Capítulo 9 - O caído
O COPO DE AKANNI estava vazio. Dei um tapa discreto na coxa de Alex para que ela providenciasse outra dose ao nosso ilustre visitante e ela retornou para perto com a garrafa de uísque em mãos. O serviu e continuou a prestar a atenção no que ele dizia.
— Gostaria de poder dizer isso de uma maneira menos chocante ou mais branda, mas o fato é que estou na Terra para caçar um nefilim desgarrado que tem me escapado já há algum tempo, e creio que o seu irmão, Costel, é a minha melhor pista para localizá-lo.
Quase nada daquilo me fazia o menor sentido. Franzi o cenho enquanto degustava o meu uísque.
— Nefilins não são anjos caídos que vivem na Terra? — Havia uma sombra de dúvidas pairando a cabeça de Alex.
— Existem muitas interpretações e definições possíveis para as diversas castas angélicas, mas, em linhas gerais, os nefilins são só metade anjos. Eles são filhos de anjos com fêmeas humanas e começaram a povoar o mundo... há muito tempo...
— No período pré-diluviano — completei, ao que ele anuiu. — Eu costumava ler a respeito de histórias bíblicas em um período de ócio em que morei na região do Peru. Até onde eu sei, os nefilins são mais demônios do que anjos...
Akanni não disse nem que sim, nem que não.
— No período anterior ao cataclismo que vocês mortais conhecem como "O Dilúvio", um grupo de duzentos anjos resolveu desafiar as ordens do Pai Celestial e desceu à Terra para copular com as mulheres terrestres. Nessa época, eu fazia parte de uma ordem denominada de Os Santos Vigias, que tinha como principal tarefa proteger o tecido entre as realidades. Eu era um dos "Grigori" ou "Vigilantes", uma das primeiras linhas de defesa do mundo terreno, e era liderado em campo por Samyaza, um dos anjos mais poderosos da nossa classe angélica.
Eu estava cada vez mais perplexa com aquela história. De repente, eu realizei que a criatura sentada à minha frente tinha milênios de idade e uma experiência em batalha infinitamente superior à minha ou a qualquer outro ser que eu já tivesse conhecido.
Se de bom humor ele pode me curar dizendo meia dúzia de palavras mágicas, imagina só o que ele pode fazer se eu o irritar!
— Está falando sério? — perguntou Alex, empertigada ao meu lado. — Você fazia parte de uma tropa de anjos? Como guerreiros à serviço de Deus?
Mais uma vez, ele não confirmou ou negou.
— A minha missão e a da minha ordem na Terra, desta vez, no entanto, era menos nobre do que lutar em nome do Divino. Meus irmãos e eu estávamos passando por uma fase ociosa sem batalhas para travar. Alguns de nós apresentaram certa curiosidade quanto aos hábitos humanos e resolveram conhecê-los mais de perto. Muitos desses anjos acabaram gostando mais do que deviam da vida terrena e se corromperam. Aos olhos de nosso Criador, estávamos nos rebelando contra os Seus desígnios, e fomos rebaixados, por assim dizer.
— Então, você é um anjo caído? — lhe indaguei, ao que a sua resposta me soou dúbia:
— A minha missão é uma forma de redenção. Quando apresentei arrependimento pelo que tinha feito, os meus superiores ordenaram que eu caçasse e exterminasse os nefilins como um meio de retornar ao meu antigo posto como um Grigori, à frente das linhas de defesa dos Santos Vigias de Miguel, Rafael e Gabriel.
— Está falando dos arcanjos? — Alex quase saltou do assento ao indagar aquilo. — Você servia diretamente aos arcanjos?
Ele acenou positivamente sem muita empolgação.
— Você disse que a pista que seguia atrás do nefilim desgarrado o conduziu até o nosso castelo, até Costel. Por que acha que o meu meio-irmão estava envolvido com seres meio-anjos e meio-humanos? E o que isso tem a ver com o seu desaparecimento?
Akanni ficou mais sério que de costume. Sorveu o restante do uísque em seu copo de um só gole, encarou a nós duas em uma transição rápida de uma para a outra e, então respondeu:
— Não vai ser fácil ouvir o que tenho para lhes contar a respeito do que sei sobre o homem que chamam de Costel.
Eu tinha ficado abismada com aquela introdução e acenei para que ele continuasse.
— A confusão a respeito dos nefilins serem anjos caídos ou demônios provenientes das fossas infernais é válida. Na verdade, boa parte deles começou a servir Lúcifer depois que foram expulsos por nós, os Grigori, do plano terreno. O nefilim a quem eu busco através das eras se chama Thænael e, como vocês podem supor, ele já foi metade anjo. Há muito tempo atrás, ele chegou a ser capturado e enviado ao inferno, mas conseguiu voltar décadas mais tarde, evocado para o planeta de vocês através de um ritual de magia negra.
A minha mente retornou para a tarde ensolarada em que a Teia e eu nos empenhamos em deter as ações de um grupo dissidente da Ordem do Portal de Fogo de Adon Gorky na Inglaterra, enquanto os miseráveis tentavam abrir uma passagem entre o inferno e a Terra em 1963. O demônio que havia escapado pela abertura e tentado me possuir se chamava Sephiræd e, por muito pouco, não conseguiu o seu intento de tomar conta do meu corpo.
