Flamingos (V)

Instantes depois, o metrô para na estação José Framergard. A mulher não vê o aviso por estar nadando em pensamentos alheios através da música. Quando ela se dá conta da parada em José Framergard, a locomotiva já está a meio caminho de Flamingos. A essa altura, o metrô diminui a velocidade devido às procuras que estão sendo realizadas nos túneis. Nesse ínterim, o metrô cruza lentamente uma plataforma vazia e escura. Há quem dissesse que mudaram a linha do metrô naquela parte devido às investigações. Entretanto, Nara sabe que não é isso, pelo Artur. Ele sempre disse que é possível ver um flash em algum momento entre José Framergard e Flamingos. Dizia que era a estação Sandor Allulasu, que por algum motivo ainda a mantinha ligada, mas que agora, aparentemente, por algum motivo a tinham desligado.

Enquanto a locomotiva cruza a tenebrosa estação, Nara tem alguma ideia do que Artur falava em suas investigações. A antiga estação da cidade de Geloema esbanja um aspecto totalmente abandonado. Há partículas de poeira no ar, flutuando em várias direções. Apesar de tudo escuro ali fora, o teto da estação abriga teias tão grandes e espessas que mais se assemelha à espuma de enchimento de travesseiros desalinhada. A plataforma dos dois lados da janela termina em algum ponto depois, fazendo Nara deduzir haver espaços para outros trilhos. Além disso, o abismo domina majoritariamente a estação. Mais adiante, é possível ver o farol de uma locomotiva de reparo de apenas um vagão, parado com a porta aberta em um trilho na plataforma ao lado. Algumas pessoas começam a filmar e tirar fotos da estação abandonada enquanto o metrô prossegue seu caminho paulatinamente.

Ele passa lentamente pela plataforma e entra no túnel logo em seguida, deixando as pessoas curiosamente reflexivas. Nara se pergunta se também estão investigando a esquisita estação.

My heart is divided. It divides itself between many bodies and this feeling, which I don't understand...

O metrô acelera depois de algum tempo no túnel. Nara não ouve o aviso acerca da próxima estação, mas está atenta o suficiente para saber quando teria que descer. Em instantes o painel com o mapa da linha vermelha pisca na altura de Flamingos e logo o aviso aparece nas telas LCD's, seguido de uma seta vermelha apontando para a direita do vagão.

— Estação Flamingos. Desembarque pelo lado direito do trem.

O metrô diminui a velocidade e em seguida chega à estação. Nara e Nando apanham suas bagagens e saem do vagão. Apesar de uma lotação bastante reduzida, Nando e Nara enfrentam uma fila a caminho da catraca. A mãe ainda para a fim de comprar alguns chicletes em uma banca ao lado enquanto Nando fica na fila esperando. Flamingos é uma das poucas estações que ainda possui comércio depois das catracas. Talvez só perca para Santa Lianna que pelas bancas de doces bem no meio da plataforma. Já faz um bom tempo que começaram com isso. As estações mais novas ou que tiveram algum tipo de reforma, as bancas foram completamente varridas das catracas para dentro, e os comércios passaram a ser estritamente proibidos.

Passou cerca de meia hora até Nara se dar conta de que a fila realmente não progrediria. Indignada, ela corta a fila, puxando o filho pelo braço do modo mais delicado possível. Várias pessoas conversam enquanto um ou outro, passa pela catraca. Antes de Nara maldizer os que estão parados, sua cara de brava ganha expressão de surpresa após esfregar os olhos por mais de uma vez e pestanejar dezenas de vezes, averiguando a veracidade da cena bem diante de seus olhos.

Para depois das catracas, há pessoas no chão por toda parte. Estão imóveis, jogadas, espalhados pelo piso emborrachado, como corpos de alguma cena Hollywoodiana ou alguma peça de teatro. Seja lá como for, os atores estão fazendo seu papel muito bem. Enquanto alguns param para averiguar, os mais corajosos passam pelas catracas e sobem as escadas mais a frente para a saída da estação. As cabines dos seguranças nas laterais da fileira de catracas, estão todas vazias. Se alguém der a volta na cabine, achará o corpo dos seguranças no piso, bem na base da cadeira de rodar.

— Mamãe, o que aconteceu aqui?

Nara agarra o filho enquanto o caminho se abre para os dois logo a frente. Ela passa pela catraca quase de modo inconsciente. Apenas deixa seus pés seguirem o pequeno fluxo.

