Capítulo 43 - O baile

EU SABIA QUE TINHA poucas chances de pegá-los desprevenidos após a balbúrdia criada por Alex na parte frontal do prédio, por isso, precisei atacar rápida e mortalmente os quatro soldados que protegiam a entrada traseira da casa de eventos.

Me valendo do gume de prata da Presa-de-Leão, a espada tuaregue que eu havia pegado emprestada de Akanni, eu me livrei de todos os meus rivais antes que eles pudessem se transformar em lobisomens. Não me orgulhava de atacá-los tão covardemente pela retaguarda, todavia, a minha entrada de penetra no baile de máscaras de Archambault dependia de uma ação mais furtiva. Eu não podia permitir que seus cães de guarda avisassem sobre a minha chegada.

O primeiro piso do prédio estava deserto àquele horário, mas armazenava uma quantidade grande de engradados e caixas das mais caras e refinadas bebidas da Bélgica e França em seu interior. Enquanto subia as escadas, topei com um garçom desavisado que descia para apanhar mais garrafas, e fui obrigada a nocauteá-lo.

Perto da porta com acesso ao segundo andar, a música orquestrada já era bem mais audível, e comecei a apurar os meus sentidos para identificar Lucien em meio à multidão de vampiros que se espalhava pelo salão. Havia bem mais de uma centena deles e, mesmo concentrada em detectar o cheiro específico de sálvia que o esnobe conde havia deixado gravado em minha memória olfativa desde o nosso último encontro, a mim foi extremamente difícil encontrá-lo antes de invadir o lugar.

Eu não queria parecer agressiva e me indispor imediatamente com Archambault, por isso, larguei a espada de Akanni num canto da entrada do segundo piso, oculta por uma parede lateral que dava para a escadaria. Sabia que não estava vestida adequadamente para a ocasião, mas atravessei o salão a ajeitar o meu casaco italiano, começando a encarar os olhares atônitos dos demais convidados da festa.

Ouvia todo tipo de idioma e sotaque a meu redor, o que me levava a crer que o Concílio de Sangue era mesmo um clube de vampiros bastante globalizado, mantendo representantes de uma costa à outra da Europa, quiçá, até mesmo outros lugares do mundo.

O burburinho causado pela minha chegada logo alcançou Lucien, que dançava alegremente com a condessa Cassandra quando percebeu o que estava acontecendo. Após ler as descrições de Dumitri Ardelean de como eram os bailes do concílio no século passado, dava para perceber que todos eles seguiam um certo padrão: mulheres usando vestidos longos sem muita variação de cor; homens trajando fraques e ternos caros; decoração luminosa para compensar a escuridão da noite do lado de fora e muitas mesas de bebida estrategicamente posicionadas para servir seus sedentos frequentadores.

— Conde Archambault — eu fiz uma reverência leve à sua frente, sinalizando que não estava ali em busca de conflito. Ele me encarou de maneira aparvalhada, e a incredulidade estava estampada no rosto pálido e simétrico de Cassandra Archambault de Montbéliard.

— Senhorita Grigorescu. Estou surpreso em vê-la aqui esta noite.

Os olhos do conde procuraram a porta de entrada, tentando identificar algum tipo de tumulto ou aglomeração de seus guardas. Porém, avistou apenas as feições estáticas dos vampiros que nos cercavam, e que pareciam esperar dele algum tipo de ação mais enérgica quanto à minha invasão.

— Temo que tenhamos um assunto delicado a tratar.

A orquestra continuou tocando uma valsa de Tchaikovsky, alheia ao que estava acontecendo no meio do salão. Como no relato de Dumitri, os músicos humanos jaziam escondidos por uma cortina conforme os vampiros festejavam, e não pararam seus instrumentos à medida que, de maneira cortês, Archambault me tomou para uma dança, deixando a esposa aos cuidados de Mael D'Aramitz, que surgiu imediatamente a fim de apoiá-lo.

Eu não era muito versada em danças clássicas ou mesmo possuía desenvoltura para acompanhar um cavalheiro refinado como Archambault, mas coloquei à prova meus conhecimentos de bailarina amadora à medida que ele segurava a minha cintura com uma das mãos para me conduzir com a outra.

