Capítulo 52 - A fúria de Thænael
ÉRAMOS MENOS DE quarenta no início do combate diante dos portões de Montbéliard. Durante o primeiro levante das forças inimigas sobre nós, o contingente foi reduzido drasticamente à metade.
Os tiros com balas de prata zuniam em meus ouvidos vindos de todas as direções. Em meio ao caos, elas só podiam ser diferenciadas dos projéteis de pólvora comum pelo cheiro.
Um lobisomem da guarda de Mason teve o cérebro explodido por uma cápsula disparada do helicóptero sobre as nossas cabeças bem ao meu lado. O seu ganido durou um segundo, e senti seus miolos projetados contra o meu rosto no instante que o impacto do tiro também me jogou ao chão.
Quando Thænael mandou que seus homens avançassem contra nós, eu tive a nítida sensação de que aquela seria a minha última batalha. Em pouco tempo tudo estaria acabado. O exército do nefilim varreria o nosso pequeno contingente. Ele arrancaria a minha cabeça, mataria Grealish e conquistaria a Terra com suas hordas infernais.
Eu não achava que podia vencer. Apesar disso, eu continuei firme, mesmo quando os pentes das minhas Berettas se esgotaram e a kpinga de Akanni voou em direção a um vampiro para se perder em meio à multidão de outros duzentos que corriam em minha direção.
Eu não podia desistir. Por Alex, eu precisava me manter em pé. Eu tinha que continuar lutando mesmo sem forças. Eu não podia permitir que a minha filha continuasse sob o poder daquele monstro.
♦
— É bom rever você, irmãzinha. Me sinto honrado que, em seu último suspiro, você possa presenciar o nascimento da nova era que se inicia hoje. O nascimento do renovado e definitivo Concílio de Sangue!
O rosto de Costel era uma máscara fria e pálida com um sorriso forçado rasgando-lhe a boca. A água da chuva escorria por seu casaco de couro negro conforme as suas mãos se mantinham estendidas ao lado do corpo.
Tão logo disse aquela frase de impacto, digna dos vilões mais medíocres do cinema moderno, eu percebi uma movimentação atrás dele. Os soldados vampiros ainda permaneciam perfilados a menos de um metro de seu líder. Foi quando eu os vi sendo conduzidos à frente. Cinco membros do clã Ardelean que eu não sabia identificar andaram seis passos além de Costel, arrastando suas vítimas. As posicionaram de joelhos no chão e permaneceram cabisbaixas, como que drogadas. Entre elas estava a minha filha.
— ALEX!
Mason, Rupert e Bethany reagiram intempestivamente quando viram que ao lado de Alexandra jaziam igualmente dominados Scott, Brittany e uma mulher loira de cabelos desgrenhados que logo identificamos como sendo a condessa Cassandra. Enquanto nos indignávamos em ver os nossos familiares sob o jugo de Thænael, ainda sem entender como eles tinham sido capturados, a mais terrível das revelações foi feita a seguir.
O corpo maciço do rapaz surgiu de trás dos soldados para ganhar espaço entre eles. Trazia dois corpos sobre cada um dos ombros e os arremessou diante dos que jaziam ajoelhados, como se não pesassem mais do que sacas de arroz.
Eu estava atônita demais para entender o que estava acontecendo, mas o grito de Mason ecoou no quintal da mansão Archambault um segundo que me estremeceu dos pés à cabeça.
— Reece! O que está fazendo com esse monstro?
Reece Grealish não parecia mais com ele mesmo. O loiro alto de músculos tesos tinha uma expressão quase demoníaca no rosto. Não apresentou nenhum tipo de remorso ao se afastar dos corpos de Sergio Gutierrez e de Owen Lampard, sem nos perder de vista.
Oh, meu amigo Sergio! Não... Não você! Não pode ser!
As pistolas tremiam em minhas mãos. Naquele momento, eu tive gana de afundar os dedos nos gatilhos e crivar tanto Reece quanto Costel com as minhas balas.
Na hora, era difícil raciocinar qualquer coisa. Eu estava vendo a minha filha completamente grogue ajoelhada no chão enlameado e coberto com os cadáveres dos vampiros do clã Archambault. Mais à frente, o corpo franzino e jovem do menino que eu havia adotado para morar comigo na Escócia, ainda durante o meu luto por Alexandra, jazia sem vida, ensanguentado.
Eu não conseguia pensar com clareza, mas a verdade era uma só: Reece Grealish era o agente triplo infiltrado no Concílio de Sangue e na Tertúlia da Lua. Ele tinha sido a pessoa que entregou a nossa posição para Adela Quinn em Varna e, principalmente, quem havia facilitado a invasão de Thænael à mansão de Archambault.
Ele. O belo lobisomem por quem minha filha era apaixonada. O leal e mais experiente general do Condado Grealish. O Judas. O traidor.
— Me diga, Reece! O que está fazendo ao lado desse monstro? Desse assassino?
