Capítulo 42 - Missão Bruxelas
TRÊS DIAS APÓS O encontro com Samyaza, eu ainda não era capaz de compreender totalmente o que havia me acontecido depois de ser drenada por Thænael e de quase ser queimada viva pela luz do sol em Hîncesti. Por isso, decidi viajar para a Europa em busca de respostas no cemitério onde tudo havia acontecido.
Alex e eu desembarcamos no aeroporto da Moldávia preocupadas que estivéssemos sendo vigiadas por agentes de Costel. Tomamos um táxi que nos cobrou o dobro do valor de tarifa para nos deixar em frente ao cemitério àquela hora da noite, e começamos a investigar as pistas que ainda restavam no local.
O túmulo violado por Thænael e seus vampiros há quase duas semanas ainda jazia aberto. Os ossos no interior da cova permaneciam revirados e restava muito pouco de quem quer que estivesse enterrado ali. O jazigo era um dos mais simplórios do cemitério, e não estava identificado por nenhum tipo de placa ou marcação.
— Podemos verificar nos registros do cemitério. É possível que eles guardem essas informações no escritório.
Nós duas arrombamos a porta da pequena sala onde os registros de sepulturas e túmulos eram guardados desde o começo do século passado. Uma pilha de cadernos escritos à mão jazia amontoada a uma altura de quase um metro e oitenta no interior do armário velho que encontramos. Dividimos as pilhas em duas a fim de analisar mais rapidamente os registros, e demorou mais de três horas até que descobríssemos a quem pertencia a cova revirada por Costel e Yuliya.
— Ai, merda!
A exclamação de Alex me botou em alerta. Andei até onde ela estava sentada folheando incansavelmente páginas e mais páginas de cadernos empoeirados. Então, ela me apontou um nome que indicava a quem pertencia o lote de terreno violado no cemitério.
— Dubhghaill. Alanna Dubhghaill. Eles estavam revirando os ossos da sua bisavó, mãe!
Após aquela constatação tenebrosa — porém, não improvável, visto que estávamos na mesma cidade em que Alanna havia falecido —, Alex e eu voltamos ao cemitério para uma última analisada no túmulo da bruxa de quem, diziam, que eu havia herdado seus dons místicos. Seus ossos estavam quase inteiramente reduzidos a pó e não havia artefatos ou quaisquer outros itens no interior de sua cova que justificasse a sua violação.
— Seja lá o que tenham vindo buscar, não encontraram — disse Alex.
— Ou encontraram e removeram do túmulo antes que chegássemos ao local — deduzi, desconfiada.
Se isso é verdade, pensei comigo mesma, o que de tão valioso Alanna poderia guardar consigo em seu descanso final que fosse do interesse de Thænael?
Nós duas ainda andamos um pouco mais pelo labirinto de sepulcros onde havíamos lutado por nossas vidas há pouco tempo. As lápides e esculturas destruídas continuavam espalhadas pelo chão, e ninguém parecia sequer notado que o local estava depredado. Paramos diante da marca de sangue na parede de mármore onde Yuliya dera seu último suspiro, e uma questão me veio à mente:
— Por que Thænael não aproveitou que você estava desacordada para levá-la com ele enquanto fugia, Alex?
A garota observava a marca escura na parede clara sem nenhum sinal de remorso no rosto.
— Apesar de todo o seu poder acumulado, o sol também deve tê-lo derretido o couro. Talvez, ele não estivesse em condições de me carregar... Ou simplesmente não tinha mais interesse em mim.
Alex estava séria quando me encarou, antes de prosseguir sua argumentação.
— Ele drenou quase todo o seu sangue, mãe. Chegou ao ápice das suas capacidades. Conquistou o que sempre quis desde que a atraiu para o nosso castelo na Transilvânia e tentou me jogar contra você. Agora ele tem o seu DNA místico correndo nas veias. Não precisa mais de mim para fortalecer seu exército.
Ainda era difícil aceitar toda aquela história de herança mágica, mas desde que acordara em Edmonton, depois de mais de uma semana em uma espécie de coma, nem mesmo eu conseguia explicar de maneira racional o que havia me mantido viva.
