Flamingos (II)

A praça de Flamingos é situada no meio da cidade. Tomando quase 32% da área de Flamingos, é o maior ponto da cidade, se assemelhando a um grande bosque. Há alguns lagos, parques, áreas abertas para eventos e ainda sobra espaço para uma área totalmente ecológica na qual a atração principal é a área de preservação e tratamento de flamingos. Para além do cimeiro das árvores, é possível avistar um verdadeiro paredão de prédios e enormes construções turísticas cercando a enorme praça, conquanto que de lá também há espaço para a estação de metrô.

Em meio a esse enorme cenário, a velha Eulália para em frente a um carrinho de sorvetes numa calçada que pende para a grama e caça o dinheiro dentro do porta-moedas para comprar uma casquinha. De fato, o porta-moedas nunca fez jus ao nome pelo fato de não portar somente moedas, mas também notas e até bolinhos de dinheiro. Às vezes, ela faz questão de amassar algumas notas e empurrar para o fundo do porta-moedas. Jamais colocou em dúvida o poder de Ardna em relação à sua fé, mas talvez por costume da época que não era uma convertida ainda ou "só por precaução", essa seria a melhor tática de mostrar que não tinha dinheiro nenhum no banco na hipótese de ser abordada em um assalto. "Notas novas cheiram a banco", como dizia seu neto antigamente.

O sorveteiro passa o sorvete de baunilha com granulado de amendoim em cima e um canudinho. Patrício, naquela idade, gostava da massa de framboesa ou chocolate. Framboesa era a favorita porque era a mais forte. Eulália acha que ele se referia ao gosto da framboesa que era mais forte, mas tinha uma certa desconfiança em relação a esta inferência, pelo que o garoto fazia logo em seguida. Ele olhava para o próprio braço e forçava-o enquanto olhava, como se quisesse fazer crescer algum super-músculo do antebraço.

— Obrigado senhora! Tenha uma boa tarde. — diz o sorveteiro.

— Que Ardna o abençoe. — devolve Eulália.

Sem trocos. Exatamente! Sempre fez isso como uma ajuda aos comerciantes — a sétima ordem de Ardna — e também para não se dar o trabalho de abrir novamente o porta-moedas ou ficar com ele aberto na mão esperando o troco para guardá-lo. Flamingos não é nenhum tipo de cidade do crime, mas tem seus problemas como toda cidade subdesenvolvida. Nada de primeiro mundo como Nova Dallas ou grande como São Preto, contudo a origem de tal receio não tem muito a ver com cidades grandes. Em verdade, Eulália sente-se até mais segura em uma cidade grande, dado a parte rural em que passou boa parte da sua vida. Eulália passou coisas duras demais para se aceitar com facilidade. As conturbações começaram logo cedo com abusos provocados pelo pai em todos os sentidos, motivo pelo qual vivia se escondendo na quadra da escola depois da aula. Mais tarde, seu pai morreu de hemorragia interna na região do crânio por levar uma coronhada enquanto bandidos invadiam sua casa quando Eulália tinha apenas 10 anos. O episódio causou uma certa confusão na mente da menina acerca da morte "heroica" do pai.

Eulália lambe o suco gelado do sorvete que já começa a escorrer na casquinha e em seus dedos. Ela se delícia da guloseima enquanto prossegue sua caminhada paulatinamente pela calçada da enorme praça. Após tirar um pouco, uma gota mancha de sorvete o vestido florido. Um grupo de crianças passa cantando alguma música, enquanto seguram balões de hélio com vários formatos de desenhos animados. Mais de perto, aquilo se assemelha mais a uma vozearia, dado que todas as crianças tentam cantar para sobressair a voz do outro. Eulália segura a casquinha com as duas mãos e, quando as crianças terminam de passar, ela relaxa um pouco e olha para trás.

"Devia ter derrubado bem em cima daquele ali".

