Flamingos (I)

If life wont wait

Se alguma explosão acontecesse no prédio ao lado, Nara provavelmente mal escutaria devido ao volume da música no fone de ouvido. As chances disso acontecer à jovem morena, de longos cabelos ébanos e olhos tão negros quanto a noite, somam-se a uma vida em estado infernal que não tomaria cuidado com mais nada.

I guess It's up to me...

Já é costumeiro ouvir música enquanto lava a louça ou limpa a casa, mas não tão alta daquele jeito. A vibração do som estronda dos fones de ouvidos e ribomba em seu peito num ritmo mais intenso que seu próprio coração. Os hertz reproduzidos nos fones ultrapassaram o limite de 80 decibéis há muito desde quando o próprio smartphone alertou com o sobreaviso. Nara sempre foi teimosa para certas coisas, principalmente quando uma delas ia contra seu lazer, mas ouvir música nesse volume todo e acompanhá-la mediante gritos pela casa é algo que realmente foge do casual, denunciando a boa parte da vizinhança o seu péssimo momento. É como se quisesse que o próprio Simple Plan invadisse a sua cabeça, substituindo toda a tristeza e preocupação dentro do peito. Contudo, no fundo, ela sabe que mesmo que isso fosse possível, tal como um alucinógeno, a sensação retornaria alguma hora.

Woahh!

— WOOOOOOU! — ela grita acompanhando a música enquanto lava um prato na esperança da tristeza sumir ao menos por uns instantes de dentro de si.

Nara chegou em casa por volta das 15 horas do dia anterior. Achou que Artur tinha levado o menino para o trabalho e deixado na área das crianças da emissora. Para sua surpresa, ele não levou Nando e tampouco apareceu em casa até o final do dia. Ficou preocupada com a demora do marido e tentou ligar algumas vezes, sem sucesso. Sempre que ligava, caia na caixa postal e agora de manhã concluiu que, se não estivesse com raiva, poderia ter acontecido algo. "Seria?". Poderia ser uma amante, como a mãe sugeriu. Sim, perfeitamente cabível na situação de um homem desprovido de alguma parentela num raio de quase 14.000 quilômetros. A quem mais ele recorreria em uma cidade tão grande? Onde passaria uma noite fora de casa só para não ter que brigar novamente com a esposa? Seja como for, ela se sente uma idiota por não telefonar para ele enquanto estava na casa dos pais. Tentada em telefonar para a emissora Jhonsey e perguntar se ao menos ele está bem. "Ah, Artur. Artur. Tão cabeça dura". É quase como uma maldição namorar pessoas "cabeças duras". Mas como uma droga, é viciada demais nele para crer na possibilidade de uma possível traição. Ou ao menos, segundo a mãe...

...Moment in this town

Woahh!

— WOOOOOOU!

Nara nunca usou drogas, mas quando mais nova, na época em que ainda morava na casa dos pais, quando ainda "cheirava a leite ninho ou Danone com chocolate e colherzinha de plástico" no melhor dizer de seu pai, foi diversas vezes reprimida por este e pela mãe por motivos aparentemente antiquados e arraigados para ela. Motivos esses, que no pensamento deles, equiparam-se a drogas.

We won't come back the world is calling out

Woahh!

— WOOOOOOU!

Sempre classificara essa como uma música pop, mas certo dia, achou no Google como punk. Ela mal faz ideia de qual seja a descrição de tal gênero, e se for isso, é o único punk que realmente gosta. Para seus pais, adeptos dos velhos ventos de Rossefield, essas são as famosas músicas do demônio. Segundo eles, as músicas seculares são todas desgraçentas e endemoniadas, pois o próprio demônio rege elas no corpo das pessoas. Certa vez, Nara foi pega ouvindo uma dessas músicas por acidente. Enquanto limpava a casa, não notou o cabo plástico do pano de chão se enroscar no fone. Ao se virar novamente o cabo caiu e levou seu fone ao chão desconectando o conector da saída e fazendo a música tocar numa altura considerável — muito considerável — ao ponto de chamar a atenção da mãe no banheiro e o pai no sótão — embora ele já não estivesse com a audição boa naquela época — e fazer os dois aparecerem na soleira do quarto no momento em que desesperada, escondia o pequeno celular de flip-flop.

