Flamingos (IV)

"Artur com certeza está dando o sangue por isso em algum lugar aí", conclui Nara olhando as notícias na internet do seu smartphone.

A investigação está longe de acabar. Operários e investigadores trabalhavam lado a lado em enormes máquinas de escavação, procurando algum lugar do túnel que o metrô 568 supostamente descarrilhou. Até o momento a tese explanada pela polícia por meio de repórteres a beira do túnel sentido Jhonsey é que provavelmente a locomotiva estava com problema nas rodas e em algum momento algumas delas soltaram, logo na próxima bifurcação que a linha fez em uma curva, o peso do carro foi jogado para um lado e a falta das rodas não teve como suportar a guinada, jogando a locomotiva toda no outro trilho em bifurcação. Especialistas calculavam que o metrô descarrilhou em um ponto onde existem diversas bifurcações de túneis com trilhos em desuso ainda não declarados.

Embora Artur fizesse parte do time dos repórteres da Nova Jhonsey, não seria burro para enfrentar os túneis das investigações a fim de enriquecer a sua enorme pesquisa, "não é?", pensa Nara. Perdeu a conta de quantas vezes brigara com o marido a respeito das longas noites afundadas em pilhas de livros, textos intermináveis com fotografias e ilustrações nas redes de Internet. Artur conseguiu o impossível nas últimas semanas, passando noites inteiras sem dormir. Nos primeiros dias, soou como alguma pesquisa importante para seu trabalho e Nara não o incomodou com isso. Contudo, os dias foram passando e a interminável pesquisa ganhou um tom obsessivo. Só então Nara passou a se preocupar com o que podia estar acontecendo com o esposo.

Depois de muitas brigas e discussões, Artur ainda demonstrou firmeza no que queria. E só então Nara finalmente cedeu e pediu para explicar para ela acerca dessa tal pesquisa. Apesar de não se lembrar direito sobre o que era, a mulher achou aquela dedução que Artur estava querendo provar, um completo absurdo. E após ver o marido trancar-se em seu pequeno escritório em um fim de semana inteiro, deixando ela e o filho irem fazer piquenique na praça de Flamingos sozinhos, Nara temeu que seu marido estivesse ficando paranoico. Esta tinha sido a última vez que haviam brigado, noite retrasada, a última vez que vira Artur.

Nara não resistiu e ligou para o marido já fazia algumas horas e ficou sabendo que o mesmo, se quer, deu as caras no emprego no dia anterior e tampouco hoje. "Onde será que foi parar esse homem?" Artur jamais fizera algo do tipo. Sair de casa e deixar o filho sem ao menos o café da manhã do menino. Claro que Artur demonstrava uma autoconfiança em relação ao filho, "todo pai tem alguma percentagem a mais que a mãe nisso", mas ao ponto de dar as caras e sumir no mundo por dois dias sem dar alguma pista para onde ia?

"Ele arrumou outra, escute o que estou te dizendo filha."

É o que ouve da mãe quando vai para casa dos pais em Flamingos. Nara desconsiderou muito tal hipótese, mas que acredita mais na possibilidade de o marido ter arranjado um lugar para fazer suas pesquisas em paz e terminar seu trabalho. Foi exatamente o que tinha dito a ele noite retrasada. "Artur não é bobo". Sabe interpretar cada palavra em sua devida ocasião e na maioria dos conflitos, algo que a irrita muito também é o fato dele se manter bem tranquilo. "Não ele não leva a sério"

— Vai se ferrar, você e esse seu trabalho, então! — ela bateu a frigideira com força no fogão. — Se quiser fazer essa pesquisa, aluga um cômodo e faz para lá, ué!

Enquanto pegou o isqueiro com uma mão, a outra oscilou com uma garrafa plástica cheia de óleo de cozinha. Os olhos de Artur tremularam acompanhando o óleo na mão dela.

"Não, ele mal prestava atenção no que eu estava dizendo a ele", concluiu Nara.

Ela respira fundo, olhando pela janela do ônibus. O mundo passa tão rápido lá fora quando ela se sente em uma nave. Não que Nara já tenha ido em alguma. Nunca nem pisou em um aeroporto. Tudo que ela sabe sobre aeronaves é que aeronaves são super velozes.