Em instantes aparece uma mulher em camisa regata de náilon azul e calça leg escura, andando apressadamente em direção às crianças, gritando com elas, e logo em seguida um homem empurrando um carrinho de bebê também apressado. Eulália pensa em reclamar para eles, mas outra ideia toma seus pensamentos. "8? Não, não pode ser". Ela força as vistas em direção às crianças que já quase sumiam na outra esquina. "Oh! Céus! Oito crianças esse casal tem?".

Como num piscar de olhos, Eulália se recorda de Patrício, "como era danado aquele menino". Patrício, seu neto, foi mais fácil de criar, mas Geisa... Patrício era um santo perto da mãe. "Ah, se ela tivesse vivido o suficiente para ver o meninão que está agora... tirando algumas coisas, seria perfeito".

Tudo bem que o garoto de 20 anos agora está a mais de 20,3 km de Flamingos, provavelmente com uma arma na mão em alguma mata por aí treinando com outros 10.000 sujeitos, do jeitinho que o avô gostava, embora em situações diferentes. Entretanto, se Ardna permitisse Geisa viver um pouco mais, sentiria orgulho do filho. Entrementes, Eulália se recorda dos momentos que tinha ataque com as traquinices de Patrício. Embora a experiência de criar sua única filha tenha sido parcialmente um sucesso, nem tão doce, nem tão meiga, Patrício não puxou nada da aspereza da mãe nem — "do crápula" — da natureza do pai.

As crianças e o casal somem do cenário, bem distante. "Oito Geisas, imagina!". Eulália sente sua chateação passar e dar lugar a uma aflição. "Pobres coitados. Ardna que os ajude".

Patrício nunca correu assim, ou pelo menos, não quando estava com ela. Em fins comparativos, Patrício era um santo perto das demais crianças da idade dele, em sua época, e nada disso se devia a qualquer disciplina ou fato social absorvido pelo garoto por pura vontade própria, como a maioria das pessoas pensava. O medo da vó era grande o suficiente para poupar até um respirar no momento errado em certas cerimônias. A disciplina do garoto realmente dava outro ar às pessoas, mas Eulália sabia que ele também tinha seus escapes e a maioria das vezes com a cumplicidade do avô. Tal aproximação a preocupara no início, e por causa disso, não deixava muito o avô perto do neto, assim como fez com Nara.

"— Vai começar com essa bobagem de novo, Eulália?" Eulália sempre se limitava a responder com um olhar frio ou um dar de ombros. "Eu não sou um estuprador. Não sou a merda de um estuprador, está me ouvindo?" — Não, aquele homem não era igual ao seu pai. — Jamais, talvez. Não sabia descrever como era ao certo, pois os dois tinham seu lado bom. Ou talvez somente ela enxergasse isso. Mas, enquanto a parte ruim, não podia ser como ele, podia?

Eulália para em frente a uma faixa de pedestres com um amontoado de pessoas. Não é de costume daquela praça se encher logo cedo. Contudo, dado os problemas na linha vermelha no dia anterior, o povo, é de se deduzir que o povo esteja aproveitando a praça gigantesca em meio à folguinha a mais. Uma tentação e tanto ao ficar sem trabalhar em uma quinta-feira devido a um grande acidente, e não querer emendar na sexta-feira. Emendar. Uma boa pergunta para se fazer a um chefe. "Emendar o que, dona Eulália? O acidente?", ela imagina o inspetor falando isso, e dá risada do tom de voz em sua mente.

A velha termina de lamber a parte superior do sorvete e começa a chupar o resto da massa pelo canudinho comestível — não tão comestível para ela. Para Eulália, a parte da casquinha e o canudinho não são comestíveis. Por mais que veja os outros comendo tudo até sobrar nada, não é do tipo que faz o que todos fazem. Talvez por isso ainda guarde algum resquício da religião da falecida mãe. O caso do sorvete é algo diferente.

