Capítulo 37 - A decisão de Akanni

NÃO ERA DIFÍCIL IMAGINAR o destino de Ruxandra depois da sua fuga do castelo em Pleven. Ela havia se livrado a muito custo das garras sórdidas do perseguidor que a manipulava e que a queria desposar antes mesmo que ela soubesse o que significava o amor por outra pessoa, mas tinha conquistado a liberdade com que tanto sonhava.

Pela idade que tinha ao escapar da Bulgária, passou pouco tempo até que ela se encontrasse com meu pai, Grigore, se apaixonasse e se casasse com ele, para viver a alguns quilômetros de distância dali, na Valáquia e, enfim, livre da influência de Dumitri.

Eu conhecia aquela mulher como a mãe zelosa que havia me criado com afinco, apesar das adversidades e as agruras sofridas por nossa família na Valáquia, e nunca sequer imaginei as situações terríveis pelas quais ela passou em sua juventude, nem tampouco que tinha escapado da sanha do mesmo vampiro pervertido que, alguns anos depois, também iria me desgraçar a vida.

Depois da conversa com Akanni no porão, eu assuntei se Alex estava precisando da minha ajuda na cozinha e, assim que percebi que ela podia se virar sozinha com a carne do cervo de quase cento e cinquenta quilos que preparava para o jantar, me vi curiosa para continuar a leitura do diário de Dumitri.

Me sentei na cadeira de balanço da varanda e, enquanto a vida noturna do lado de fora do chalé ecoava da floresta até ali, voltei a me debruçar sobre as palavras de meu odiado mentor.

(...)

"20  de setembro, 1828.

Descobri através de informantes cuidadosamente posicionados nos arredores do castelo que Lucien Archambault transferiu-se permanentemente para uma de suas propriedades francesas e que não tem intenção de retornar às terras búlgaras. Em virtude da perseguição implacável que sofro do conselho de vampiros de meu adversário, vi-me compelido a abandonar meu refúgio em Varna, e encontrei abrigo em um bairro distante de minha pátria-mãe, a Valáquia.

Entretanto, ontem, adentrei mais uma vez os vales sombrios de Pleven, com o propósito de alcançar a área de serviço do antigo castelo de Archambault, e para minha surpresa, constatei a veracidade dos rumores de que o arrogante patriarca permitiu que o casal Szekély permanecesse responsável pela propriedade, aguardando o retorno, mesmo que improvável, de sua estimada filha.

Iorghu só percebeu minha chegada quando já era tarde demais. Embriagava-se com uma garrafa de uísque barato quando se deparou com uma mordida em seu pescoço. Não emitiu qualquer reação verbal. Estremeceu brevemente diante do abraço fatal da morte, quase como se ansiasse por esse destino imposto por mim.

Arlene já trajava seu vestuário noturno quando surgiu na cozinha, alarmada pelo colapso de seu marido ébrio sobre o piso rústico da residência. Seus olhos se arregalaram ao deparar-se com minha presença, ainda com o doce sabor do sangue do falecido Iorghu em meus lábios, observando-o imóvel. Todavia, a mulher não proferiu um grito sequer. Dirigiu-se a um conjunto de facas expostas sobre a bancada ao lado do fogão a lenha e empunhou uma lâmina contra seu próprio ventre.

No seu sofrimento ao testemunhar seu esposo drenado no chão, a filha de minha amada Alanna afirmava que preferia uma morte lenta a servir-me como presa. De alguma forma, meu poder de influência se mostrava ineficaz contra ela, mesmo sem qualquer artefato místico a bloqueá-lo, e ela recusou-se a obedecer-me para largar a lâmina.

Movido por um desespero semelhante, em minha ânsia de ter alguém da linhagem dos Dubhghaill como minha consorte, executei um ataque rápido e letal contra Arlene, buscando incapacitá-la até que a nutrisse com meu sangue, transformando-a em uma vampira como eu.

Contudo, antes que eu pudesse perceber, ela já havia penetrado seu próprio ventre com a faca de prata, contaminando assim seu sangue poderoso com esse metal maldito..."

(...)

Era difícil ler aquele relato sabendo que era de minha avó que o nefasto Dumitri falava tão displicentemente. Ao longo dos quatorze anos em que havia vivido com Ruxandra na Valáquia, ela não tinha o costume de me confidenciar histórias sobre seu passado. Eu não sabia nada a respeito de Arlene ou Iorghu, nem tampouco suspeitava que nós duas tínhamos ascendência celta ou mística.