Já do outro lado da catraca, ela anda com o filho e passa por cima de um homem vestido de terno com as costas para cima. Mais próximo dali está uma mulher com a bolsa caída em cima de si e seus pertences esparramados a uma certa área ao seu redor. Se observasse melhor, veria um tornozelo quebrado e um tamanco de 4 centímetros em seus pés. Mais adiante no corredor, um homem e uma moça mexem em um dos corpos, procurando algum sinal de vida no indivíduo. A julgar pelo olhar petrificado, Nara conclui que todos ali estão mortos. Ela estaca ao se aperceber do que está a fazer.

"Mãe e pai. Oh céus!"

Ela para e coloca suas coisas no chão a cinco passos das escadas, onde instaura outro afloramento de pessoas.

Ao lado de onde estão, há uma sessão de cubículos de bilhetes. Mais ao lado, existem orelhões enfileirados na parede acinzentada.

Nara coloca a mochila em cima da mala, pega o celular no bolso e começa a caçar o número dos pais na agenda telefônica. Após achar, se vira para as catracas e telefona. Quase encosta o celular na orelha, mas aí se recorda que está de fone de ouvidos. Enquanto a isso, Nando deixa sua mala próximo à da mãe e avança, subindo as escadas para a muvuca que faz na saída. Pouco a pouco, ele sobe e passa próximo a um corpo que parece estar olhando para a saída. Apesar de não conseguir passar pela aglomeração de adultos a saída, Nando espia por entre eles, como quem espia entre as grades de ferro de alguma prisão, ou de trás do vidro de um ônibus quando este passa próximo a algum acidente de trânsito, fazendo uma multidão de curiosos estirarem-se para as janelas.

A praça de Flamingos está forrada de corpos. Os veículos estão todos parados nas ruas ao redor da estação. Há pássaros e cães também caídos no chão aqui ou ali. Próximo a Nando, um carrinho de pipoca e um homem de camisa listrada ao chão de costas para cima, com o bordado PIPOCÃO nas costas. Mais ao longe, um dos passageiros recém-saídos está gravando com um celular as pessoas no chão enquanto caminha e quase tropeça em uma velha senhora de vestido florido no chão. Próximo a um banco, os corpos de um grupo de crianças estão no chão, perto de um casal. Mais ao longe, uns passageiros fotografam um carrinho de bebê, e cochichos reinam aqui ou ali entre as pessoas recém-chegadas. Apesar de não ter muita ideia do que ocorrera ali, para Nando, aquilo tudo provém de alguma façanha científica, como as de filmes nos quais os humanos sofrem algum efeito colateral após conseguirem algum controle sobre o tempo. "Talvez aquele metrô que pegamos seja uma máquina do tempo". Uma ideia bastante convincente a Nando, e o eventual problema seria solucionado se avançassem à próxima estação e retornassem logo em seguida. "Mas como explicar as pessoas no chão?". Ele não consegue olhar diretamente no olho de uma das pessoas no chão por muito tempo. É bem... vazio e, ao mesmo tempo, não. Calafrios percorrem seu corpo e a forte impressão de que algo bem ruim passou por Flamingos.

Enquanto isso, Nara clica forte no smartphone, percebendo que o telefone não desponta nenhum sinal. Quando a tentativa de ligação se encerra, a música volta aos ouvidos da mulher, irritando-a ainda mais. Para completar, ela se vira e não vê mais o filho próximo às malas, onde havia deixado. A mala dele está ali, mas sua mochila não. Ela solta um gritinho instantâneo, mas logo avista o filho de costas ao final da escadaria.

— EI, NANDO! — grita furiosa, chamando a atenção de boa parte das pessoas. Ao notar o olhar furioso da mãe, Nando se dá conta de onde está e começa a descer as escadas. "Onde estava com a cabeça naquela hora?", afinal de contas, sair de perto da mãe, que em verdade "deveriam voltar para o metrô, para consertar o tempo". Sim, é isso que tem que fazer. Mas no pensamento de Nara, a coisa está bem diferente. É quase um grito desesperado de socorro, mas é o momento de ser forte, pois o filho está ali. "Perdeu o pai", e embora aparentemente o garoto não tenha apresentado nenhuma desconfiança que beire tal conclusão — ou talvez esteja disfarçando muito bem —, Nara ainda sente a necessidade de ser alguém forte naquele momento, e ainda presando pela segurança dos pais — e a necessidade deles naquele momento —, teria que retroceder numa decisão de modo a priorizar a proteção do filho.

