Flamingos (III)
Eulália avista um pipoqueiro ao lado da estação. Um ponto estratégico para qualquer vendedor, principalmente se tratando de clientes como Eulália. Decerto, "Uma formiga! Maldita formiga!" Como diria seu pai. Alguém bem difícil de resistir à guloseima. Razão pela qual sempre achou que comeria todos os doces dos netos quando virasse avó. Apesar de não ser bem assim, Eulália está certa de uma coisa, não largaria de controlar o estômago com besteiras nem na velhice — até piorou, em verdade. Ela se levanta do seu banco e se aproxima da estação até ficar cara a cara com o carrinho de pipocas.
Ela analisa a pipoca dentro do vidro. Há três compartimentos, em um, há pipoca levemente amarelada devido à manteiga — e também do vidro que está levemente sujo — no outro compartimento tem-se pipoca tingida em caramelo avermelhado — essa sim é uma tentação para ela — e o último é pipoca com cobertura marrom; chocolate. Esta última acaba de arrancar uma carranca da velha com um pensamento bem sutil: "E quem é que come uma mistura dessas?!".
Ela olha por cima do box enquanto ajeita os óculos, mirando o sujeito de boné azul e camisa listrada aberta. Tem uma camisa meio suja por baixo. Nas costas da camisa, o habitual PIPOCÃO continua bordado. O sujeito usa uma calça jeans também, mas se não fosse pelas lembranças, Eulália duvidaria da qualidade daquelas pipocas. É o mesmo vendedor magrelo de sempre, desde a época em que morava numa simples casa de interior com o esposo Joaquim, dos tempos em que visitava Flamingos com o neto ainda pequeno. Sim, é ele mesmo. Ela observa o homem magro atrás do carrinho até este dar-lhe um caloroso bom dia.
Eulália se limita a um sorriso meio triste. Poucas foram às vezes que comprou pipocas em flamingos naquela época. Geralmente comprava sorvete ou pipoca, e na maioria das vezes, sorvete. Pipoca, se o dinheiro sobrasse.
— Me passa um pipocão de caramelo por gentileza. — Fala a velha abrindo a bolsa para pegar o porta-moedas.
— É pra já, minha senhora.
Eulália tem a impressão de que o homem quer perguntar algo, talvez em relação a patrício. O que poderia dizer? "Meu neto virou homem de armas lá em Santa Lianna. Está grande, forte e saudável." Isso talvez soe sem algum significado para um não afilhado. Entretanto, dado o comportamento do homem, as cores douradas que estão sempre a combinar na roupa avermelhada, sempre dá a Eulália a entender que o mesmo seja algum afilhado em Ardna.
Após achar o porta-moedas, ela abre e separa o dinheiro certinho conforme o exposto na tabela de preços no pôster vermelho do carrinho. Os olhos de patrício chegariam a brilhar de emoção em uma hora dessas. O garoto anseia tanto que, se pudesse, avançaria mais rápido no tempo nesses momentos e pararia somente com a pipoca em mãos. Apesar de não se recordar de quando havia sido aquilo, lembrou que — talvez a única vez — tivera dinheiro suficiente para comprar um saco de pipocas para ela e para o neto logo após tomarem sorvete. Sim, tinha quase certeza de que havia tomado sorvete nesse dia também. Patrício andava com uma blusa azul bordada na frente. "Queen", e 1970, nas costas. Uma velha banda dos anos setenta. Não se lembra do nome de nenhuma outra música da banda além de Stayin' Alive, uma das músicas mais tocadas da época. Mas logo percebe alguma confusão com a música de outra banda chamada Bee Gees. As jovens da época se derretiam pelos integrantes do grupo Village People. Mas a única que ela se recorda de ter caído em seu gosto nas épocas mais rebeldes era uma de Tim Maia, e a música Gostava tanto de você.
Enquanto o pipoqueiro coloca a pipoca com o pegador dentro do recipiente de papelão, Eulália respira fundo o ar falsamente natural da cidade. Claro que 800 m de comprimento de praça não são capazes de substituir o aroma florestal da fazenda que a velha cresceu. Entretanto, mesmo que misturado com um leve cheiro de gasolina queimada e dejetos, ainda dá para disfarçar a poluição odorante de cidade grande. A sua volta, jovens passeiam pela praça com seus fones enterrados dentro do ouvido. Já é algo típico de todo lugar, nas ruas, nos veículos, na praça, nas estações.