Era impensável achar que Akanni tinha conseguido me curar depois dos danos críticos causados em sua forma física por Thænael. A minha ressurreição só podia ser explicada pela magia que corria em mim, o que me fazia lembrar em repetição a frase de Samyaza, pouco antes de ela evaporar em meio a um clarão cegante:
"Há um poder dentro de si que ainda não foi despertado, mas que anseia por esse momento. Use-o para derrotar Thænael".
♦
Dois meses após a visita a Hîncesti, Alex e eu voltamos a nosso refúgio no Canadá apenas para nos organizar. Corríamos desesperadamente atrás de qualquer pista mínima que pudesse nos indicar o paradeiro de Thænael, ou sobre o que ele estava buscando na Moldávia, mas era como se estivéssemos atoladas em dúvidas e incertezas.
Para piorar, nós duas havíamos sido abandonadas pelas hostes celestes, e nem Akanni e nem Samyaza voltaram a dar qualquer sinal de vida após os fatídicos acontecimentos anteriores.
O mundo estava prestes a ser consumido por uma legião de nefilins-demoníacos, e os anjos não pareciam preocupados em nos auxiliar.
Naquele mesmo mês, os meus contatos no mundo dos negócios rastrearam uma das empresas ligadas à família Archambault na França, e descobriu que o seu fundador, Lucien, estava organizando um baile de gala a ser realizado em um salão de eventos bastante conceituado na região de Bruxelas, na Bélgica.
Voltei a minha atenção aos diários de Dumitri no trecho em que ele havia tentado seduzir a minha mãe, em sua juventude, a fazendo sonhar com uma vida de luxo e riqueza, e me lembrei que Lucien Archambault promovia um baile de máscaras anual para enaltecer o sucesso da sua presidência frente ao Concílio de Sangue. Comentei a respeito com Alex e nós duas passamos a arquitetar uma aproximação ao conde durante o baile daquele ano.
— Ele jamais vai esperar uma abordagem hostil em meio a um evento desse porte. Com certeza, todos os crápulas pomposos que o bajulam estarão presentes no baile, e Lucien deve pensar que ninguém seria louco o suficiente para se aproximar dele em seu próprio território.
— Nós seríamos... — concluí, causando um riso quase satisfatório em Alex.
A mim estava mais do que claro que Thænael não estava longe de pôr a mão no item que lhe permitiria abrir os portões do inferno, e que Lucien Archambault e o seu concílio agora corriam riscos. Embora também o quisesse morto por conta da sua armadilha montada a mim e à minha filha em Montbéliard, o perigo maior representado por Thænael me impelia a avisar o cretino de que ele estava com a cabeça a prêmio.
Eu sabia que estaria botando o meu pescoço em risco ao encarar Lucien em seu ambiente, porém, era necessário que eu tentasse uma aliança com o rei dos chupa-sangues antes que ele fosse morto, e o mal representado por Thænael triunfasse não só sobre os vampiros, mas também sobre toda a raça humana.
A fim de evitar surpresas e para que nos preparássemos antes do fatídico encontro com Lucien, Alex e eu desembarcamos na Bélgica dois dias antes do baile, e nos hospedamos em um hotel discreto, usando identidades falsas conseguidas pelo departamento pessoal da Rux-Oil.
Na noite anterior ao evento, nós duas analisamos o prédio de três andares alugado por Lucien para a festa, e identificamos todas as possibilidades de entrada e saída, bem como os pontos estratégicos onde ele, provavelmente, deixaria seus guardas de prontidão.
Ao pôr-do-sol do dia em questão, mandei que Alex visitasse uma igreja localizada a quatro quilômetros de Bruxelas, em uma comuna chamada Etterbeek, para falar com o padre do lugar. No decorrer desse evento, eu me posicionei em uma loja de ferragens fechada em frente à casa de eventos para acompanhar mais de perto a chegada dos convidados.
Sem suspeitar da verdadeira natureza das pessoas elegantes que desembarcavam de seus Rolls-Royce e Mercedes Benz em frente ao prédio, os funcionários do local trabalhavam freneticamente para estacionar os veículos de luxo, bem como recepcionar seus proprietários.
A noite já havia caído completamente sobre a cidade e, conforme a entrada se avolumava de vampiros para o baile, mais a ansiedade pela execução do plano de aproximação me tomava.
