Mulheres (III)
O rodoanel contém um relevo proeminente no cenário. A estrada se afunda na paisagem mais adiante na direção de Flamingos. No horizonte, às vezes é possível avistar um efeito espectral de algum prédio nos céus. Naquele fim de tarde, enquanto o sol se despede pela janela traseira do carro de Affonso, uma coisa incomum chama a atenção dos motoristas presentes no local.
Ao oeste d'onde estão, uma estranha aura avermelhada toma conta de um ponto específico no céu do horizonte. Pelos noticiários, houve comentários a respeito desde alguns dias antes, mas de todo modo não esperava algo tão estranhamente real como falavam. Semelhante a uma cortina de luz vermelha, não um holofote... mas simplesmente como se uma parte da atmosfera fosse realmente daquela cor. Não há dúvidas de que aquilo seja na direção de Flamingos, com árvores, torres elétricas e enormes rochedos cobrindo aquilo até o horizonte.
Em pouco tempo, as pessoas começam a aproveitar a morosidade da fila para fazerem filmagens e tirar fotos enquanto aproveitam um arzinho do lado de fora. Nada que Gerson não aprecie também. Como um bom pesquisador e aspirante a jornalista, ele faz algumas filmagens e manda para Affonso e Leomar. Em seguida, ele envia uma mensagem explicando o motivo de estar em José Framergard até aquele momento ainda, obtendo resposta de Leomar para que retornasse ao hotel, mas Gerson está decidido. Não perdera o dia todo à toa. Além disso, se aguardasse até amanhã para sair, teria que pegar a fila para sair da cidade do mesmo jeito. Tinha que obter respostas o mais rápido possível, saber do paradeiro de Artur e sobre sua pesquisa. Jogaria fatos expostos, mesmo com a esposa do amigo lá. Seja lá o que for o que Artur tivesse descoberto antes daquilo tudo, teria que compartilhar com ele naquele momento.
A tarde abafada começa a dar lugar a um vento frio carregado de nuvens. Não é algo espesso ou ameaçador suficientemente para prometer um alagamento em algum ponto da estrada, atolando o veículo de Affonso juntamente com toda a pesquisa. Está mais para uma frente fria ou uma eventual promessa de chuvisco. Assim que a noite chega e as nuvens tomam conta de quase todo o céu, a garoa começa seu espetáculo fantasmagórico pelo cenário, embaçando os vidros do veículo. Apesar de estar à noite e não conseguir enxergar quase nada no horizonte, é possível ver, sob efeito da luz lunar em determinados intervalos, chuviscos avermelhados em alguns pontos no horizonte.
O vidro da janela está tão embaçado que não dá para ver quase nada dentro no momento em que Gerson entra no carro. A garoa de certa forma o deixa com sono. Ele reluta por algum tempo até chegar bem próximo à rotatória. O ronco do motor e o balanço do veículo não contribuem para afastar o sono. Seus pensamentos variam entre sua curiosidade em desvendar logo aquele mistério das pesquisas do amigo e sair depressa daquela fila.
O barulho da água, ciscando a lataria e os vidros do carro, dão uma sensação única de conforto e até acabam por passar um veículo na fila que está parado. Todos da fila fazem a volta, deixando o veículo do dorminhoco para trás. Gerson sente falta de uma coberta quando a fila volta a parar o carro de Affonso bem no retorno. Ele pensa em aproveitar mais um pouco a paisagem no horizonte e se abaixa para descer o encosto do assento, voltando a repoltrear-se, quando é assomado por um barulho estranho na lataria.
De pronto, o barulho não soa tão estranho, mas assusta. Algo semelhante a uma pedra do tamanho de um punho deixaria qualquer barulheira como aquela mais que evidente e, por isso, pensa em sair para dar uma olhada. Eis que sua prontidão em sair é interrompida por outro susto.
No meio da via, um pouco avante da rotatória, uma mulher com os olhos mais vibrantes que Gerson já viu: pele morena, cabelos muito escuros e escorridos. Têm a impressão de já a ter avistado em algum lugar. De início, as informações do que seus olhos contemplam são muito vagas, pois o vidro embaçado e as gotículas de água lambendo o lado de fora do vidro distorcem significativamente a imagem da mulher.
