A Fazenda dos Edomontes (II)
Patrício adentra o cômodo, localiza o smartphone em cima da mesinha de madeira e visualiza a foto do colega estampada na tela do celular. Ele estende a mão em cima da mesinha de canto e pega o aparelho. Espera o último...
DRRRIN
— Patrício?
— Alô. Oi, Raul. Sim, sou eu sim — responde, abrindo a porta enquanto equilibra a mochila de viagem atrás de si — Pode falar.
— Está atrasado, Cabo.
— Desculpe-me, inhô — nunca soube uma forma certa de tratar o companheiro de pelotão. Apesar de tratá-lo pelo nome, isso gera um certo receio ante a resposta do colega logo em seguida. Ainda que os dois sejam cabos, o outro sempre tem um jeito mais austero, um durão em sua perfeita forma e, apesar de ser mais alto que Raul, ele sempre prefere não arriscar. — Já tô de saída.
— Já devia estar aqui.
A voz de Raul expele um timbre bem forçado. Quase como se estivesse arranhando a garganta para parecer mais mal. Noutras épocas, Patrício morreria de rir.
"Mas a folga dura até a meia-noite de amanhã", pensa Patrício. Contudo, não importa. Prefere aceitar a bronca desmerecida a ter algum problema com Raul. Raul é um tremendo grandalhão. Não tão grande quanto Patrício, é claro, mas o que falta de maldade no bom e velho Patrício, sobra no grande Raul.
— Já tô a caminho — diz o gorducho, trancando a porta já do lado de fora.
— Melhor vir rápido — diz o outro com a voz meio tímida e sucinta. "Aparentemente têm algo na boca. Colocou agora", pensa Patrício. — Onofre não vai gostar nada de saber que alguém se atrasou para o meu turno.
"Turno dele? O que eu tenho a ver com isso", reflete consternado.
— De qualquer forma — retoma Raul, deixando um barulho de mastigação bem evidente nas pausas para respirar — não tenciono falar nada. Venha rápido, você tem que fazer seu turno.
"Agora é meu turno?"
— Certo — concorda o gordo, deixando a porta para trás enquanto anda em direção à velha caminhonete do avô na estrada de terra.
Patrício espera mais alguma coisa de Raul, mas é apenas isso. Ele não sabe ao certo o que se sucede, mas, estando certo, sua folga acabaria às meia-noite do dia seguinte e, com isso, teria algum tempo de folga ainda hoje. É engraçado pensar como Raul pode amedrontar o gorducho ao ponto de fazê-lo ficar no turno dele. Entretanto, Patrício não tem intenção de ir imediatamente. Faria uma parada em Flamingos como planejado em seu itinerário.
O cenário ao redor é uma verdadeira cortina de árvores. Acácias e baobás em sua maioria. Uma tropa de folhas verdes embaixo de um céu tingido de azul-escuro, muito escuro, mas ainda azul para olhos que cresceram no campo. O cri-cri dos grilos em uma mata tão escura; não tão escura para Patrício, mas ainda assim a dificuldade de achar os grilos naquela mata é bem considerável. No entanto, ele acharia, se quisesse.
"O vovô acharia de olhos vendados", pensa enquanto abre a porta da caminhonete. Ele joga a mochila no outro banco e sobe no automóvel logo em seguida. Fecha a porta, abre a janela, respira fundo e deixa o cri-cri ser saudado por seus ouvidos uma última vez enquanto seus pulmões recebem o doce ar dos campos.
"Credo", pensa, sentindo cheiro de fezes no final da inalada. "Alguém cagou a uns 40 passos daquela árvore", completa observando uma árvore mais longe. Fica um tempo olhando para o retrovisor, admirando o reflexo da casa atrás de si. A residência lembra mais uma choupana do que uma casa. Boa parte da estrutura externa é constituída de madeira, mas a segunda camada é de tijolo e barro. Talvez fosse melhor ter comprado outro terreno em outro lugar, mas o avô sempre dizia que as melhores coisas da vida são sempre feitas com as suas próprias mãos. Patrício gira a chave e liga a caminhonete. Solta a embreagem e sai dirigindo.
"Era chiclete", conclui o gorducho grandalhão, lembrando-se da mastigação de Raul ao telefone. A caminhonete remexe, balançando seu corpo, quase jogando sua cabeça no teto ao passar por outeiros na estrada. "Raul nunca fuma em serviço". Seja dito de passagem, há momentos em que Raul fuma em serviço. Certamente, nunca num horário que não seja de seu serviço. Em seus turnos ou de colegas, é mais do que comum vê-lo fumando pelos cantos ou bebendo alguma coisa mais forte. Entretanto, sempre carrega algumas barras de chicletes de hortelã ou um pacote de balas extra forte. Levando em consideração o que Raul falou, ele duvida muito de que o mesmo tenha voltado um dia antes de finalizar a folga. É mais fácil Raul chegar um dia atrasado e pedir cobertura para alguém. "Está na cara que ele quer que eu chegue antes para fazer o turno dele", assim cobrindo o próprio turno e o dele na escala da vigilância.
Enquanto a caminhonete cruza a área rural, deixando um longo caminho em fumaça para trás, respingos de água caem em seu braço esquerdo, graças à janela aberta. Há nuvens se formando ao oeste da fazenda. O escuro esfumaçado avança na abóbada noturna pincelada por estrelas tão distantes, anunciando uma forte chuva esta noite.
"Ótimo, mais um motivo para chegar amanhã"
O grandalhão de cara limpa e corada liga o rádio do automóvel no painel e sintoniza na estação mais próxima.