"Essa tranqueira dominou a mente das pessoas"
— Patrício! — pensou de repente como se o neto estivesse aprontando algo. Está quase lembrando. Foi dessa vez que comprou pipoca e sorvete no mesmo dia. Havia falado ao menino que achava que o dinheiro também daria para a pipoca. Patrício ficou tão contente que correu na frente e parou em cima da faixa de pedestres.
— Patrício!
— Quero pipoca — falou o garoto não conseguindo esconder o entusiasmo.
— Me espera que eu vou te levar! Não me dê mais esse susto! — reclama Eulália chegando apressadamente e ofegante.
— Desculpa mamãe. Eu ia esperar ficar verde.
Eulália o tomou pelo braço a atravessou a rua.
— Faça isso somente com um adulto, entendeu?
Mas a melhor parte mesmo era quando estava comprando a pipoca. O menino não parava de mexer a cabeça olhando todos os compartimentos de pipoca a amostra. O familiar barulho das moedas no porta-moedas tilintando, a pipoca estourando na panelinha ao lado do fogão portátil próximo ao carrinho, o cheiro da pipoca adocicada, e pessoas, cada vez mais pessoas.
Há um rádio em cima de uns compartimentos isolantes. O pipoqueiro ajeita uma lã de aço enquanto ouve uma música. Não está nada diferente daquele tempo, decerto uma nostalgia agradável, porém sem Patrício. Ela sente falta da companhia do neto, ainda que por vezes os dois ainda saiam juntos para lá, a fim de relembrar os velhos tempos antes que Ardna pedisse sua alma de uma vez do mundo dos vivos.
Eulália sente uma pontada de dor na cabeça e fica tonta. Ela pestaneja os olhos, recuperando os sentidos pouco a pouco.
— Está tudo bem, senhora? — indaga o pipoqueiro com a caixa de pipoca já na mão, olhando-a do outro lado do carrinho.
Eulália assente com a cabeça e pega a caixa de pipocas da mão do pipoqueiro. A tontura passa, mas seguidamente ela começa a sentir náuseas e caminha vagarosamente em direção ao banco mais próximo. Isso com certeza é algo inesperadamente horrível. Faz tempo que não se sente mal dessa forma. Esse misto de coisas erradas no corpo não indica boas notícias. A velha não conclui outra coisa que não seja a consequência da idade. O prenúncio de que o dia dela partir, dessa, para melhor, está bem próximo. Enquanto se aproxima do banco, ela sente algo mais forte, um pouco de falta de ar agora.
Eulália treme, pois, por mais que esteja se preparando para sua vida em Ardna, dar de cara com o abismo da passagem não é nada fácil. Ainda possui sentimentos com o mundo, ainda que a vida não seja de toda boa, ela é boa. Não que fosse admitir algum tipo de apego, pois as regras de Ardna são bem claras em relação a isso. "Não devemos nos apegar aualquer vida que tenhamos, pois são sempre passagens." Entretanto, é como algum tipo de afeto, "É, um afeto". De todo, nunca é o suficiente. Sempre com aquela questão dos 5 minutos a mais de manhã.
"Só mais um dia mãe de todos. Só mais unzinho para eu poder comer uma última vez a pipoca com meu netinho".
A velha se dobra sobre si. Os sons do mundo agora não passam de chiados de pessoas falando, carros buzinando, rádios transmitindo alguma partida de futebol, crianças chorando, balões estourando... é como se Eulália estivesse ouvindo tais sons debaixo de uma piscina cheia de água. Ela ainda balança a cabeça, tentando tirar água dos ouvidos — mas não há água — ou subir para a superfície para ouvir o mundo de novo — mas não há água! Isto seria quebra de pacto! Eulália sente seu coração acelerar e concluí que estava tendo algum um infarto.
"Vou desligar essa merda de estação!"
— Mas que é isso aqui? — diz o pipoqueiro mexendo em alguma coisa atrás do carrinho.