Após um tempo, Gerson percebe uma aproximação da moça. À medida que ela vem, os detalhes de sua fisionomia se tornam mais nítidos. Traços finos, o nariz e os lábios são os mais aparentes, e apesar disso, seus beiços são estranhamente marcantes. A imagem parece transmitir alguma maquiagem esquisita, como se quisesse manter uma pele mais pálida do que possui. Gerson espera que a moça se dirija a um dos veículos da fila, apesar da estranha atitude de ficar em uma chuva numa hora daquelas. A dois metros da janela do veículo, ele ajeita os óculos, estranhando ainda mais não só a atitude da mulher, como seu traje. Ela veste uma espécie de espartilho, estofado. Seu avanço para o carro de Gerson continua até a mesma ficar a um palmo da janela. A mulher de cabelos e olhos negros exibia um semblante estranhamente triste por trás de uma maquiagem borrada.
Por um momento, Gerson pensa tratar-se de alguma pedinte ou algo do tipo, mas os cabelos da moça estão até que bem cuidados para uma simples moradora de rua, o espartilho não parece ter alguma sujeira ou algum sinal demonstrando um desuso similar a trapos que se veem nos subúrbios das cidades da linha vermelha. Em verdade, a roupagem em que ela está é uma peça íntima que caíra em desuso desde a década de quarenta. Longe de ser algum observador da moda feminina, mas os livros de ficção histórica lhe marcaram profundamente a adolescência, e quase sempre sua afeição por clássicos lhe rendeu uma série de detalhes assombrosos para um garoto de 15 anos.
Aquela mulher parece algo saltado das páginas de algum clássico de Isaac Asimov. Uma aparência bela, mas de semblante não muito convidativo. É como uma mistura de tristeza e raiva, ou talvez frustração. Fato é que tal aproximação faz Gerson mover-se para destravar a porta da van, o que faz a moça recuar. Tal reação anula qualquer receio do investigador em relação à desconhecida, notando só então uma espécie de sujeira borrada em um dos braços da moça, o que o faz deduzir que a maquiagem estranhamente borrada não seria resultado apenas do chuvisco lá fora, mas sim fruto de lágrimas enxugadas com o braço.
"Ou estava apenas tentando secar o rosto', examina-a irrequieto. Por que imaginaria lágrimas antes da chuva como justificativa? Gerson tenta dizer algo para que ela se acalme enquanto faz uma nova menção de abrir a porta do veículo, o que causa um estranho apavoro na mulher, fazendo-a começar a regredir de costas. Gerson esquece qualquer cautela e tenta abrir o pino, mas o mesmo escorrega por entre os dedos. Por mais que puxe o pino da porta, ela não sobe.
— Ah não! Esse problema de novo! Abre droga!
A garoa começou a aumentar. Gotículas maiores de água se esparramam sobre a cobertura do automóvel, aumentando gradualmente o barulho dentro do veículo. A moça se reaproxima da janela, mexendo a boca e apontando para dentro do veículo. Gerson tenta compreendê-la, que, no entanto, não é tão fácil já que não consegue escutá-la. É como estar assistindo alguém falar pela televisão, no mudo.
— Eu não estou te ouvindo, moça. — reclama ele, soltando o pino da porta e se concentrando na boca da moça para tentar fazer uma leitura labial.
Talvez ela também não o ouvisse, mas por algum motivo ele duvida um pouco disso no momento em que a estranha começa a gesticular freneticamente os braços como em uma tentativa de expressar ou dar ênfase ao que diz, remexendo os lábios cada vez mais exaltados, como se estivesse gritando algo a ele, que por sua vez, continua a não ouvir nada.
Ainda confuso, Gerson decide forçar a porta e investe contra a lataria, com o ombro. O estrondo faz a mulher saltar para trás de susto. Enquanto se arma para uma nova investida, Gerson olha para a mulher assustada que, apesar de não lhe sobrevir nenhum som do que ela está a falar — ou gritar —, nota em meio ao desespero dela, o balanço em negação com a cabeça e as mãos. "Ela não quer que eu a ajude?". Com tal conclusão, Gerson observa-a melhor além da chuva, tentando compreendê-la.