Nara pega na alça da mala de rodinhas quando uma barulheira sobrevém ao silêncio da cidade. Nando, para nas escadas por um instante e olha para trás assustado. Nara está apreensiva a ponto de gritar com o garoto. Os cochichos se tornam cada vez mais altos do alto da escada. Algumas pessoas apontam seus aparelhos para todos os lados no céu acima para capturar alguma coisa que Nando e Nara não estão vendo. O céu acima dos outros ali fora parece sumir por um segundo, como se o sol desistisse de seu brilho por um instante e logo após retornasse. É um céu azul com poucas nuvens, quase limpo na concepção de Nando quando observou do alto das escadas, já que o céu só estava limpo para ele quando não havia nenhuma nuvem — nenhuma mesmo. As pessoas continuam a apontar seus aparelhos de gravação para o alto a fim de capturar alguma coisa.

Contudo, como um desses insistentes e desconhecidos eventos naturais, daqueles que sempre contrariam algumas das portas da ciência e colocam em xeque qualquer pressuposto acerca da realidade concreta em que vivemos, o estranho fenômeno se repetiu. Nando esbugalha os olhos ao topo da escada. Lá em cima, as pessoas se digladiam nos degraus numa disputa de quem desce primeiro. Alguns corajosos dão passos para trás enquanto apontam celulares em um ponto específico, mas a curiosidade míngua com o reaparecimento do grande vulto no céu novamente, que logo se constitui a vista de quem está vendo de mais longe — Nando e Nara —, e a julgar pelo terror estampado no rosto dos fugitivos, soando como a materialização de alguma coisa terrível.

Parte das pessoas que estão na frente caem e são pisoteados pela multidão desesperada logo atrás. A única coisa em que Nara consegue pensar é na segurança do filho, largando as malas para trás, cedendo um passo ao seu encontro. Nando corre na direção da mãe e despeja uma última olhadela em direção à multidão que insurge atrás de si, e mais atrás, uma sombra se apossa da saída da estação.

"Tem uma coisa ali"

Mãe e filho correm pelo corredor subterrâneo sob berros de desespero e gritos como: "Que merda é aquilo! Por Ardna, ele é rápido! Aquilo está vindo para cá". Com um dos fones batendo no peito e no rosto enquanto o outro, toca ao som de Feeling From Beyond ainda em um dos ouvidos da mulher, Nara puxa o filho com certa violência por cima das catracas após errar por uma das que voltam à saída. Uma multidão que está parada do outro lado começa a recuar lentamente e, como por um milagre, a locomotiva continua ali, parada de portas abertas. Gritos ecoam por todos os lados e as pessoas correm de volta para o metrô.

Os megafones da estação chiam como um rádio sem frequência. Uma voz velha e feminina pouco a pouco é sintonizada, aumentando o desespero das pessoas.

Patrício!...

Patrício!...

Nara puxa o filho pelo braço sobre a plataforma de embarque para correr para o metrô, mas o corpo dele está muito pesado e, ao se virar, percebe que Nando está desacordado. Ela grita ao filho desesperadamente.

— NANDO MEU FILHO!

E, ao ver a multidão se apertando, se livra da mochila e resolve carregá-la.

PATRÍCIO!...

Apesar dos esforços, carregar o filho demanda certo tempo, tempo esse suficiente para as portas automáticas se fecharem, deixando uma pequena multidão de desesperados na plataforma.

Mãe?!

Alguns tentam abrir as portas automáticas à força, mas não adianta muita coisa e Nara opta por gritar com a multidão do lado de fora para abrirem a porta.

Mãe, me ajuda.

Nara recobra o juízo até entender que aquela é a voz do filho, que automaticamente a faz olhar para o mesmo em seus braços; desacordado.

Mãe?!

Só então ela percebe que a voz de Nando vem de seu fone de ouvido e dos megafones da estação.

Feeling...

Feeling

Feeling

Feeling

Feeling from beyond...

— FILHO?!

O metrô não dá a partida, mas uma enorme mão cadavérica, tão grande quanto o túnel, sai da furna à frente, agarra a cabine do maquinista e rapidamente puxa-a para dentro do túnel, levando consigo o metrô inteiro.

SOCORRO , MÃE! É O DIABO!

As luzes da estação Flamingos se avermelham e uma coisa impossível começa a sair do túnel.

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