Capítulo 47 - Nostalgia em Pleven

MAIS DE TREZENTOS quilômetros separavam Varna de Pleven. O carro em que eu viajava sentada ao lado de Adela era um modelo alemão confortável e extremamente frio. O motorista ficava isolado de nós por um vidro reforçado à prova de som. Era quase impossível ouvir a sua pulsação daquela maneira, e só com muita concentração eu consegui fazê-lo. Ele não era um vampiro e trabalhava para os Quinn por livre e espontânea vontade.

— Você parece tensa, Alina. Tome. Beba um champanhe. É francês. Você vai gostar.

Adela estava incrivelmente à vontade perto de mim. E não era para menos. Provavelmente, a cadela estava me vigiando desde o momento em que pisei na Bulgária, e parecia ter tudo sob o seu mais completo controle desde o começo. Enquanto eu me perguntava se alguém do bando de Grealish havia me traído, eu aceitei a taça com a bebida, depois, me pus a observar as expressões da mulher a interagir comigo.

— Eu imagino que a minha presença em Varna a tenha surpreendido, mas não quero que pense que estou a armar algo contra você. A situação que relatou a Lucien em Bruxelas me deixou realmente preocupada. Se o seu irmão foi mesmo tomado pelo espírito de um nefilim maligno e tem agido por décadas no intuito de trazer seus companheiros para a Terra, toda a comunidade vampira está em risco.

Sorvi um gole do champanhe enquanto ela voltava a enfiar a garrafa no balde de gelo fixado em um suporte. Cruzou as pernas e se acomodou do seu lado, bebendo uma quantidade generosa em sua taça.

— Falou sério quando disse que veio atrás de mim sem o conhecimento de Lucien e Mael?

Ela assentiu antes de dizer:

— Os franceses têm o péssimo hábito de subestimar a inteligência das mulheres, Alina. Embora eles tenham ouvido a sua história com atenção, nenhum dos dois quer dar o braço a torcer de que ela faça sentido. Eles não acreditam que haja uma força superior à deles na face da Terra, capaz de pôr em risco não só o concílio como organização, mas todo o mundo em que vivemos. São presunçosos, por isso, idiotas.

Eu não conseguia detectar os níveis de adrenalina no corpo da irlandesa que, geralmente, me davam a certeza de que alguém estava mentindo. Ela era quase tão fria quanto uma estátua, e duas vezes mais perigosa do que o próprio Lucien Archambault nesse quesito.

— Eu sei que, num passado remoto, você chegou a considerar uma aliança com Dumitri Ardelean para derrubar seu amigo francês do trono, Adela. Se tem tanta aversão a Lucien e despreza tanto o modo como ele comanda o concílio, por que ainda se mantém ao lado dele e de Mael?

Outro gole no champanhe e seus olhos castanhos se perderam brevemente do lado de fora do carro. Àquela altura, viajávamos por uma área que cortava a cidade de Popovo, no distrito de Targovishte, e a estrada que percorríamos era bastante escura.

— No início, era um consenso entre nós três que devíamos florescer as nossas linhagens pelo bem do Concílio de Sangue. Pela nossa incapacidade de procriação, uma das muitas limitações que nos são impostas em troca de uma vida eterna, as fêmeas vampiras não podem gerar vida em seus ventres. Por conta disso, em 1917, eu visitei um orfanato em Nice, na França. Naquela época, Lucien já havia encomendado seus próprios herdeiros com a condessa Cassandra, e Mael tinha transformado dezenas de suas meretrizes em vampiras. Eu era a única que ainda não pensava em aumentar o clã Quinn. Foi quando adotei três crianças francesas. Três órfãos. Três irmãos.

Adela não demonstrava emoção com sua voz álgida, mas quando continuou o seu relato, notei um tom quase imperceptível de comoção em seu timbre.