A visão de Eulália desembaraça em instantes. O mundo não está mais turvo, tampouco confuso como antes. Seus ouvidos são destapados e seus sentidos pouco a pouco recobram. Ela apalpa o chão por um certo tempo e deduzindo alguma roda humana envolta de si, e exclama:
— Estou bem! Estou bem!
Após achar os óculos, Eulália olha firmemente a imagem das pessoas paradas a sua volta se formando pouco a pouco. Parecem observá-la enquanto se levantava para ver se está tudo bem mesmo. Entretanto, após recobrar a visão, Eulália se depara com algo muito intrigante.
As pessoas estão realmente paradas, mas não há nenhuma roda ao seu redor. A maioria transita pela entrada da estação, outras encostadas em postes, sentadas em bancos, caminhando e outra parte está parada. Esses, por sua vez, olham para cima, para os lados, outros para seus aparelhos eletrônicos, sendo meticulosos em alguma observação estranha. Com 100% dos sentidos recuperados, Eulália vê sua pipoca derramada no chão com o recipiente emborcado. A sensação de água nos ouvidos retorna com tanta força que Eulália sente algo semelhante a uma microfonia dentro do ouvido, fazendo a mesma quase ir ao chão de uma só vez. Ela cobre os ouvidos com as duas mãos e quase senta um grito escapar do fundo da garganta.
"Desligar a estação... Desligar a estação"
A voz parece vir da sua própria cabeça, mas o dono da voz é seu colega de trabalho, Élton. A sensação novamente passa e Eulália se vê em situação de pós-delírio.
— Preciso de um médico — fala embargada no mais alto que podia. Após apoiar as mãos nos joelhos, ela olha ao redor algumas pessoas mais próximas, divididas entre dar algum tipo de atenção a ela e ficar girando a cabeça para vários lados a procura de algo. Os demais estão parados, caminhando ou olhando de modo intrigante para alguma direção em comum.
"O que tem com essa gente?"
Eulália sente uma mão sobre si e se vira para este. O pipoqueiro! Ele a ajuda a ficar ereta e corre até o carrinho para pegar um banquinho de plástico para dar lugar a ela. Certamente em sua época, Patrício ficaria arrasado e não mediria esforços para recobrar o juízo da vó ou ao menos se esforçaria para isso. Quando era pequeno, às vezes sabia o significado da palavra mãe, ainda que tenha explicado a ele certa vez que eles são os avós, mas Joaquim retrucou: "Ora, deixe de conversa, Euáia! O menino gosta de nóis! Aquela descabeçada da Geysa que resolveu ficar parindo por aí que nem uma porca!". É claro que há casos e casos, e esse é um daqueles em que não há de se falar em uma segunda opção ou talvez que Patrício receberia presentes em dobro no aniversário só porque tem mais pais que a maioria. Patrício tem pais que são avós e os que eram para ser pais em primeiro grau, foram indivíduos totalmente irresponsáveis.
Patrício pega a pipoca e a vó ouve o crokcrok abafado do alimento dentro da boca do menino enquanto aguarda a sua pipoca. Ela sempre pega o de Patrício primeiro e ama ver a felicidade do neto como a de um cão que salta no pote de ração antes do dono colocar no chão. Ao receber sua caixa de pipoca, Eulália agradece o homem com a típica saudação de sua crença, mas deixa de dar atenção à resposta do pipoqueiro ao se virar e perceber que Patrício não está mais ao seu lado.
Eulália já faz ideia da rapidez genuína das crianças quando o assunto é aprontar. Fora mãe de uma filha anteriormente e agora avó-mãe de um menino. Sinceramente, Geisa deu muito mais trabalho para ela do que Patrício. Eulália reforça a memória nesse momento, pois são fragmentos soltos. Estilhaços de um recipiente de vidro que caiu e se partiu. É como se a velha perdesse o rumo de seus pensamentos e, subitamente, a vida exibe um acontecimento que nem ela consegue se lembrar por completo. São muitos fragmentos, muitos estilhaços, muitos cacos... Está certa de que iria lembrar realmente de tudo.
Com a cabeça latejando, Eulália volta a prestar atenção à sua volta, na calçada ladrilhada como um quadro em mosaico. As árvores ao fundo, os postes de luz, a saída rústica da estação para o mundo da superfície. Tudo exatamente como naquele dia... O dia em que Patrício sumiu.