A pergunta de Mason ressoou no espaço aberto da mansão sem resposta. Reece se movimentou de modo a se perfilar com Thænael, e foi dele a frase seguinte:
— Reece agora faz parte do meu exército de monstros, senhor Grealish. Ele esteve infiltrado entre vocês nos últimos três anos facilitando as minhas investidas. Enfraquecendo as suas tentativas patéticas de deter o meu avanço. Nesse momento, o corpo forte e poderoso daquele que um dia foi o seu filho hospeda outro de meus fiéis companheiros de batalha, Jæziel.
Eu não conseguia desviar os olhos de Sergio no chão. Os seus braços estavam amarrados para trás e os seus cabelos negros cobriam o rosto marcado pela violência. Em minha dor, eu cedi ao desespero. Comecei a tentar contato telepático com Alex. Eu gritava para que ela despertasse do estado letárgico em que se encontrava, mas ela não respondia.
"O vircolac, Alex. Nós precisamos do vircolac agora. Acorda, garota. Levante-se! LEVANTE-SE, ALEXANDRA!"
Eu avancei além da linha de defesa formada pelos homens de Mason. Apontei as pistolas engatilhadas para o rosto de Costel e bradei, tomada pelo ódio:
— Eu vou te matar. Você não imagina o prazer que vou sentir quando assistir a sua cabeça rolar de cima do seu cadáver. Eu vou gargalhar de satisfação, seu desgraçado!
Ignorando qualquer estratégia de defesa ou ordem militar, eu comecei a apertar o gatilho à medida que caminhava em direção a Costel. Um de seus soldados simplesmente se atirou em sua frente para impedir que as balas o afetassem, mas eu não desisti. O vi desaparecer atrás da multidão de vampiros que se aglomerou vindo em sentido contrário. E foi aí que a guerra teve início.
Vampiros e lobisomens começaram a se digladiar de maneira violenta sob a chuva quase torrencial que desabava sobre o solo da França. Era difícil distinguir aliados de inimigos durante a ação caótica e desordenada que tomou a frente da mansão Archambault em poucos minutos.
Em meio aos odores diversos e aos sons de movimentação ininterrupta, eu procurava atingir qualquer coisa que cruzasse a minha frente. Meu objetivo era muito claro. Eu precisava alcançar Alex. Eu precisava libertar a minha filha antes que Costel a levasse dali. Eu tinha que salvá-la.
"Responda, Alex! Onde você está?"
Eu a tinha perdido de vista e os vampiros avançavam sobre mim aos montes. Tinham ordens diretas para me liquidar, mas eu estava em modo animalesco. Nada seria capaz de me deter naquele momento.
Quando as minhas balas se esgotaram, eu joguei fora as Berettas de meu marido Enzo Di Grassi e agarrei a kpinga de Akanni no bolso interno do casaco. Girei a arma africana no ar atingindo aqueles que ousavam interromper o meu avanço e, quando me vi em desvantagem, arremessei o instrumento a fim de abrir espaço à frente para correr.
Fui agarrada pelas pernas antes que conseguisse me aproximar da posição onde tinha visto Alex por último e comecei a trocar socos no chão com uma mulher-vampira de olhos cinzentos e cabelos negros como os meus.
— Alina Grigorescu... a vadia que levou à ruína o meu avô, Dumitri! Eu vou te esfolar viva!
Eu não conhecia nenhum dos descendentes de Dumitri pessoalmente, logo, não fazia ideia quem era aquela mulher que me atingia socos no rosto. Esguia como eu, mas dotada de uma força descomunal, a neta de Ardelean possuía garras compridas nas mãos com que tentava me apunhalar o tempo todo no pescoço. A chuva, a lama, o sangue vampiro no chão. Tudo à minha volta dificultava a percepção do meu olfato, mas eu tinha quase certeza que aquelas unhas estavam embebidas em algum tipo de composto químico à base de alho, o que justificava o seu desespero em querer me arranhar com elas.
— Manda um alô para o seu avô no inferno, sua filha da puta!
Eu segurei com muita firmeza os pulsos da mulher e projetei as suas mãos contra o seu próprio pescoço, enterrando boa parte das suas unhas na carne mole. Com um grito gutural interrompido, a vampira começou a arfar, e um gás com cheiro de alho começou a ser expelido de dentro da sua boca.
A afastei com um chute muito bem colocado na caixa torácica e ela começou a se debater no chão, enquanto morria vagarosamente, vítima do próprio veneno.
A derrota era uma possibilidade muito palpável. Quando ousei correr os olhos pelo campo de batalha que a mansão Archambault tinha se tornado, era muito nítido que as forças de Mason Grealish não eram páreo para a superioridade numérica de Thænael. Agora, o clã Ardelean, os seus vampiros subterrâneos e o que restava do Concílio de Sangue era uma coisa só. E aquela coisa não pararia enquanto não acabasse com quem rivalizasse com ela.
Enquanto distribuía socos e chutes pela multidão de inimigos que tentava me trucidar, eu continuava chamando Alex psiquicamente. Porém, não havia resposta.