— Ao longo da sua existência, um grupo de amigos ocultistas conhecido como a Teia combateu e impediu a ação de feiticeiros malignos que tinham como seu principal intuito abrir portais do inferno para o nosso mundo. Eu mesma presenciei pelo menos uma meia-dúzia desses rituais, e vi com os meus próprios olhos o estrago que esses demônios poderiam fazer se passassem para o lado de cá. Eu achei que com a destruição da Ordo Ignis Veni, essa loucura mística tinha acabado.
Akanni não fez nenhuma indicação de que desconhecia a ordem da qual eu estava me referindo. Inclinou o tronco em seu assento para encimar o copo vazio sobre a mesa de centro e entrelaçou os dedos.
— Esse nefilim a qual me refiro, assumiu a forma de um mortal em um desses rituais de evocação. Pelo que investiguei com a ajuda de outros de meus irmãos em visita ao plano terreno, ele está entre os humanos desde o final da década de 1920, sobretudo, perambulando em território europeu.
Aquela informação me atingiu em cheio. Algo muito importante havia acontecido entre mim, a Teia e Costel no final da década mencionada por ele. A partir daquela missão em Donetsk, na Ucrânia, a relação entre Costel e eu havia sofrido um abalo gigantesco e, até aquele momento, eu não sabia muito bem a razão. Akanni não queria dizer de uma só vez, mas conforme ele rodeava o assunto, eu comecei a desconfiar do teor da revelação que ele estava prestes a fazer.
— Meu irmão foi raptado e aprisionado por um feiticeiro maligno chamado Adon Gorky em 1928, Akanni. Segundo o que eu soube, ele foi torturado e quase sacrificado pela ordem de bruxos que esse homem comandava... Eu impedi o ritual que estava prestes a se desenrolar em Donetsk, na Ucrânia... mas, apesar disso, não pude salvar Costel. Você está me dizendo...
— Eu tive um encontro nada amistoso com o seu irmão em 1946, na fronteira entre a Espanha e Portugal, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Na época, eu ainda não sabia que ele era um vampiro e subestimei as suas capacidades de combate e força sobre-humana.
Alex e eu voltamos a nos entreolhar. Ela também não sabia daquele encontro entre os dois.
— Por que não disse antes que já havia se encontrado com Costel, Akanni?
Ele ignorou a minha pergunta e continuou:
— Costel, ou o ser que usava o seu corpo, na ocasião, estava acompanhado de uma mulher de cabelos loiros e também vampira como ele. Os dois uniram forças no intuito de resistir ao meu ataque e conseguiram escapar. Eu perdi o seu rastro após a nossa luta e, desde então, o venho tentando localizar através do cheiro do sangue que ele deixou em meu cajado.
Akanni apontou para o bastão com a cabeça de leão esculpida no cabo, a descansar no canto da poltrona que ele ocupava.
— Você estava seguindo um nefilim e encontrou Costel com essa mulher vampira...
— Você ainda não entendeu, Alina — disse ele, usando o meu nome de batismo pela primeira vez em nossa conversa. — Eu não estava seguindo só o nefilim. Eu estava seguindo o rastro do próprio Costel. Durante o ritual de magia negra, o corpo de Costel foi tomado por Thænael. Os dois agora são um só, eles foram amalgamados.
Alex soltou um grito. Eu me mexi em meu assento, incomodada.
— Todo esse tempo... O meu irmão... Estava tomado por uma criatura do inferno?
— Não qualquer criatura do inferno — completou ele, acelerando ainda mais a minha exasperação. — Apesar de pertencer a uma das classes mais baixas de demônios nos círculos infernais, Thænael serve diretamente a Demophilus, um dos generais do próprio Lúcifer. Ao longo dos anos, ele adquiriu a experiência necessária para liderar grandes exércitos, e tenho certeza que a sua missão na Terra, agora que controla um vampiro poderoso, é trazer mais de seus irmãos nefilins para cá. Ele quer vingança contra os Santos Vigias, a começar por mim.
— O tio Costel não é um demônio... Você está mentindo!
Alex começava a se exaltar e eu sabia o quanto aquilo era perigoso não só para ela, mas, principalmente, para mim e para Akanni. Agarrei a sua mão e procurei mantê-la tranquila.
— Há alguma chance de que você tenha se equivocado e que esse tal Thænael não esteja controlando o meu irmão? — perguntei, com uma faísca de esperança ainda brilhando nos olhos.
— Segundo o que vocês disseram, Costel foi golpeado mortalmente no peito, teve o coração praticamente arrancado para fora do corpo e, mesmo assim, tudo que encontrei quando pisei nesse castelo foi a poça de sangue em que ele ficou mergulhado, além dos sinais de violência nos criados da casa. Nenhum vestígio do seu cadáver ou as cinzas da sua desincorporação. Mesmo um vampiro tão poderoso, jamais seria capaz de resistir a um ferimento dessa magnitude... A menos que fosse beneficiado pelos dons curativos de um nefilim-demônio!
Era muita coisa para processar ao mesmo tempo. Eu estava surtando.
— Você disse que Thænael busca uma vingança pessoal contra você. Qual a razão disso? Qual é a história entre vocês dois?
— Quando me arrependi dos meus pecados perante o Pai Celestial, como remissão, eu fui enviado de volta à Terra para caçar os meus próprios filhos meio-anjos, meio-humanos. Até que eu conclua a minha tarefa de eliminá-los, eu não posso voltar ao Céu. Thænael é o último obstáculo para a conclusão da minha missão sagrada... Ele é o meu último filho vivo.
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