"Não, ele está no exército", pensa Eulália, acertando as plaquetas dos óculos em cima do nariz. "Grande, forte e saudável. O homem que porta armas". A audição de Eulália é novamente abafada e seus tímpanos são pressionados, retornando a estranha sensação de estar a ouvir o mundo ao seu redor embaixo de uma extensa camada de água. E em algum momento, dentro de si, sente a necessidade de procurar Patrício, já que ele sumiu.
"Não pode ser! Patrício não era assim, grande formadora dos séculos", pensou em resposta. Apesar das traquinagens de Patrício, o moleque não passou absurdamente dos limites em relação às outras crianças de sua idade. Colocar o dedo na tomada, atear fogo no sofá ou acender um fósforo perto do botijão está no mesmo patamar de fugir da vovó enquanto ela compra pipoca. Definitivamente, foi alguém bem melhor que sua mãe nesse quesito também.
Eulália sente seus joelhos dobrarem num achacoso desequilíbrio. Por pouco, seus óculos caem novamente no chão, mas o pensamento continua na lembrança. "O que tinha feito logo em seguida?". Ela se esforça para se lembrar, mesmo sem se importar com o infarto que presumidamente esteja tendo no presente.
Mas ora, vejam só, ali está Patrício, em frente à estação. "Sim, foi para lá que ele correu." Coisa que o garoto nunca havia feito... nunca até onde Eulália lembrava. Ele andou até a entrada da estação. Desesperada, ela acha Patrício bem à vontade, nas escadas. — A água começa a descer novamente — E agora manda o menino furiosamente — a água desce, descobrindo os ouvidos da velha novamente, de seu passado — decidida a dar uma bronca no garoto. Patrício se demora um pouco olhando para o fim das escadas lá embaixo, se volta para a avó e começa a subir os degraus. A quatro degraus da mãe-avó, Patrício para na escadaria, segura o corrimão com uma das mãos enquanto a outra segura a caixa de pipoca. Ele se volta e olha lá para baixo novamente, depois torna a Eulália:
— Desligar as luzes da estação...
Apesar de sair da boca de Patrício, a voz é do colega de trabalho, Élton. Em seguida, Eulália sente seus sentidos embaraçarem novamente em uma água totalmente invisível. A razão sobe para a superfície e Eulália se dá conta de que está novamente próximo ao chão. O barulho das pessoas, carros buzinando, pássaros cantando, cães latindo... Dessa vez, os óculos não caem no chão, mas as plaquetas escorregaram para a ponta do seu nariz. Ela ajeita novamente os óculos e sai da posição ajoelhada, fazendo força para ficar ereta.
Eulália se sentia como se tivesse acabado de sair de um sonho. Está completamente desperta agora e sente que finalmente é chegado o dia de ficar gagá. Andar por aí acompanhada até ninguém mais poder levar a lugar algum e ser confinada em um asilo de terceiro mundo até não poder mais se mexer. Passar o tempo lembrando dos melhores dias de sua vida, os que passou com o neto visitando Flamingos e pelo seu amor, Joaquim.
Eulália pisca os olhos, absorvendo a imagem do mundo ao redor por trás das lentes, o que acaba deixando-a mais intrigada em relação ao seu juízo. O pipoqueiro olha de modo hipnotizante para algo nas mãos. Eulália custa até reconhecer o objeto nas mãos do homem, um rádio de bolso. A velha dá um giro lento, notando ao redor, no cenário, as pessoas paradas olhando de modo bastante confuso seus celulares, motoristas olhando o painel do carro, seguranças na entrada da estação intrigados com seus aparelhos Walk toks entre diversas outras pessoas desconfiadas com os demais aparelhos sonoros, como uma mãe sacudindo um teclado de brinquedo próximo ao ouvido enquanto o filho chorava no chão.
Subitamente, uma voz surge seguida de uma estática, como um sinal falho em uma tempestade.
— ... para a estação, rápido.
Eulália observa atentamente as pessoas se assustarem com seus aparelhos de áudio, constatando ser de lá que está saindo a voz. Como se não bastasse, a sensação ilógica de água no ouvido reaparece com o reconhecimento da voz de Élton.
— Élton? — Indaga Eulália, já descrente com o próprio juízo.
— DESLIGAR AS LUZES DA ESTAÇÃO!
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