E se Lucien resolver acabar comigo diante de seus vassalos, antes que eu tenha a chance de conversar com ele?
Aquele era meu pensamento mais recorrente.
Uma hora e meia após o início do baile no segundo andar do prédio, o nosso contato mental foi estabelecido, como havíamos praticado dias antes. A garota tinha acabado de estacionar o carro alugado com que havia se deslocado até Etterbeek na esquina vizinha, e comentou que estava pronta para abater os guardas em torno do prédio.
"Já os identificou, Alex? Quantos eles são?"
"Quatro na parte de trás do prédio e mais dois no telhado", respondeu ela, com a mente tranquila. "E pelo fedor... são todos lobisomens!"
Preparei o seu espírito antes de lhe revelar o que eu havia visto a menos de trinta minutos.
"Tem mais quatro deles em frente à entrada principal do prédio, Alex... Um deles é o Reece..."
Não a podia ver de onde eu estava escondida, mas foi como se a garota estivesse ao meu lado, tal foi o grau de empolgação que a tomou repentinamente. Seus pensamentos se tornaram um turbilhão de emoções conflitantes, e temi, pela primeira vez naquele dia, que ela não estivesse concentrada o suficiente para a execução de nosso plano de abordagem a Lucien Archambault. Os dois não se encontravam pessoalmente desde os acontecimentos em Montbéliard, há mais de cinco anos, mas era nítido o interesse romântico que a minha filha ainda nutria pelo primogênito de Mason Grealish.
"Tem certeza que pode fazer isso, Alex?", perguntei através da nossa conexão psíquica. "Já faz muito tempo desde que o vimos a última vez. Não sabemos o quão influenciado ele foi por Archambault depois de nos ajudar a fugir de Montbéliard... Você não pode titubear caso ele se volte contra você..."
"Não vou titubear, dona Alina. Confie em mim."
Conforme eu me deslocava para os fundos da casa de eventos de onde uma música orquestrada já soava há bem mais de uma hora, eu comecei a enxergar as ações de Alexandra através de seus olhos, quase como em primeira pessoa.
Ela desceu do carro alugado se mantendo às sombras da marquise do imóvel para percorrer os quase vinte metros da calçada até os guardas, antes que eles detectassem a sua aproximação. Tinha sido muito bem treinada pelo próprio Costel ao longo de seu crescimento na Romênia, e era exímia em furtividade. Quase tanto quanto eu.
— Ei, você! O que pensa que está...?
Alex sacou a kpinga usada por Akanni de um bolso interno do casaco. Arremessou a arma africana de um ângulo que permitisse que uma de suas pontas de prata se cravasse com perfeição na testa do primeiro guarda, o matando imediatamente. O sujeito nem chegou a concluir a sua frase de alerta.
Alarmados pelo surgimento intempestivo da garota pequena pela penumbra da marquise, os outros dois seguranças também avançaram sobre ela. Seguiam ordens claras para abater qualquer ameaça ao bom desenvolvimento da festa vampira, e não quiseram pegar leve com Alex. De maneira habilidosa, ela recuperou a kpinga suja de sangue e a atirou contra o peito do primeiro que tentou segurá-la. Tal qual o colega, o sujeito caiu morto no chão, atingido pela prata que revestia as pontas da arma.
Ágil e incrivelmente rápida, minha filha usou de seu tamanho para se esquivar com facilidade dos ataques dirigidos a ela pelo terceiro grandalhão que a abordou. Lhe atingiu com força pontos sensíveis da anatomia para impedi-lo de assumir a sua forma animalesca, porém, não usou a precisão necessária em seus golpes.
Em uma forma híbrida, nem totalmente lobo e nem totalmente homem, o guarda empregou maior resistência a Alex do que os colegas mortos no chão. A pegou pelo pescoço com uma força desproporcional e a pressionou contra a parede para estrangulá-la.
Eu conseguia sentir cada uma das emoções da garota mesmo à distância, e tive que me deter antes de alcançar a entrada dos fundos, preocupada que ela não fosse conseguir se desvencilhar dos dedos grandes e das garras afiadas de seu adversário peludo.