"Talvez um dia Nando me leve para viajar numa dessas". Ela observa o filho adormecido no banco ao lado com a cabeça encostada em seus braços. Os bracinhos do menino estão praticamente enlaçados aos da mãe. Parece um anjo, difícil demais de imaginar um pai cometer a crueldade de abandonar uma coisinha daquelas com a sua mãe.

As malas pesam entre as pernas, ainda que estejam sobre o piso. Nunca se importou com essas coisas, mas Nando sempre corre para sentar nos bancos altos, sempre que entram em algum ônibus. Nem é preciso dizer que o lado da janela é o seu preferido, mas dessa vez Nara nota uma exceção, como quando sempre os ônibus estão lotados, quem entra primeiro fica no lugar. Já houve vezes em que Nara cedeu o lugar a Nando, mas desta vez, o gesto de um Nando cabisbaixo, não pareceu se importar nem um pouco com algum lugar na janela. O menino acabou adormecendo mesmo assim, bem ali do seu lado.

O ônibus faz uma curva em um retorno numa extensa calçada, apresentando uma enorme estrutura oval esquelética pela janela do ônibus. Por dentro da construção, é possível ver a esse horário um belo arco-íris em um certo ângulo devido à cobertura vidrada ao seu redor.

Nara acorda o filho e com muita dificuldade. Passam entre as pessoas que empurra as suas malas em sinais de protestos com a correria dos dois para descer. Nara desce do ônibus bem ao lado de uma placa de trânsito com algumas informações e setas que apontam para alguns lugares. Uma delas está escrito: Estação São Preto, e ao lado há uma seta apontando para a enorme arquitetura oval e esquelética no meio da praça. Nara ri da situação. "Como se alguém não fosse ver. Deviam colocar uma placa de aviso dessa antes de me casar com aquele cretino!"

"Oh! Está com outra, minha filha. Minha filhinha..."

A voz da avó se materializa na mente de Nara, fazendo-a desatar em choro nesse momento. Se Artur não tem outro refúgio naquela cidade, por outro lado, Nara também não tem, já que o fato da morena decidir dedicar atenção ao filho desde o nascimento, deixando de estar se formando, realizando outros sonhos seus e ajudando nas coisas dentro de casa, a fez trancar no último ano de faculdade em farmácia. Claro que terá que refazer tudo novamente após criar Nando do jeito que quer. O trato com Artur desde o início de que daria atenção especial à criação do menino e, quando este tivesse por volta de seus 16 anos, voltaria a fazer sua faculdade. Em tal acordo, com a saída de Artur, Nara não via outra opção a não ser sair do prédio alugado, uma vez que não há renda alguma que não seja pelo marido. Seu destino agora é Flamingos, para a casa dos pais.

É claro que o filho não terá mais as regalias da escola particular, os cursos de teclado e espanhol que faz às quartas, inglês e italiano às quintas e sextas, nem as regalias de ter um quarto só para ele, como no luxuoso condomínio em São Preto. De um ponto de vista mais otimista, a partir de agora, Nara estará morando de graça na casa dos pais, mesmo que a escola não tenha os renomados professores ou os mesmos cursos da outra.

A mulher estica o puxador da alça da mala de viagem enquanto equilibra a mochila no outro ombro e segura a mão do filho, que por sua vez leva outra mala de rodinhas e uma mochila de Super-Seravat nas costas. Ao passarem pela entrada da enorme arquitetura oval e envidraçada em destaque, o ar perde densidade e fica mais gelado. O ar condicionado ali dentro é bem conservado, apesar dos espaços abertos para a ventilação. Normalmente, Nando correria para uma banca de doces que há no meio em uma das galerias do enorme edifício, mas hoje há algo diferente. O garoto olha tudo ao redor em um tom cabisbaixo e curioso, deixando a mão da mãe guiá-lo pela estação.

Ambos se aproximam da banca de bilheteria sem enfrentar fila alguma. Algo bem raro de acontecer em São Preto, sem dúvidas, mas quase um axioma acerca do porquê de quase ninguém estar optando por metrôs atualmente. Nara compra as passagens equilibrando o peso nos ombros após colocar a mala no chão. Há somente três atendentes, dois rapazes negros e uma mulher ruiva no atendimento. Decerto, se perguntasse a ruiva, Melissa, acerca do paradeiro das outras 7 cabines vazias, ambas teriam um papo convidativo sobre os acontecimentos dos últimos dias, mas a pressa e o momento não são propícios para Nara. Ela se mantém calada do lado de fora do cubículo do balcão enquanto aguarda a outra separar os bilhetes do papel.

