclinei a cabeça, ligeiramente divertido. – Sou o Plínio.

Isso! O Plínio veio para ficar com aquele senhor do 2A, o pai do Zeca Alves – disse a palavra "aquele" com mais ênfase. O que me levou a crer que o meu pai já conseguiu ficar famoso num curto espaço de tempo.

Eu deveria esperar por isso. Papai sempre foi um péssimo paciente, ainda mais se tivesse que ficar internado. Ninguém conseguia tolerá–lo por muito tempo. Aparentemente, apenas o Zeca conseguia tal façanha. O filho perfeito e adorado.

A enfermeira confirmou a minha suspeita, com uma leve ex– pressão de contrariedade. Mas, recuperou–se muito rápido, oferecendo–me um sorriso afável.

– Seja bem vindo, e qualquer dúvida, é só nos procurar.

Sorri de volta, agradecendo. Aquela foi a primeira recepção calorosa que tive, desde a minha chegada.

– E o meu padrinho? – A "Madalena" perguntou à enfermeira, com um toque de ansiedade na voz.

– Está bem, fique tranquila, Andreia.

– Ah, que bom! – disse a moça, que agora eu sabia se chamar Andreia.

Se elas se tratavam pelo nome, é porque Andreia já devia estar lá, acompanhando o padrinho, há um bom tempo.

Ela voltou a andar e eu a segui, enquanto ela seguia as listas amarelas.

– Então... Está aqui há muito tempo? – perguntei, puxando assunto.

–Hoje faz quatro dias – ela respondeu, em tom resignado. Balancei a cabeça.

– Você disse que viu uma foto minha na internet, mas não lembra o meu nome?

– Acho que você de sunga é mais "memorável" do que o seu nome – ela respondeu, na lata.

Deixei escapar uma risada incrédula. Senti–me um pouco mais relaxado. Se a garota era espirituosa, ou espinhosa, eu ainda não decidi. Mas de uma coisa, tinha certeza: eu gostei.

– Falando sério... – ela voltou a dizer. – A foto estava numa matéria sobre a fabricação ou exportação de pranchas. Você segurava uma delas, saindo do mar azul, com a pele brilhando de gotículas de água. Eles falaram alguma coisa sobre...

– ...Eu estar "entre os dez microempreendedores do Estado" – completei por ela, afinal, conhecia muito bem aquela reportagem. Foi a primeira que fizeram sobre o meu negócio.

– Só não sei se micro é a palavra certa para você agora, né? – ela zombou.

Meneei a cabeça, sorrindo.

– O negócio tem que crescer. E desde aquela matéria, eu tive sorte.

Sorte não era bem a palavra. Dei duro para chegar onde cheguei, mas isso não vinha ao caso.

– Você fez bem em mudar o foco, porque, como eu disse – ela riu, parando na divisa da sala de espera e o corredor. – Você é muito grande para ser um surfista bem sucedido.

Desviei os olhos do ambiente do hospital para a silhueta de Andreia e reavaliei a minha primeira impressão. Não era tão desprovida de atrativos... Suas curvas discretas poderiam ser interessantes para um olhar mais atento... Pequenas e interessantes curvas. Dando de ombros, tentei simplificar:

– Dentro da água, tanto faz se você é tubarão ou anchova. A velocidade é que conta.

Ela riu, surpresa. Virou para trás casualmente, e percebeu que eu estava tentando me localizar. Sinalizou para que a acompanhasse.

– E você é um tubarão? – observou–me com um olhar matreiro.

– Não, sou uma anchova grande e preguiçosa – respondi, com o meu sorriso mais caprichado. Afinal, estávamos adentrando o campo da paquera. De um jeito maluco e surreal (num corredor hospitalar, pelo amor de Deus!). Contudo, Xavecar não mata, nem tira pedaço.

– É aqui! – ela apontou para o lado direito do corredor. – A segunda porta é a que você procura.

Lancei um olhar naquela direção e avistei o número do quarto "2A", em uma placa aparafusada ao lado do batente da porta.

– Certo, Senhor Anchova Grande e Preguiçosa, boa sorte então... Digo, com o sofá de acompanhante – comentou a moça de maneira enigmática. – O seu tamanho aqui não vai ajudá–lo nem um pouco. Pelo contrário...

Fiquei sem entender, enquanto ela se afastava – analisei o movimento do jeans justo por um segundo a mais; e, então, quando Andreia desapareceu do lado esquerdo do corredor, baixei a cabeça para o crachá que eu segurava entre o polegar e o indicador. Com um suspiro, conferi o número do quarto, "2A", e caminhei na direção certa.

–––

A porta do 2A estava fechada, e havia outra chave pendurada na fechadura. Relanceei o olhar pelo corredor. As portas dos outros quartos estavam abertas. Só a do meu pai, que não. Comecei a cogitar o motivo... Provavelmente, Seu Dantas já dera os seus famosos esparramos, ou feito alguns de seus comentários desconcertantes... Os enfermeiros podem ter achado melhor deixar a porta fechada para não importunar os outros pacientes. Ou vai ver, ele estaria assistindo à televisão no volume máximo, sem se importar com onde estava... Prática recorrente, eu me recordava muito bem.

E não era apenas a idade avançada que fazia essas coisas...

Meu pai sempre foi assim, desde que eu me entendia por gente.

Bom, não adiantava nada eu ficar aqui, parado, olhando para a madeira pintada da porta. Avancei alguns passos, es– tendi a mão e toquei na maçaneta. Nesse instante, meu coração acelerou. Os músculos do meu pescoço enrijeceram. Senti um princípio de ansiedade aguda.