Isso foi o suficiente para render uma onda de praguejadas do pai e uma atitude drástica da mãe. Em nome de Don Jonas, ficaria sem celular até que arranjasse um emprego. E isso no melhor termo, dado que já tinha idade para trabalhar. Tudo bem que de menor aprendiz, mas ainda assim tinha. No entanto, o erro de cálculo foi o fato de Nara ainda ter ganhado de presente um celular de um namorado não oficial pouco tempo depois. Ao trocar de namorado, Nara ficou novamente sem celular depois que o rapaz, seis anos mais velho que ela, arrancou a força a aliança do dedo da jovem e arremessou no rio, de cima da ponte, em plenos 110 km/h. Um feito prodigioso para alguém sobre duas rodas. Além da aliança, o celular também caiu de seu bolso enquanto se protegia da investida do rapaz no piloto da moto, e também o fato de parecer possuir uma cabeça tão dura quanto um coco. Nara voltou a ter um celular novamente somente após se relacionar com Artur tempos depois.

Leave the past in the past gonna find the future.

"Ah claro. Artur!" Nada como um problema momentâneo para encobrir outro problema. São como camadas sucessivas de preocupações. Ela deseja somente o alívio de resolver suas preocupações de uma só vez, algo praticamente impossível na situação atual.

"Pão duro! Que tipo de marido não quer gastar um pouco com a família?"

So long, you'll miss me when I'm gone...

"Temos que economizar, amor"

"Patético!" mas isso não importa mais agora.

Ooh!

— WOOOOOOOH!

Ooh!

— WOOOOOOOH!

Ooh!

"Não! Mamãe não poderia estar certa. Depois de tudo que passamos juntos, ele com certeza voltará hoje". Longe de algum otimismo exagerado, de certa forma Nara tem ciência do marido que têm, ou ao menos até onde o conhece. Artur nunca sai de casa depois de uma discussão. Não apenas devido a uma filosofia conservadorista — deveras, de Rossefield — da família que resolve seus problemas dentro de casa, mas também pelo fato dele não ter praticamente nenhum familiar em São Preto para recorrer a desabafos ou passar algum tempinho longe de casa. A ideia de uma amante lhe é por demais um absurdo. Romanticamente falando, é claro. Talvez ele estivesse se vingando pelas vezes que ela escapou para a casa dos pais quando tinham alguma briga. Nara nunca o viu incomodar com isso, mas sente que de alguma forma aquilo fere seu ego, deixando-o impotente em resolver com ela certas situações de casal.

"Uma amante, minha filha"

Em verdade, é algo que talvez soubesse, ou preferia não saber. Talvez, talvez... Tudo que ela prefere saber no momento é que sofrera para chegar de ônibus em São Preto, já que a linha vermelha do metrô está interditada. Veio assim que recebeu a mensagem de Artur avisando que o filho iria acabar passando o dia todo na ala das crianças, tudo para manter uma desculpa fútil de mantê-lo descansando.

Descuido? Não. Apenas um ato de castigo. Nara pensou que deixar o menino seria uma forma de castigar o marido, fazendo-o repensar na família que ele poderia perder por besteira. E por algum motivo achava isso ser mais eficiente do que levar consigo para a casa dos pais. Nando é um prodígio para sua idade, e isso é notável até entre os professores do menino. Nando é o tipo que, por meio de perguntas inocentes, estabelece uma conexão com qualquer um facilmente, mas também traz uma forte impressão de que suas perguntas — sendo elas bastante simplórias em sua maioria — são retóricas, das quais o menino já sabe a resposta antes mesmo de perguntar. Talvez ele seja um terapeuta mais eficiente do que algum que Nara e Artur tentassem.