— A operação dos túneis foi totalmente evacuada, o caso metrô 568 estará suspenso até a situação em Flamingos normalizar.
"Flamingos?"
— A polícia não tem dados no momento que coliguem o que quer que tenha ocorrido em Flamingos com o caso do metrô 568. Porém, ainda assim, essa hipótese não pode ser descartada, uma vez que a estação da cidade é ligada diretamente com a linha vermelha do metrô. Até o momento, o que temos é o estranho sumiço de qualquer comunicação com as pessoas da cidade de Flamingos. Cerca das 13 horas da tarde de anteontem, Flamingos foi dada como perdida, desaparecendo de todos os meios de comunicações que existem. Emissários foram enviados duas vezes à cidade em tentativa de contato, mas infelizmente as duas vezes fracassaram. A seguir temos uma declaração do governante a respeito do assunto, prometendo mais uma tentativa...
"Vovó" pensa Patrício ajeitando os óculos enquanto dirige.
DRRRIN
Nesse momento, Patrício deseja muito jogar o celular pela janela da caminhonete. Não é valente como o vovô, ou pelo menos nunca se considerou. É mais fácil o telefone modelo 2010 arremessar Patrício para fora e sair dirigindo.
"Vovô, sim, era corajoso!"
DRRRIN
— Oi, Raul — saúda Patrício com a voz mais entediante que conseguiu após atender o telefone no viva-voz.
— Boa noite! — a voz não é de Raul, fazendo Patrício desviar os olhos da estrada por uns segundos para ver a tela do smartphone. Ele identifica um número corporativo — Seu Patrício Edomonte se encontra?
A voz é leve, juvenil e feminina. Provavelmente algum estagiário, numa análise mais rápida e dedutiva de Patrício. A moça não falou tão rápido para ser alguém do telemarketing.
— Sim. Hmmm! Com quem eu falo? — responde, elevando um pouco a voz devido ao barulho da estrada e do motor poluído da caminhonete.
— Somos da emissora TV Livre de Nova Dallas, do programa Caçadores Paranormais, e gostaríamos de ter uma palavrinha com Patrício Edomonte. — Explana a jovem sem dar muitos detalhes em meio a uma barulheira ao fundo do falatório, telefones tocando e um leve vácuo, semelhante à mistura de assovio e vento ao longe, pelos sentidos de Patrício.
— Sou eu mesmo.
— Bom, seu Patrício, o senhor está sendo convidado a uma entrevista na emissora do programa Caçadores Místicos, com Christopher e Phillipe. Gostaríamos de saber... — Apesar daquela sensação gostosa de estar sendo tratado como um senhor de 70 anos, Patrício comemora internamente pelo elogio e também por identificar o som do estranho vácuo na ligação: um ar condicionado. — ...que o senhor prefere?
— Bom... é que acho que agora não vai dar não. Estou meio apressado no momento. — Responde como se estivesse devendo a alguém, desaprovando o timbre da própria voz naquele momento.
— Senhor, é rapidinho. Podemos marcar a entrevista para amanhã cedo mesmo, se assim preferir. — A jovem parece determinada a convencê-lo, mas aí há um grande problema de alguém que não possui muitos amigos. Dizer 'não' ou cortar a fala de alguém, por mais simpática que seja.
"Eu sou o dono dessa porcaria! Não, eu não quero e dane-se. Vão se catar todos vocês. Quero que vão pra bunda do bode!"
Esta última era uma fala de vovô Joaquim, que segundo ele tratava-se de uma gíria da terra natal da vovó e que ele mesmo aprendeu com ela. Ouviu certa vez falando isso em um momento de muita chateação. Não saiba se era num momento assim, mas era a única forma de ver Eulália profanando um palavreado desses. Tal xingamento vai gravemente contra as regras do pacto de Ardna. Se alguém da fé a visse falando algo assim, certamente estaria em apuros nas mãos de um Seravat.
— Acho que realmente não poderei ir. — disse, esforçando-se para manter o telefone entre as pernas enquanto passa por cima de mais um buraco na estrada.
Alguns barulhos estranhos na ligação, como se estivesse acontecendo um choque com outras coisas, que Patrício deduz ser o jovem apanhando alguma coisa que acabou deixando cair.
— Olá, Patrício. — Agora, uma voz mais grossa, semelhante à de um locutor de rádio, a qual nem mesmo Patrício reconhece. — Boa noite!
"Não. Não caiu nada. Era alguém pegando o telefone da mão dele."
— Boa noite. — Responde Patrício, desacelerando a caminhonete, já conseguindo ver a rua asfaltada cruzar o horizonte. Se, se livrasse daquela situação, chegaria à estrada em 20 minutos ou menos.
— Gostaríamos de saber se você conhece Eulália Edomonte? — O efeito da voz extremamente grave se mistura com o choque do nome da avó, que prontamente sobressalta o gigante, fazendo-o brecar a caminhonete. Seus lábios quase beijam o volante e o celular vai direto para o tênis. Patrício pega o smartphone, tira do viva voz e o aloca em seu flanco.
— Sim... eu conheço — se as emoções do gorducho normalmente já são muito simplistas em sua fisionomia, um simples "sim... eu conheço" transmite todo desespero ou alegria possível de um parente muito próximo e se possível, faltaria até mesmo no turno do colega durão de trabalho, que lhe custaria alguns pontos na cartilha ou talvez alguma detenção por alguns dias.
— Patrício Edomonte,precisamos ter uma palavrinha com você.
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