Quando ainda morava em Santa Lianna, uma época em que a área rural era mais abrangente que os dias atuais, Eulália gostava de visitar Flamingos, nem que fosse para fazer algo bem mínimo e até insignificante, como tomar um sorvete. Ao certo, não sabia explicar o porquê disso. Talvez devido à socialização, do gosto por uma cidade grande, da sensação de estar em um novo mundo... Seja lá o que for, ela ainda gosta e sente que seu neto corrobora até atualmente nesta questão. Ele adora ir para lá. Desde os 7 anos que Eulália leva o garoto para passear lá, e na maioria das vezes os dois apenas passeiam e tomam um sorvete, depois voltam.

Ele adora ver os flamingos na área de preservação. É vívido a imagem do garoto na cabeça da velha, comendo o sorvete com casca e tudo, lambendo a mão, chupando os dedos, e no fim ainda come o guardanapo se este por acaso estiver bem ensopado.

O borbulhar soa dentro do canudinho de dona Eulália, dando o sinal de que a massa do sorvete está em seu fim. O sinal abre e ela atravessa a rua, sobre a faixa. Enquanto atravessa, ela avista mais um casal agora. Os dois passam apressadamente enquanto o bebê grita palavras inteligíveis no colo da mãe e aponta para algum lado. O menino está bem animado, e seus gritos são de uma alacridade impagável, semelhante a de um bando de crianças vendo as caretas e palhaçadas de um adulto com o fim de comprar vários sorrisos delas.

Ao chegar do outro lado da rua, Eulália joga a casquinha com o canudo na lixeira. Se lembra de como Patrício a indagou certa vez acerca do porquê de ela não comer a parte da casquinha. "Tem germes", foi sua resposta automática. Uma resposta e tanto para dizer a verdade, uma vez que nem ela mesma esperava tal resposta. Não parou para pensar em uma resposta plausível, entretanto, por mais que parecesse, ainda que esse não seja o maior porquê, mas com certeza, um argumento e tanto. Quando o garoto perguntou o porquê, Eulália se limitou a uma explicação razoável de que onde ele enfiava os dedos sem lavar, era onde pegava na casquinha e no canudo. Ele até resistiu perguntando por que não levara as mãos com o álcool dentro da bolsa, ela rebateu dizendo que não estava falando apenas dele, e sim do sorveteiro também. Patrício fez menção de rebater novamente, mas os olhos da vó-mãe penetraram como uma faca de dois gumes em sua alma, fazendo o garoto desistir de qualquer outra argumentação.

"Geisa teve de onde tirar as mentiras mais rápidas da humanidade".

Eulália anda pela praça e se senta em um banco de pedra e ferro próximo à entrada da estação. Flamingos tem uma estação bem simples se comparada à maioria das estações. A entrada não passa de um túnel quadrangular com duas escadas rolantes em depressão para o mundo subterrâneo. Lá embaixo há uma pequena galeria com algumas coisas à venda e ao final do corredor ficam as bilheterias. Nada muito complicado para qualquer um que quiser sair e dar de cara com o maior centro turístico da cidade.

Eulália limpa seus dedos em um guardanapo que pegou dentro da bolsa.

— Ai minha Ardna — reclama Eulália numa forma de aliviar a dor que está sentindo nas costas, sentada naquele banco duro. Até os bancos dos passageiros no metrô são bem melhores que esses. Por um instante, lhe passa a ínfima vontade de ir trabalhar. Ao menos as cadeiras lá não são ruins. Ir para casa seria uma incógnita, já que não conseguiria ficar quieta em um lugar por muito tempo. Certa vez ouviu alguém dizer que, se algum velho ficasse parado por muito tempo, acabaria travando seu corpo inteiro. Apesar de não entender exatamente o sentido dessa frase em relação ao caso, Eulália acha melhor não se arriscar para descobrir.

Proativa. Longe de ser uma pessoa ligada nos 220 volts, mas mesmo sentada, mexer constantemente os pés, apertar uma das mãos, pestanejar os olhos veementemente, entre outras coisas. Talvez outro sorvete nessa hora não lhe faria mal, serviria para se manter em movimento, calibraria suas engrenagens, elas jamais enferrujariam enquanto tivessem pleno controle do seu corpo. 

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