Sério Artur!

OITO ANOS, ARTUR!

Ao menos, foi esta a mensagem de resposta ao marido que porventura exibiu um erro ortográfico bem notável.

Deixei Nando em casa. Achei melhores deixar ele dormindo

Melhores, claramente não é cabível nessa frase, o que prova que já estava na correria da emissora realizando mais um dia de sua interminável pesquisa de trabalho sobre a tal cidade de Geloema. Artur é daqueles que para e corrige cada frase ou palavra numa conversa digitada. Isso incomoda Nara em um nível absurdo, mas com ela, ele sempre dá um jeito de fazer de um modo exagerado para parecer engraçado logo em seguida, de modo que ela acaba rindo da besteira no fim das contas. Talvez goste realmente de seu sorriso. Isso explica o bobo Artur das constantes palhaçadas em família. Vai ver, queria ver todos sorrirem... ou era apenas zombaria mesmo.

"Eu tenho que tentar"

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Nando está no quarto assistindo televisão em um canal educativo. Ele assiste a um de seus programas favoritos, os Caçadores Paranormais. Contudo, há uma questão: é impossível assistir ao programa, com uma mãe gritando palavras ininteligíveis como uma doida na cozinha. Tudo bem que, de certa forma, o programa não é muito aceitável para a mãe e muito menos pelos devotos de qualquer fé, entretanto os caçadores paranormais são bem populares entre o público infantil e pré-adolescente, sendo em sua grande maioria uma faixa de 9 a 12 anos. Há uma certa percentagem na pesquisa daqueles mais novos, mas a pesquisa ignorou as outras castas e probabilidades, aprovando somente o seu interesse. Nando viu tudo isso em um site de pesquisas como quando faz em horas vagas. Decerto, um menino muito curioso, como diria o pai.

— WOOOOOOOOOHHH

"Por Ardna! Se ao menos ela cantasse correto"

O garoto também é o prodígio dos idiomas. Têm oito anos e já sabe falar o inglês fluentemente, perdendo a conta de quantas vezes já corrigiu a mãe ao cantar algo incorreto.

— IU UNN MIST WERE A OOOOOONE!

Aquilo é uma tortura para o menino. Embora o problema, Nando tenta tirar algum proveito da situação, fazendo leituras labiais nos dois apresentadores do programa. Aprendeu isso com o pai. Quando saem juntos e estão ociosos enfrentando alguma fila de banco, mercado ou lotérica, os dois olham para a boca das pessoas ao redor e imitam suas vozes. Percebera isso a primeira vez quando o papai aparentemente balbuciava algo para si. Um passatempo divertido. Ele recorda estar em pé e o pai sentado em uma cadeira plástica com os cotovelos apoiados próximo aos joelhos. Parecia irritado após ter andado muito. Havia andado muito com o pai naquele dia, de um lado para o outro. Mesmo no centro, essas coisas pareciam chatas porque as perninhas de Nando doíam facilmente.

Quando deu por si, já estava rindo das vozes forçadas que o papai fazia ao traduzir a fala das pessoas. Estava mais do que na cara que não era realmente o que as pessoas conversavam, mas de alguma forma isso o divertia. Se lembrou de certa vez ver uma senhora no shopping conversando com um careca barbudo. Ele era bem forte e os dois balançavam suas bocas num ritmo acelerado que só podia tratar-se de uma discussão. Ele e o pai se entreolharam e logo começaram a rir das possíveis falas que se formavam na cabeça de ambos.

Eu queria presentear o meu sobrinho — falava o pai numa forçada voz gutural imitando a voz do careca que bateu uma mão fechada na outra. — Eu tenho que dar esse presente.

Nando ri e então finge numa voz fina e forçadamente áspera da velha.

Ah, o seu sobrinho. Ele está... — a senhora se vira, olhando o shopping em volta e logo após procura algo na bolsa — aqui dentro, meu fi. Deixe-me ver minha bolsa.