Eu tinha me afastado da entrada principal da casa em quase cinquenta metros quando me vi cercada por quase duas dezenas de vampiros, todos munidos com armas brancas embebidas em prata.
Além de meus braços e pernas, eu não tinha nenhuma arma comigo, e estava prestes a ser estripada, encurralada nos arbustos do jardim. De súbito, senti algo quente atravessar as minhas costas e varar o meu corpo pela frente.
— Ela é minha. Afastem-se!
A sua voz era inconfundível. De alguma forma que eu não sabia explicar, Thænael havia driblado a multidão que guerreava além da casa de Lucien Archambault e tinha chegado até mim. Uma lança de origem africana como a kpinga de Akanni estava atravessada na altura do meu estômago, e eu só conseguia agonizar de dor, quando ele deu a volta para me encarar.
— Lembra da sala de troféus de Lucien Archambault? Eu encontrei essa lança tuaregue guardada entre as relíquias que ele mantinha lá dentro. Me pareceu bastante afiada... até para a pele resistente de um vampiro!
O nefilim tocou a ponta da lança com a mão sem se ferir. Correu o dedo indicador pelo meu sangue que sujava a sua superfície e o meteu na boca, rindo sadicamente em seguida. Eu mal conseguia me manter em pé. Os vampiros que agora nos assistiam como a uma plateia alvoroçada, ao nosso redor, também riam do meu infortúnio.
— Delicioso! O seu sangue místico fez a esse corpo mortal o que eu jamais imaginei, mesmo tendo estudado por anos as anotações deixadas por Dumitri a respeito da sua querida bisavó, Alanna. No momento em que eu o ingeri em Hîncesti, eu senti a minha mente transcender. Pude provar de um poder que nunca tinha experimentado antes em toda a minha longa e tortuosa vida... foi quase... divino!
Thænael agarrou o meu rosto com as duas mãos. Eu não sabia em quê aquela lâmina que me atravessava o corpo tinha sido embebida, mas eu começava a me sentir dormente. Meus joelhos fraquejavam. Eu estava prestes a desmaiar.
— Tanto poder interior e nenhuma experiência em usá-lo. Pobre irmãzinha! — Ele estava a menos de dez centímetros de mim. Fazia menção de me beijar. Eu só conseguia tremer de ódio... e medo. — Felizmente, você não terá a chance de se tornar apta a usar a energia mística que agora também corre em minhas veias. Diferente de Adela Quinn, que ignorava os cuidados que deveria ter ao ingerir o sangue de uma descendente celta, eu sabia muito bem o que deveria fazer para absorver esse poder. Você me tornou invencível... E eu só posso te dizer obrigado!
Thænael beijou os meus lábios suavemente. No momento seguinte, correu as mãos pelo meu peito até alcançar a abertura causada pela lança tuaregue. Com uma força descomunal, ele arrancou a arma com todo o seu cabo para fora de mim, no que eu dei um grito.
Antes que eu pudesse prever, estava sendo atirada ao chão com violência. As gotas de chuva batiam nas folhagens das plantas e árvores acima da minha cabeça, caindo geladas sobre meu rosto. Quando os dedos de Costel atingiram o buraco feito em meu estômago pela lança, ele agiu no intuito de me rasgar inteira, de baixo para cima.
— Costel mandou dizer que lamenta muito o que estamos prestes a fazer, Alina. Pobre Costel. Assistindo a tudo sem conseguir interferir. Pobrezinho!
A risada maléfica antecipou o momento em que as garras de Thænael começaram a dilacerar a minha pele, me abrindo feito a uma casca de laranja. Eu gritava de olhos fechados enquanto procurava, inutilmente, impedir que ele continuasse.
Era como se meu cérebro estivesse em combustão. Eu tentava me comunicar psiquicamente com o plano etéreo em busca de alguém que pudesse me acudir. Akanni. Samyaza. Rafael. Deus.
Nenhum deles me ouvia... ou sequer se importava.
Quando eu achei que estava acabada, ouvi movimentação no jardim atrás de nós. Passos ágeis e leves se precipitaram em direção a onde eu estava caída. Em seguida, um clarão arroxeado pegou tanto Thænael quanto seus acólitos de surpresa.
— Flammae Orci! Urere infideles! Urere infideles!
Eu senti o calor das chamas roxas queimando a minha pele à medida que Thænael era arremessado para trás por esferas concentradas de energia mística em seu estado bruto. Transmutado momentaneamente em uma criatura meio-homem, meio demônio, o nefilim reagiu ao ataque súbito com um berro gutural que me ensurdeceu.
Prestes a reagir, a criatura retesou os músculos das pernas para saltar sobre mim e o meu salvador, foi quando senti o meu braço ser agarrado pelo homem barbudo de toga ao meu lado, e nós desaparecemos em meio a uma explosão de energia que nos transportou daquele pesadelo sem fim.
Em latim, Flammae Orci! Urere infideles literalmente quer dizer "Chamas de Hades, queimem os infiéis"
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top