Após comprar, Nara desce pelas escadas rolantes e anda até o fim do corredor, passando pelas catracas ao fim deste. Há poucas pessoas do outro lado. Ao todo, umas 20 pessoas espalhadas pelas plataformas até onde as vistas de Nara alcançam. Nando está entretido olhando para cima enquanto enumera algo.

— O que está fazendo filho?

— Contando quantas saídas têm aqueles tubos no teto. — Responde o menino prontamente. Nara olha para o teto e vê dois enormes tubos que saem em paralelo do corredor de entrada e se bifurcam mais na frente entre os túneis. As tubulações possuem saídas laterais em certo intervalo. O teto tem vigas expostas, sendo acabado em arquiteturas quadrangulares de forma que as tubulações passam por dentro destas. O teto também é um pouco baixo, passando a impressão de que realmente deve estar ao nível muito abaixo do subsolo, embora não esteja tanto em relação às outras estações.

— O papai vai estar lá, mamãe?

A pergunta do filho doe no peito da mãe. A cada pergunta do filho acerca do pai, produz um ribombar no coração de Nara. Parece que o garoto necessita mesmo de uma autoafirmação de que Nara realmente está falando a verdade sobre passar um tempo na casa da vovó e do vovô. Ela odeia ter que mentir para aquela coisinha tão preciosa. "Como explicar que o pai deu uma sumida e talvez não volte? Se eu disser que ele vai voltar, ele vai ficar esperando? Se sim, até quando Nando esperará até se dar conta de que..."

— Não. — diz Nara de modo inconsciente. Ela ouve um respirar pesado do filho enquanto os dois se acomodam em um dos bancos de espera na plataforma de embarque. Um estranho silêncio se faz entre os dois. Não um silêncio que marca a ausência de qualquer barulho, havendo apenas alguns aqui e ali — o som de vassoura passando no chão a alguns metros, alguém tentando acalmar o chefe no telefone, uma moça de macacão branco em cima de uma escada metálica mal projetada que faz um barulho de nhec nhec e um homem calvo de macacão vermelho, próximo às catracas discutindo com um enorme bigodudo —, coisas que evidentemente são raras de ouvir em meio à multidão de passageiros habitualmente. O silêncio ali é algo diferente. Algo do tipo que se tem a alguém que, de certa forma, até se tem certa afinidade, mas que gera conclusões duvidosas se nenhum dos dois não se falam por mais tempo. "O que meu filho vai pensar de mim?"

— Mamãe te ama, amor. — Fala Nara, passando a mão na cabeça do pequeno. O pequeno dá um assentimento de cabeça numa típica correspondência infantil, estranhamente recíproca. Tem que ter muito cuidado com o filhinho, pois na pior das hipóteses foi a única coisa que sobrou em sua falha tentativa de formar uma família.

— É como? Quando é que ele foi lá? — Uma voz brava próximo às catracas.

— Foi ontem à noite.

Nara olha para trás com o filho da bancada. Há uma coluna de sustentação atrás do banco, impossibilitando a visão de Nara do que quer que aconteça do outro lado, mas Nando pode ver já que está no banco da ponta ao lado da mãe. É o homem calvo e o bigodudo. O gordo bigodudo parece nervoso, mas se segurava enquanto o magro e calvo parece plenamente alterado.

— O que ele foi fazer lá, pelo amor de tudo que existe, cara? — inquiriu o bigodudo.

— Disse que ia apagar as luzes da estação — responde o bigodudo de modo áspero.

— Ah! Não, não, não, não...!! Como eu não sou avisado de um negócio desses caras?

Nara se vira e tenta ver o que acontece, mas não enxerga nada, apenas ouve. Um grupo de seguranças caminha do extremo da fileira de catracas em direção ao desentendimento. Nara puxa o filho pelo ombro levemente, fazendo-o olhar para si.