— Eles já tinham sido batizados à época e eu só lhes dei o meu sobrenome, o sobrenome da minha família. Os levei para morar comigo em Dublin, e lá, os eduquei da melhor maneira possível. Ao longo das décadas, como uma vampira, eu havia triplicado a herança deixada a mim por meu pai, por isso, dinheiro nunca foi um problema na vida de meus filhos. Como não precisava de mais riquezas, eu desejava cada dia mais outro tipo de poder, algo do qual os órfãos pudessem se orgulhar de mim no futuro.

Ela continuou observando a paisagem escura pela janela.

— No começo de tudo, eu admirava Lucien. Ele não era apenas um dos homens mais sedutores com quem eu já havia transado. Ele era viril, forte, mas acima de tudo, era muito astuto. Convenceu a mim e a Mael da sua ideia de criar um conselho de vampiros muito rapidamente. Passava horas explicando que viver em meio a uma comunidade unificada e coesa nos daria o poder necessário que jamais nos seria tomado. Que quanto mais aliados abarcássemos, menos inimigos teríamos contra os nossos ideais. Menos ameaças se levantariam contra o nosso reino. Quando tudo começou, foi aquela sua convicção que me convenceu a ficar ao seu lado na construção do nosso concílio.

— E o que te fez mudar de ideia? — indaguei, interessada em sua história.

— Por ter sido amante de ambos no auge da nossa juventude, Lucien e Mael não me tratavam com o devido respeito que eu merecia. Eles diziam me amar e se importar comigo. Em geral, não me tratavam como uma mera prostituta, daquelas que eles tinham aos montes aos seus pés, mas era evidente que os dois não me consideravam tão importante no concílio quanto a eles próprios. Eu estava lá com eles no começo de tudo, mas nunca ouviam as minhas ideias, nem sequer consideravam as minhas sugestões para que a nossa organização crescesse e prosperasse como a de nossos rivais, por exemplo. Eu era escanteada sempre que podia. Eles eram amigos inseparáveis. Se respeitavam mais que dois irmãos de sangue... E eu era só a irlandesa bêbada que eles tinham achado junto à sarjeta de um bar, numa noite qualquer na Grã-Bretanha.

O timbre de voz da ruiva foi ficando cada vez mais emotivo, à medida que ela continuava sua história.

— Com o passar do tempo, eu fui me tornando mais participativa nas decisões tomadas pela organização. Galguei uma posição de destaque no concílio na base da força... Porém, ainda não era o bastante. Eu vivia próximo a ele dia após dia. Conhecia cada uma das suas fraquezas. Sabia o quanto ele era estúpido em vários aspectos. O quanto a sua liderança era falha. Eu passei a almejar a posição de Lucien à frente de todas as espécies vampiras e licantropas. Eu queria ser a rainha!

Terminei o meu champanhe, mas continuei a segurar a taça, atenta ao relato da minha acompanhante de cabelos flamejantes.

— Como membro fundadora do Concílio de Sangue, eu já tinha poder suficiente em mãos e podia continuar assim por toda a eternidade. Foi a minha ganância que fez com que Lucien me punisse. Em um certo dia, eu questionei uma de suas ordens bem diante do conselho de clãs, em uma reunião a portas fechadas em Montbéliard, e aquilo o enfureceu. Na hora, ele não reagiu. Viu os líderes das outras casas vampiras vociferando contra mim à sua volta, mas não fez nada. Ficou impassível. Em vez de me advertir na frente de todos, se dirigiu a mim em silêncio e, num tom extremamente calmo, mandou que eu esperasse pelas consequências de minha afronta.

Adela se voltou em minha direção conforme pousava a sua taça vazia ao lado do balde de gelo, no suporte.