A desfiguração da imagem da estranha é no mínimo assombrosa. Por algum motivo, parece que a chuva deforma ainda mais a imagem da desconhecida no vidro. Por um momento, passa na cabeça de Gerson a probabilidade de não estar chovendo tanto para tal efeito. Já sobreviveu torrentes em um carro e tem certeza de que não avistou algo tão defasado quanto a imagem que vê pelo vidro neste momento.
A moça parece continuar a gesticular alguma coisa e só depois de quase ficar tonto de tanto focar na imagem dela pela janela que entende que ela aponta para algo.
Gerson pega no volante por instinto e olha para a moça em sinal de indagação. Ela nega. Depois, passa a mão por cima do painel, apalpando para ver se acha algo. "Talvez deixei algum trocado aqui em cima". Negativo. Ele lembra do pacote de lanche que guardou no porta-luvas e abre, pegando o pacote no mesmo instante. A mulher reaproxima-se do veículo e parece ficar com uma das mãos em concha sobre as sobrancelhas, de modo a ver melhor o que acontece dentro do carro. Gerson abre o pacote e vira para a janela. Ela nega novamente. Apesar de tentar apontar para algum lugar em específico dentro da van, o investigador nada entende e quase começa a ter uma desesperança em relação a seus óculos. Tudo que não precisa agora é mais um grau em suas vistas. Isso sempre o preocupa em suas idas ao oftalmologista, com medo do dia em que virasse para si e lhe dissesse algo como: "Sinto muito, meu jovem, mas chegamos ao limite por agora. Talvez tenhamos que apelar para a faca antes que pinte uma bela de uma catarata por aí". O suor escorre pela testa e trilha um caminho por entre os cílios, no canto dos olhos, pelas orelhas, nas lentes, nariz e cai em pingos pelo queixo, não sem antes deixar seu rastro salgado nos lábios.
Gerson está tão suado que pensa se realmente não é uma boa ideia sair. A cova do pescoço e os peitorais se enchem tanto que ele aposta que em instantes estará mais encharcado que a estranha do lado de fora. Seus poros competem livremente contra os céus tristonhos e carregados daquela noite. Experimenta um suor que eventualmente acaba de entrar pelo canto do lábio. Salgado, mas um adocicado no final.
"Será que estou com diabetes?"
Gerson está nervoso, já pegando em tudo no carro sem alguma noção e sentindo-se beirar um iminente delírio se algo ou alguém não parasse aquilo. A temperatura parece ter subido no carro em algum momento.
"Talvez o início de uma febre."
"PARA! Calma! Vamos lá, não é nada, apenas a observe! Até achar..."
A mulher do espartilho assente. Gerson se volta para sua mão no banco ao lado em cima dos documentos que ele retirou da bolsa-pasta para estudar ainda a pouco. Ele pega os documentos e balança-os na mão, conseguindo mais um assentimento da mulher. Ela se reaproxima do carro observando Gerson.
"As impressões de Artur", pensa ele olhando a papelada. Após ajeitar os papéis no colo, ele vira para a moça, ela assente; está chorando.
Gerson começa a ler um pouco dos documentos rapidamente enquanto perscruta o rosto da estranha em busca de alguma aprovação.
... da história de um homem que viu um ser que se parecia com um rato ou um furão. Posteriormente, este pobre fazendeiro não sabia que sua fazenda estava sendo infestada pelo reaparecimento de um animal pré-histórico. A famosa Taiabana!... (1)
Gerson olha para a janela, mas a mulher está arrebatada em lágrimas de desespero, num grito silencioso que Gerson entende como um não. Ele deposita o papel no banco do lado enquanto passa para o próximo documento.
...por moradores que juravam ter visto a lua com uma cor avermelhada. Apesar do estranho evento, o terremoto sentido por bases do exército a quilômetros de distância da cidade, aparentemente não foi sentido pelos habitantes de...