Giramos delicadamente em direção ao centro do elegante salão conforme eu o encarava, a poucos centímetros de seu rosto alabastrino. O seu perfume de sálvia era ainda mais intenso daquela distância e, como antes, seus pensamentos se mostravam um mistério para a minha telepatia. Eu não fazia a menor ideia do que ele pensava da minha intrusão a seu precioso baile e, no momento seguinte, me questionou:

— Acredito que não tenha se dado ao trabalho de viajar até Bruxelas com algum plano de vingança em mente, senhorita Grigorescu — desviou o olhar por um instante para que eu acompanhasse o movimento de sua íris a nosso redor. Naquele momento, o som dos violinos do conjunto de cordas anunciava a introdução de "Adagio for Strings In Organ In G Minor", de Giazotto. — Como pode perceber, seria insano de sua parte qualquer tentativa de iniciar uma contenda aqui dentro.

Ele me conduziu num giro mais intenso para acompanharmos a cadência da música, e eu me apoiei em seu ombro. Por baixo do fraque escuro que usava, Lucien era um sujeito robusto, apesar da estatura mediana, e era inegavelmente atraente... para um canalha.

— Não estou em busca de vingança pelo que fez a mim e à minha filha em sua mansão francesa, Lucien... Embora me desse grande prazer decapitá-lo aqui mesmo — Estreitei meus olhos simultaneamente ao momento em que seus dedos se firmaram em minha cintura, ganhando espaço até a curva onde começava a minha bunda. — Estou aqui para avisá-lo que você e o seu concílio estão sob ameaça iminente. Vocês vão precisar de ajuda se quiserem sair ilesos do que está por vir.

Archambault observou novamente o entorno do salão, e se demonstrou preocupado com o meu alerta.

— Se está tentando me ameaçar...

— Eu não sou a ameaça — o interrompi bruscamente. — Forças muito maiores do que eu e você estão agora se organizando para tomar conta do nosso plano de existência. O seu clube de vampiros está na mira de quem comanda essas forças.

Havia agora incredulidade em seu rosto frio. A orquestra continuava cadenciando o ritmo da valsa, e os demais casais deslizavam a certa distância de nós dois, dançando de maneira mecânica. Pareciam preocupados com o que poderia acontecer após a nossa conversa amistosa.

— Uma força maior que o Concílio de Sangue? — ele riu de maneira desdenhosa.

O fitei com fervor.

— O homem que um dia foi meu meio-irmão Costel Grigorescu foi tomado por uma criatura fugitiva do inferno, Lucien. Esse nefilim, ou "Filho do Inferno", como preferir chamar, possui planos de abrir uma passagem entre as realidades para que uma legião de outros como ele invada o nosso mundo. Tudo leva a crer que Costel, ou a criatura chamada Thænael que o controla, quer liquidar os líderes do concílio para tomar posse dos seus exércitos de vampiros. Ele pretende criar o seu próprio exército de nefilins-vampiros e, com isso, vai comandar uma guerra contra o Céu.

Lucien desfez o sorriso debochado e viu em meus olhos que eu estava sendo sincera com ele. Executou mais alguns movimentos de dança ao som da valsa que tocava, depois, parou, ainda segurando a minha cintura e a minha mão.

— Acha essa ameaça grande o suficiente para você ou ainda pensa que pode vencer com facilidade uma guerra contra nefilins, Lucien?

Nenhuma resposta. Eu o estava fitando bem de perto em meio ao salão, e outros casais também começaram a diminuir o ritmo da dança. Mael se aproximava novamente de nós após deixar Cassandra na companhia de Adela Quinn, mais ao fundo da casa de eventos. A ruiva irlandesa nos observava de olhos atentos, e bebia uma taça de vinho, como que à vontade com toda a situação.

— Está me dizendo que um único vampiro tomado por um demônio... Ou nefilim... Pretende iniciar uma guerra contra mim e os meus clãs? — Não lhe respondi. Detestava me repetir em frases óbvias. — Percebe o quanto isso soa ridículo, senhorita Grigorescu? Um único homem contra mil de nós...

Mael tinha emparelhado com o amigo. Parecia ter ouvido a nossa conversa de onde estava, e me encarou com as sobrancelhas curvadas sobre os olhos escuros. Do "Triunvirato" principal do concílio, o francês de cabelos crespos era o mais irritadiço, e aquele que sempre optava pelo confronto. Não era à toa que Dumitri o detestava, e fazia questão de deixar claro o quanto em seus diários.

— Enquanto garantia a segurança da condessa, mandei alguns de meus homens sondarem os arredores do prédio, Lucien. Os guardas lobisomens foram mortos por essa vadia — e ele me observou com fúria. Archambault me soltou a cintura, mas pressionou com firmeza meu pulso, como que disposto a me manter presa. — E, pela forma como eles foram abatidos, há mais de um invasor na propriedade.

Me esforcei para me livrar de Archambault. Naquele momento, os dois assumiram posição defensiva à minha frente, mas eu continuei tentando chamá-los à razão.