— Três dias depois, Lucien mandou que seus capangas trouxessem meus filhos da Irlanda sem o meu consentimento. Reuniu novamente os líderes dos clãs à nossa volta e, sem que eu pudesse fazer nada, presa com os braços para trás, ele ateou fogo ao corpo do mais velho, Claude. — um brilho diferente emanou dos olhos da mulher. Ela estava quase chorando ao meu lado. — Enquanto eu gritava, eu vi meu filho mais velho ser reduzido a cinzas diante de mim. Arnaud e Maeve também gritavam, apavorados. Por um momento, eu realmente pensei que Lucien também os sacrificaria por conta da minha empáfia em desafiá-lo. Quando ele me soltou, eu os abracei com força. Prometi aos dois que eu jamais deixaria que algo parecido acontecesse a eles, e tenho cumprido essa promessa desde então.

Era mesmo um relato terrível, e eu como mãe conseguia compreender os motivos que levavam Adela a continuar obedecendo Lucien, embora o odiasse. Ela queria proteger a sua prole e, por ela, era capaz de tudo.

— Foi por isso que você transformou Arnaud e Maeve em vampiros? Para que eles pudessem se proteger de Lucien depois do que aconteceu a Claude?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Mas, mesmo depois do castigo de Lucien, você não desistiu de rivalizar com ele. Está aqui comigo nesse momento, conspirando às suas costas. Maquinando contra ele.

Silêncio. Ela não respondeu nada num primeiro momento.

— Onde eu me encaixo nesse seu plano de vingança contra Archambault, Adela? Por que acha que eu vou ajudá-la a conspirar contra alguém tão poderoso quanto o seu antigo amante?

Um riso sarcástico, e a resposta:

— Não estou preocupada com Archambault nesse momento, Alina. Se o seu irmão vencer a guerra que está por vir, não vai importar muito quem estará com o rabo acomodado no trono dos vampiros no momento em que a sua cabeça rolar de cima do pescoço. Eu quero encontrar uma forma de destruir esse nefilim antes que ele nos destrua. Eu preciso proteger a minha família, e sei que você pode me ajudar com isso.

A cidade de Pleven era conhecida por sua importância histórica, especialmente, relacionada à Guerra Russo-Turca de 1877-1878, que desempenhou um papel fundamental na libertação da Bulgária do domínio otomano.

Sua arquitetura refletia a rica herança histórica, com ruas pavimentadas, prédios baixos e algumas construções de estilo neoclássico e renascentista que podiam ser vistas ao redor da cidade. A Praça Central, conhecida como Pleven Pantheon, era um destaque, com seu monumento imponente dedicado aos soldados caídos na guerra.

A cidade era relativamente mais tranquila que os grandes centros europeus e, mesmo àquela hora da noite, ainda era possível vislumbrar as belas paisagens de campos agrícolas e colinas que cercavam a sua região.

Quando o Mercedes de Adela estacionou próximo ao castelo, eu fui atingida por uma atmosfera nostálgica que me remeteu imediatamente aos diários de Dumitri, bem como suas descrições detalhadas do que ele enxergava sempre que visitava o lugar para as reuniões do concílio. Eu nunca havia estado ali, de fato, mas era como se conhecesse o lugar como a palma da minha mão.

Foi aqui que a mamãe nasceu e viveu...

O furgão onde os lobisomens haviam viajado até ali estacionou a uma quadra de distância e, enquanto Arnaud e Maeve comandavam a recepção do castelo aos rivais, a própria Adela se antecipou, me convidando a entrar pela porta da frente.

— Por muito tempo, esse castelo foi a sede do Concílio de Sangue, mas acredito que você já tenha essa informação.

Não respondi a ruiva. A acompanhei pelo piso do átrio e rumamos em direção a uma escadaria que nos levaria aos andares superiores. Ela se equilibrava elegantemente em seu salto quinze. Tinha panturrilhas torneadas e um par roliço de coxas que se destacava mesmo por baixo do tecido do seu vestido.

Depois de algum tempo, ainda era possível ouvir as vozes dos vampiros de Adela e dos lobisomens de Mason Grealish na parte de baixo do castelo. Eles pareciam confraternizar de algum modo, e passado o clima nostálgico que me arrebatara quando adentrei o lugar, comecei a me preocupar com a minha própria segurança. Quisesse admitir ou não, eu estava em território inimigo, e não tinha certeza se poderia contar com os lobos em caso de um confronto físico.