Ele a mira novamente. Ela nega com a cabeça espargindo gotículas no vidro. Gerson não desiste, sentindo que, de alguma forma, está prestes a descobrir algum grande mistério. "Só vai Gerson" pensa na tentativa de afogar os pensamentos que façam alguma lógica, enquanto para numa página com um título bem chamativo:
CALAMIDADE PÚBLICA
... manhã os habitantes de Geloema acordaram sob sirene de ambulâncias e carros da polícia para evacuação. Aparentemente a epidemia conhecida como Peste de Geloema, e assim designado pelo renomado doutor Vanilson, afirmou conseguir observar os principais efeitos colaterais da doença e a partir disso, estudar soluções alternativas no laboratório de química em...
Ela continua negando. Ele pula para a próxima.
... prefeito continua negando a existência de qualquer doença nova por lá. Seu médico assessor, Sandor Allulasu segue adiantando que a situação não é nada de anormal e que tudo estará normalizado em uma semana. Apesar da palra com os entrevistadores, Sandor quase foi acertado por um sapato arremessado por um dos cidadãos de seu próprio vilarejo. E não é para menos, já que a reputação do médico já não foi das melhores com envolvimento em experimentos em materiais nocivos...
A mulher continua a negar.
CIDADE DESAPARECIDA!
Ao meio-dia desta sexta-feira, a cidade de Geloema entrou para quarentena. Após análise de especialistas, a região foi dada como estado de calamidade e ninguém poderá entrar, segundo o prefeito Jaílson Peludo. As últimas informações sobre o caso revelam que nem mesmo um dos analistas, Jão Ferreira Namildo Olimpo de Baraso Irrelevante, graduado em radiologia e química, foi em direção à cidade para fazer as análises e não conseguiu retornar...
Ela abre a boca como se estivesse gritando algo e tapando os próprios ouvidos. Ainda há silêncio para Gerson. Em meio ao tormento da mulher, quando ela se debruça precipitadamente no vidro da janela, Gerson se vira na tentativa de acalmá-la, mas diante da inépcia à situação, acaba se atentando aos seios volumosos, "enormes e perfeitos". Ela está descalça e vestindo apenas o espartilho que, mesmo sendo estofado, ainda é muito sensual. Ela grita, chora, implora, até que percebe o olhar malicioso por trás dos óculos de tampa de garrafa do homem dentro do carro. Faz tempo que ele não faz sexo.
Ela se afasta do vidro e enterra o rosto nas mãos em grande pranto. O barulho da chuva havia diminuído bastante, mas as gotículas ainda brigam com o teto da lataria, preenchendo boa parte dos segundos eternos que perduram nesse curto período. Percebendo o pênis endurecer por entre as pernas e qualquer tentativa de acalmá-la agora o colocará em uma situação ainda mais complicada, Gerson se volta para os documentos em mãos.
"Ainda bem que os documentos estão no colo", sendo este o último documento. "Ah, legal! Estou refém do meu próprio pinto!" Ele procurava ao máximo não olhar para o lado da janela no momento em que percebe uma coisa bem estranha. O rádio no painel está piscando no botão de power. Gerson o liga e das caixas de som do carro soa o choro da mulher do lado fora. Então algo passa por sua cabeça, como se ela não estivesse apontando para os papéis e sim para o rádio. Embora tenha a impressão de que tinha passado as mãos no painel anteriormente, ela ainda assim negou veementemente. Ele bate na janela, ela o olha, mas nega com a cabeça descoroçoada.
Gerson acorda de supetão ao som de buzinas. Está dia lá fora e ele ainda continua na curva do retorno da noite anterior. A avenida continua cheia de carros, mas a fila de veículos já anda mais rápido.
— Presta atenção na fila, vagabundo! — grita um gordo barbado num carro com uma passageira atrás.
Gerson dá alguns tapinhas na cabeça e desce o freio de mão enquanto liga o carro. A bolsa-pasta continua fechada no banco do lado, certificando que não há nenhum documento em seu colo nem solto por ali, constatando: "Que sonho doido", pensa tentando lembrar quando teria adormecido na noite anterior. Após desligar o rádio, arruma os óculos no rosto e prossegue sua viagem.
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