Fazia tempo que não me sentia assim. Mas também fazia tempo que eu não via o meu velho, e seu olhar de desaprovação.

– Plínio! – chamou Andreia, espionando–me do extremo oposto do corredor. Ela apoiou a face no batente da porta. – É normal se sentir assim.

Balancei a cabeça, então, perguntei:

– Assim como?

– Perdido. Apavorado. – Ela deu de ombros. – Com vontade de sair correndo.

Balancei a cabeça outra vez, sem encontrar a minha voz. Garota, você nem me conhece! Como pode saber tanto!

–Você tem que deixar vir à tona e te dominar... – ela mudou o peso do corpo de uma perna para outra. – Permita–se sentir isso por três segundos.

– Certo – concordei, achando a ideia idiota e me sentindo um idiota. Mas lá estava eu, concordando.

– Ei, Senhor Anchova! – ela chamou de novo e sorriu. – Seus três segundos acabaram. Agora, vá lá e aguente firme, pois o seu pai depende de você. Ele é o paciente. Não você. E no momento, ele é tudo o que importa.

Dito isto, Andreia entrou no próprio quarto.

Respirei fundo, encarei aquela porta; então, balancei a cabeça pela terceira vez.

– É tudo o que importa – repeti baixinho e girei a maçaneta. O som da TV ligada num jogo de futebol não me chamou tanta a atenção, quanto o som raivoso da voz do meu pai xingando o aparelho.

– Perna de pau! Imbecil! Anda logo, faz este gol, seu idiooota! Apesar dos Xingamentos e da sensação ruim que me provocavam (eu os escutei boa parte da vida), entrei no quarto com um sorriso no rosto. Meu pai nem desviou os olhos da tela. Estava concentrado demais no jogo, ou assim me pareceu.

Conferi o desenrolar da partida na tela – presa ao suporte de parede. Cinco minutos para o final do primeiro tempo. Atlético Mineiro versus Grêmio do Rio Grande do Sul. Meu pai era Inter, mas quando se tratava de defender o Rio Grande do Sul... Só havia uma bandeira, como ele mesmo costumava dizer.

– Passa logo esta bola, idiota! Otário! – berrou, com seu vozeirão, fazendo com que eu estremecesse de vergonha. Fiquei com medo de que a enfermeira viesse reclamar, mas ninguém apareceu.

Por sorte, a cama ao lado da de meu pai não estava ocupada. Algo que poderia mudar a qualquer momento. Eu não tinha qualquer ilusão de que permaneceria livre de passar vergonha, durante toda a minha estada.

Em relação ao nosso pai, eu sabia muito bem o que esperar.

– Oi, papai! Quem está ganhando? – perguntei, sentando na poltrona ao lado da cama dele. Aproveitei para ver como ele estava.

Ele tinha soro e remédios injetáveis descendo por um acesso à veia, a mão toda envolta em esparadrapos. A pele parecia arroxeada ao redor.

– Os come-quieto! – respondeu ele, de má vontade. Tive que me lembrar rapidamente de quem ele estava falando. Ah, tá certo, dos mineiros. De repente, meu pai desviou os olhos da TV para mim.

– O que veio fazer aqui? – perguntou, num tom seco. Controlei a respiração.

–Vim cuidar do senhor.

– Não precisa! O Zeca tá indo muito bem.

Eu me recostei na poltrona e estiquei as pernas. Os pés ficaram de fora. Dei–me conta de que não cabia nela. Finalmente, entendi o que Andreia quis dizer com "O seu tamanho aqui não vai ajudá–lo nem um pouco". Se não bastasse isso, a poltrona era dura, desconfortável.

Antevi noites de tortura chinesa.

– Ouviu o que eu disse? – Papai perguntou. – Não preciso de você aqui.

– Zeca tem que descansar, também – expliquei, a título de justificativa.

Seu Dantas massageou a nuca e voltou a se concentrar na tela. Ponto para mim.

O humor dele devia estar pior do que o de costume, por causa da dieta forçada e da mão toda espetada para receber a medicação. Mas, principalmente, porque tirar o churrasco e o cigarro dele é o mesmo que provocar um leão com dor de dente. Eu podia sentir as ondas de sua irritação e frustração quebrando em cima de mim, como as ondas do mar quebram nas pedras.

Ele mascava o chiclete de maneira escandalosa – como sempre, de boca aberta e fazendo barulho, enquanto acompanhava o jogo. Vidrado na tela.

Levantei da poltrona dura e abri a tampa da mesinha móvel, testando o seu funcionamento. Trouxe–a para junto da poltrona, onde instalei o notebook.

– Essa mesa é para eu me alimentar – disse o velho, em tom raivoso, de advertência.

– Eu sei os horários das refeições.

As sobrancelhas do velho se ergueram, em sinal de zombaria.

– Ah, sabe, é?

Não respondi. Contando mentalmente até dez, liguei o notebook para trabalhar um pouco.

– Bom! – disse ele, mascando o seu chiclete. – Vai fazer as tuas coisas. Se for para isso que veio, devia ter ficado na Austrália.

A tela do notebook se iluminou. Enquanto o Windows trabalhava, encarei o meu pai de esguelha.

– Então, o que supostamente eu deveria fazer?

– Cuidar de mim.

– Estou aqui para isso.

Ele bufou de novo e voltou a fitar a tela do televisor. Estava começando o segundo tempo do jogo.

–––

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