"Você precisa se livrar dele, Alex. ANDA!"
Incentivada por meu comando mental, Alex gemeu ao mesmo tempo que forçava os músculos para abrir os dedos do lobisomem em torno de seu pescoço e torcer seu pulso. Acertou uma joelhada no flanco direito do monstro para lhe trincar as costelas, depois, lhe deslocou o ombro fazendo uso do seu aprimoramento vampiro.
O ganido denunciou a dor sentida pela criatura, porém, Alex não se intimidou em continuar lhe infligindo mais sofrimento. Para a nossa sorte, a rua de Bruxelas em frente à casa de eventos jazia deserta, e todos os funcionários destacados para estacionar os veículos estavam distraídos no subsolo do prédio, cuidando das suas tarefas por lá. Não havia nenhuma outra testemunha no local, além do quarto guarda a serviço de Archambault.
A menina usou um poste de cobre para se apoiar e para se lançar a uma altura de quase dois metros do chão. Com o impulso, chutou o focinho de seu inimigo para arremessá-lo inconsciente contra o piso asfáltico além da calçada. Após derrotá-lo, ela puxou a kpinga da caixa torácica do segundo lobisomem, e se voltou em direção à silhueta que surgia das sombras, no sentido contrário em que ela estava abaixada. O quarto homem da guarda tinha assistido a tudo sem interferir, e só deu um passo em frente quando viu que Alex havia vencido. O coração dela disparou dentro do peito ao vê-lo se aproximar, porém, decidiu manter os punhos em riste, defensiva.
— Você também vai tentar me deter, Reece?
Pelos olhos de Alex, eu era capaz de enxergar o aspecto do rapaz diante dela. Seus cabelos loiros estavam mais compridos do que antes, e uma franja mais alongada escondia um tapa-olho de couro que cobria a sua órbita esquerda. Por baixo do tampão, era possível enxergar uma cicatriz que se alongava quase até a bochecha, em uma coloração acinzentada.
— Eu nunca machucaria você, Alex.
Os pensamentos de Alex tornaram-se caóticos à medida que ela desarmava suas defesas para se jogar nos braços do rapaz robusto. O abraçou com intensidade, e como da última vez, os dois trocaram um beijo singelo antes de ele lhe fazer um carinho breve no rosto. Ela ficou tão alvoroçada em tocá-lo depois de tanto tempo, que quase desfez o nosso contato psíquico.
— Seu olho... O que... O que houve?
Ele ficou cabisbaixo durante o período em que as mãos dela tocaram levemente a marca abaixo do tapa-olho.
— Archambault me castigou pelo que aconteceu em Montbéliard... Me cegou de um olho usando um instrumento de prata — O ritmo cardíaco de Alex tornou a se acelerar, mas, desta vez, não era pela paixão que sentia por Reece. Seu peito estava tomado de ódio. — Mas já foi há muito tempo... Eu já me acostumei a ser caolho!
Alex ainda demorou um tempo para se recompor do misto de sensações que a arrebatava, mas se voltou a tempo à execução de nosso plano. Não demoraria até que o lobisomem atordoado se recuperasse na calçada, e ela precisava agir. Guardou a kpinga no bolso e pediu ao rapaz:
— Nós precisamos falar com Lucien no baile, Reece. A minha mãe está prestes a invadir o local por trás, mas eu preciso tomar precauções caso seu patrão se torne hostil.
Por seu apreço à Alex, e mesmo a custo de mais castigo e sofrimento, ele acenou que estava disposto a ajudar.
— Tem um carro popular estacionado na esquina ao lado. Eu viajei até à cidade vizinha para trazer comigo alguém que está agora amarrado e amordaçado no porta-malas. Eu preciso pegá-lo para dar continuidade ao plano.
Reece franziu o cenho. Ela continuou.
— Tem dois guardas tomando conta do telhado do prédio, e eu preciso que eles não estejam mais lá quando eu voltar, Reece. Pode cuidar disso?
Um aceno positivo, mas ele continuava em dúvida.
— Você sequestrou uma pessoa? Quem está no porta-malas do carro?
Alex sorriu antes da resposta:
— Um padre. Eu o trouxe para abençoar a festa de Lucien Archambault pessoalmente.
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