— Não importa a forma que eu usei para penetrar o seu baile. Você não ouviu nada do que eu falei? Vocês três estão correndo risco. A única forma de nós todos nos livrarmos do que está por vir é formarmos uma aliança... mesmo que isso desagrade aos dois lados.

Mael soltou uma risada de escárnio. Tomou a frente da negociação e agarrou meu pulso, tentando me forçar a se afastar de Lucien. O líder dos vampiros não estava totalmente convencido de que o meu alerta não passava do desvario de uma louca, porém, não fez nada para deter D'Aramitz de me enxotar do prédio. O francês arrogante começou a me conduzir para fora, mas antes que déssemos mais de cinco passos, me vi cercada pelos demais vampiros que já entendiam quem eu era e o que estava acontecendo naquele baile.

— É a puta romena que caça vampiros! — disse uma mulher de sotaque alemão que usava um coque démodé na cabeça, e que trajava um vestido longo de veludo na cor azul-Royal.

— Sim, é ela. Devíamos arrancar-lhe as presas como castigo — falou um outro sujeito pálido de cavanhaque espesso no queixo.

— Uma empalação é o que essa vagabunda merece!

— Queimem a traidora com prata!

— Matem-na!

A turba de vampiros estava ensandecida e, por um momento, foi como se Mael e Lucien tivessem perdido o controle dos líderes dos demais clãs, e de seus subordinados.

Eu comecei a ser puxada em direções diversas ao mesmo tempo, e senti o material do meu casaco se rasgar pela ação das agressões. De repente, meu maior temor quanto àquela ideia idiota de invadir o covil dos vampiros estava se concretizando, e me vi obrigada a pôr em prática o plano de salvaguarda.

"Alex. É melhor que esteja posicionada com o maldito padre... ou eu vou ser feita em pedaços aqui embaixo!".

A minha comunicação mental foi precisa. No momento seguinte, a minha filha conseguiu acessar a central do sistema anti-incêndio, e acionou todos os sprinklers de emergência com que o prédio era equipado. Um dia antes, havíamos avaliado a estrutura da construção, e a ideia de benzer a água do reservatório que abastecia a propriedade surgiu subitamente, conforme pensávamos numa maneira emergencial de escapar das garras dos vampiros, caso eles se tornassem hostis.

Sequestrar o padre da paróquia em Etterbeek para que ele executasse o serviço tinha sido a parte mais fácil. Difícil mesmo foi convencer o pároco de que éramos do bem, e que as nossas ações, embora inconsequentes, serviriam para salvar o seu traseiro velho e o de todos os seus fiéis.

As torneiras presas em pontos estratégicos do teto para o caso de incêndio foram acionadas automaticamente no momento em que uma chuva de água benta desabou sobre quem estava no salão. Pegos desprevenidos, os vampiros começaram a arfar e a queimar, à medida que o líquido que me era inofensivo tocava a sua pele.

— É água benta caindo dos sprinklers! FUJAM!

Guinchando e sibilando, as criaturas das trevas que antes tentavam me fazer em pedaços começaram a correr em direção à saída. Para o seu azar, todo o sistema anti-fogo dos três andares do prédio tinha sido acionado ao mesmo tempo e, a menos que eles se atirassem pela janela — o que, de fato, a maioria começou a fazer — não havia para onde escapar.

Lucien, Mael, Adela e Cassandra cobriram as cabeças com as toalhas que encimavam as mesas de bebida, em seguida, se precipitaram em direção à saída da orquestra. O maestro e os seus comandados não demoraram a perceber o que estava acontecendo. Fugiram aterrorizados vendo os, até então, pacatos convidados de uma festa, derretendo pelo efeito da água benta que esguichava do teto.

"Purifica-os com a água sagrada, e eles serão purificados; lava-os, e serão mais puros do que a neve."

À medida que lembrava daquele salmo bíblico, eu me retirei do prédio, correndo encharcada em direção à saída do piso. Recuperei a Presa-de-Leão deixada jogada no canto da porta, depois desci as escadas. Estava frustrada com a plena convicção de que a minha missão de nada havia valido em busca de uma aliança forçada com o Concílio de Sangue, mas muito aliviada que tanto eu quanto Alex havíamos escapado ilesas de um confronto que tinha tudo para terminar com as nossas cabeças espetadas em lanças.

Pelo menos, os idiotas estão avisados que Thænael está chegando para destruí-los. Se eles não acreditam, o problema é todo deles, pensei, em disparada descendente pelas escadas



Salmos, Capítulo 51, versículo 7 da Bíblia Cristã

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