— Aqui, toma — diz, oferecendo um pacote de waffers ao filho. O menino recusa no momento, mas se demora por alguns instantes até aceitar. Ele abre o pacote, relaxa no assento e começa a comer. Certamente um orgulho, pois Nando deduz desde o início qual a real intenção da mãe com aquele gesto. Uma das coisas que o diferencia e muito do pessoal de sua idade com certeza é o fato do processo de raciocínio do garoto. É um menino esperto, "uma mente quase homem" como diz Artur. Talvez não sejam apenas mimos do pai. Para alguém de 8 anos, fazer 4 cursos ao mesmo tempo, e falar fluentemente mais de um idioma, com certeza é algo que está aquém da maioria. Talvez tivessem que fazer um teste de QI no garoto ou algo do tipo. Levá-lo a um reality show onde eles fazem aquelas perguntas super difíceis, embaraçantes até para universitários. "Tão novo. Meu filho. Meu único pedaço que me restou. Não vou submetê-lo a cobranças do mundo dos adultos. Ele só tem 8 anos".

Nando coloca o waffer na boca de modo autômato, claramente enterrado em pensamentos que, apesar de tentada a perguntar, Nara não o faz, com receio do filho retornar com indagações acerca do paradeiro do pai. Por fim, a mulher resolve dar fim aos pensamentos e abre a mochila, pega o fone de ouvido e o celular. É um fone sem fio. Comprou na noite da briga com Artur assim que deu conta de que havia esquecido seu fone quando já estava próxima à estação. Comprou de um vendedor ambulante pelo preço mais barato que conseguiu. Era a última caixa dele do dia. De certa forma, para ter custado o dobro de um fone com fio, ela espera que realmente valha a pena, apesar do fracasso do teste fajuto do vendedor. O homem ficou tão desesperado em vender seu último produto à Nara, que aparentemente havia quebrado um dos fones na demonstração.

Nara liga o Bluetooth, volta até a playlist de músicas e seleciona Reproduzir Via Bluetooth.

Without fear, I pass from station to station...

A qualidade da música reproduzida nos fones não é nada má, apesar de perceber algum chiado quando vira bruscamente o aparelho para qualquer ângulo, embora não tão notável se não prestasse muita atenção.

From life to life, heart to heart. In search of my love!

A música começa pela metade, estaria provavelmente ouvindo antes. Ela gosta da voz da Natie Verris, especialmente essa música Feeling From Beyond, que por algum motivo o celular apagara sozinho outro dia.

... Heart that beats. What a bang. That rocks me. Like subway pistons

Ela se arrepende de não ter baixado novamente a música quando teve a chance. As preocupações com o marido a desconcentram de qualquer outra coisa.

Um vácuo começa a vir do túnel à sua direita, fazendo seus cabelos esvoaçarem enquanto o canto de máquinas corta o estranho silêncio ali embaixo. O chão treme quando a locomotiva chega. Nara levanta com Nando e entram no vagão.

Feelings

Feelings

Feelings

Feelings

Feelings...

Após se acomodarem em dois assentos ao lado da janela, Nara observa as notícias no televisor pendurado no teto do vagão, ao lado da plaqueta parafusada em Novo Metrô 562 Estadual.

Os investigadores estão próximos de achar o metrô 568 da linha vermelha.

É a única coisa legível na manchete, pois o resto são informações todas em letras miúdas nas laterais da notícia. Ao centro passam imagens de homens trabalhando em um túnel de metrô bem escuro. Vários operários de capacete amarelo e lanternas sobre estas, trajados de macacão vermelho e preto, trabalhando no túnel. O metrô dá a partida e o pensamento inevitável do marido sobrevém: "Ele odiava essa parte. Ter que equilibrar no tranco inicial do metrô. Mas era uma graça". A tela começa a destacar palavras no texto aleatoriamente, mostrando alguma coisa que ela provavelmente entenderia se estivesse ouvindo a reportagem. Grifado e destacado as palavras desaparecidos, corpos, metrô. Nara divide-se entre meditar naquilo ou na música que está a ouvir. Mas como um inopino lampejo, seu pensamento gruda naquela frase. "E se ele estivesse no metrô 568?"

— Diga que é o Bryan que está falando! — grita o homem calvo do lado de fora na plataforma ao celular.

Agora, o bigodudo está recostado numa das catracas, de braços cruzados, enquanto observa o outro gritando ao telefone. Nara e Nando, assim como os poucos que estavam no metrô parcialmente vazio, prestam atenção na gritaria.

— É sobre o Élton! — grita o calvo — Sim... e, por que ele foi desligar lá ontem?

Nara aumenta ainda mais a música nos fones antes do metrô dar entrada no túnel. Esperou que o toque da música tremesse sua alma após o aumento, mas ao invés disso, ele soa como algo mais monótono e forçado. Ao menos conteve o barulho do mundo externo. 

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