De repente, a senhora fez algo totalmente inesperado. Ela tirou um spray de pimenta da bolsa, chacoalhou e atirou no careca. Ela pisou forte sobre os tamancos, mostrando toda sua coragem para o fortão. Nando ficou dividido entre continuar a narração e rir com o pai da situação.

— WOOOOOOOOOHHH

O grito da mãe afasta os pensamentos do garoto. É, podia-se dizer que é mais legal quando o pai fica em casa, embora a mãe também tenha seus pontos divertidos. Enquanto olha os dois amalucados na televisão fazendo praticamente uma mímica, Nando conclui que narrar as vozes das pessoas para algo engraçado não ia levar ele a traduzir na íntegra o que queria entender do programa na televisão. Ele tenta traduzir uma vez e tudo que entende é:

"Ciência com bosta faz um cachorro.

hmmmm! Estrume de espinossauro é muito bom Bill!"

É... o humor do pai está com o garoto mesmo nos momentos mais sérios. O celular da mãe toca exatamente quando Nando se aproxima do televisor e mete a orelha na saída de som.

— Alô?... — diz Nara ao atender o telefone, um pouco chateada devido à pausa que teve que dar na música. — Ah, oi, mãe, pode falar... Como é?... — fala enquanto alguns barulhos de panela sobrevêm da cozinha. — Ahn! Tá bom... Obrigada. Tchau. — Ela aparece de supetão no quarto no mesmo instante que Nando desliga o televisor. — Nando, vai arrumar... O que é isso?!

O menino aumenta os olhos torcendo para a mãe não ligar a TV, e como se lesse sua mente, ela coloca uma mão na cintura enquanto a outra segura o telefone, depois anda em direção ao controle remoto e liga o aparelho, e o quarto é literalmente incendiado com cores dançantes provindos da televisão que exibindo exatamente o programa dos Caçadores Paranormais. Nara se coloca entre a televisão e o filho, voltando a mão para a cintura, com um olhar nada agradável.

— Agora é só ascender aqui e...

BUM!

Explode uma panela no fogão, bagunçando o cenário e deixando o cenho, colarinho e a parte superior da vestimenta dos dois apresentadores sujo de preto.

— Eu acho que isso era o manual de bombas caseiras Chris. — diz o apresentador com rabo de cavalo.

Nando segura uma risada.

— O que eu já disse sobre esse programa Nando? — irrita-se Nara ainda com a postura de indignada.

Nando contém a risada, olhando-a sem resposta e pela irritação da mãe, ela também notou. Em contrapartida, Nando também identificara isso no semblante da mãe, mas antes que desmanchasse a postura, Nara se vira para o televisor e desliga.

— Não quero mais isso, ouviu bem? — ordena a mãe ainda de costas. Nando abaixa a cabeça. — Não quero você absorvendo tudo o que a ciência fala por aí para depois dar as costas a Ardna e sair falando mal da irmandade por aí.

Ele nota uma certa emoção na voz da mãe, apesar de seu cenho dizer o contrário. Nara respira fundo e deposita o controle remoto ao lado da TV em cima do balcão, pressiona o interruptor acima na parede ao lado da porta, acendendo a luz do quarto.

— Estamos entendidos?

— Sim, mãe.

Nara enrola o fone de ouvido no celular e mete-o no bolso do avental, vai até o filho sobre o tapete, agacha e passa a mão limpando a blusinha dele e ergue a cabeça do mesmo.

— Ei, mamãe te ama, viu!

— Cadê o pai? — indaga Nando, tristonho, olhando nos olhos da mãe, percebendo que a emoção da voz dela acabara de passar também para o semblante.

Nando nota ela ficar sem reação ante a pergunta, pois já são 9 horas da manhã e nada de notícias do pai.

— Mãe?

— Ah, sim, meu amor, papai vai voltar logo.

Nara abraça o filho e dá um beijo em sua boca, depois se levanta e sai em direção à cozinha, ordenando ao menino que arrume as camas e limpe o chão do corredor e da sala.


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