Pelo pacto que havia entre eles, era bem capaz que Adela os botasse para me despedaçar enquanto ela assistiria e aplaudiria o espetáculo.

Após vários minutos de intensos exercícios escada acima, a ruiva irlandesa me conduziu até um salão onde uma mesa de carvalho nos esperava com iguarias diversas encimando o tampo. Além de frutas vermelhas, havia uma travessa com um suculento javali assado, potes de sobremesa de vários tipos e até mesmo uma porção de papanasi. Era como se ela já esperasse pela minha visita, e tudo aquilo não podia ser apenas coincidência.

— Enquanto saíamos de Varna, mandei que o meu motorista ligasse para os empregados e ordenasse que eles preparassem o jantar aqui em Pleven em sua homenagem. Foram três horas de viagem. Você deve estar faminta!

Não respondi. A ruiva apanhou uma garrafa de vinho sobre a mesa e o serviu em duas taças. Indicou uma em minha direção, conforme se acomodava na cadeira à direita.

— Temos muita coisa para discutir, Alina. Não quero que se sinta desconfortável. Aprendi com Dumitri que os de sua espécie, os morois, são adeptos de práticas alimentares similares a dos lobos... Por favor, coma algo enquanto conversamos.

Ela correu a mão esquerda por sobre a comida à mesa. Eu me limitei a apanhar a taça de vinho e a beliscar um pouco do papanasi conforme me sentava de frente para ela. Não era como os feitos na Romênia, mas estava a contento.

— Como sabia que eu estaria em Varna, Adela? Me parece que você já tinha tudo premeditado. Os soldados, os veículos... Até esse jantar. Você sabia que eu vinha. Como?

Um sorriso carregado de malícia antecipou a resposta:

— Eu soube da sua viagem a Varna antes que você e os lobos pusessem seus pés na Bulgária. Tenho um informante nas fileiras de Mason Grealish. Foi ele quem me antecipou seus movimentos.

Quem pode ser o traidor? Jack? Owen? Bethany?

Meus pensamentos estavam em polvorosa. Tomei um gole do vinho para tentar desanuviar as ideias.

— Como pretende me ajudar a chegar até Costel? — indaguei, a observando de frente. — Tenho perseguido pistas de seu paradeiro há muito tempo, mas desde o nosso último encontro em Hîncesti, o rastro simplesmente esfriou.

Seus olhos agora estavam fixados nos meus.

— Não importa. De uma forma ou de outra, no momento certo, eu sei que o seu irmão virá até mim. Atraído como uma mariposa pela lâmpada.

Eu não tinha entendido ao que ela estava se referindo, mas no momento seguinte, os meus sentidos também se tornaram confusos, além dos meus pensamentos. Meu faro aguçado tinha parado de funcionar. Eu mal conseguia ouvir as palavras que saíam da boca da vampira. O vinho em minha língua agora era insípido, e até meu tato me traiu quando a taça escapou vagarosamente de meus dedos para se espatifar sobre a mesa.

— E, quando estivermos frente a frente, eu serei bem mais do que ele é capaz de enfrentar. Possuído ou não por um ser demoníaco. Até lá, eu já terei me banhado no sangue místico de sua doce irmãzinha, e eu já serei uma rainha do poder!

A risada de Adela ecoou em meus ouvidos, mas eu já não era mais capaz de controlar meu corpo. Eu estava estática em meu assento. A voz não saía da minha garganta.

Em um último movimento antes que meus olhos também escurecessem, a irlandesa ergueu a taça de vinho em que ela nem havia tocado para sacudir o líquido vermelho em seu interior.

Embora eu não tivesse sentido o cheiro da poção em minha bebida, eu tinha sido envenenada, e estava totalmente à mercê de Quinn e das suas maquinações.

Como eu posso ter sido tão estúpida?


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