Para todos os efeitos, a minha mãe era apenas uma camponesa que se esforçava muito na lida a fim de tirar o sustento da sua família, e que apesar de forte, não era nada além do que uma mulher comum; ótima dona de casa, excelente esposa e uma mãe zelosa.

Saber o quanto Dumitri havia maculado os meus entes queridos, mesmo antes de eu nascer, me causava uma profunda revolta. Quase a ponto de desejar que ele estivesse vivo só para que eu o pudesse decapitar outra vez.

(...)

"21  de setembro, 1828.

Enquanto lamentava o falecimento de Arlene e sentia o paladar queimar devido à presença da prata em seu organismo, vi-me arrastando pelos aposentos dos servos. Revirei meticulosamente cada um dos pertences da mulher que repousava inerte no piso frio da cozinha, buscando ansiosamente algo que pudesse me conduzir ao encontro de Ruxandra ou que me lançasse luz sobre o destino da chave confeccionada por Alanna para selar os portões entre as realidades.

Além das escassas vestimentas de trabalho que ela possuía, dos calçados desgastados, do frasco de perfume de lavanda que utilizava e do único casaco de inverno que repousava em seu armário, Arlene guardava, oculto no fundo de uma gaveta, apenas uma simples caixa de madeira. Foi nessa caixa que encontrei o registro de nascimento de sua filha e um antigo histórico escolar pertencente a ela própria.

Não havia qualquer outro objeto que fizesse referência ao seu passado em Hîncesti, nem mesmo uma carta de sua falecida mãe que pudesse atestar alguma forma de herança deixada postumamente. Era como se Arlene desejasse suprimir sua filiação, ou simplesmente ignorasse intencionalmente seu passado com a mãe.

Será que houve alguma desavença entre elas pouco antes da morte de Alanna?

Seria Arlene, de alguma forma, relacionada ao trânsito de sua poderosa mãe para o além-túmulo?"

A carne de cervo preparada por Alex estava bastante suculenta e nós três o acompanhamos à mesa com a garrafa de um excelente Cabernet Sauvignon que eu havia comprado em minha última viagem à Ottawa.

O clima ainda não era agradável por conta das minhas recentes descobertas acerca de meu passado, e minha filha não precisou de muita observação para perceber que eu não estava bem.

Abocanhou um pedaço de bife com ligeira satisfação, mastigou sem desviar os olhos de mim e, enfim, expôs o que estava sentindo.

— Por que eu acho que a paz nessa casa não vai durar muito mais além do jantar?

Akanni e eu nos entreolhamos. Ele manteve o garfo por alguns segundos no ar esperando a minha reação, então desabafei:

— Eu descobri mais a respeito da minha ascendência pelos diários de Dumitri — Alex tomou um gole do Sauvignon antes de emitir uma interjeição surpresa. — Minha bisavó era uma bruxa muito poderosa. Ao que tudo indica, ela tinha mais de um século de vida e, há muito tempo, usou seus dons naturais para selar vários pontos de energia usados como passagem entre o mundo físico e o metafísico. Entre a Terra e o Sheol.

Aquela revelação não era surpresa para Akanni, e ele ficou a observar de perto as reações de minha filha enquanto eu falava.

— Esses portais permitiam comunicação direta entre os mundos, por isso era de fundamental importância que aqueles que detinham poderes místicos, como minha bisavó e seus amigos bruxos, bloqueassem a sua passagem. Eles queriam impedir o diálogo entre os dois lados.

— E como Dumitri tinha conhecimento disso? Qual era a relação dele com a sua bisavó?

Uma nova troca de olhares com Akanni e ele tomou a liberdade de responder Alex por mim.

— Alanna e Dumitri se encontraram no século passado, numa cidade mais isolada da Moldávia, Alex. Ele ficou fascinado pela vasta gama de conhecimentos que a mulher possuía sobre misticismo na época, e não demorou a concluir que ela era uma bruxa que já havia vivido muito mais do que a sua aparência jovem indicava. De fato, pelo que os registros de Dumitri insinuavam, ela era mais velha até que ele próprio, e se manteve saudável a custo da magia que controlava.

— Você nunca me contou essa história, mãe — disse Alex, surpresa.

— Eu nunca soube nada a respeito dos meus avós maternos, Alex. Minha mãe não era de se abrir muito comigo quanto a esse assunto. Para falar a verdade, eu nem sabia que a mãe dela se chamava Arlene, ou que seu pai era um caseiro de nome Iorghu.

— Então... Dumitri já era um problema para a nossa família há bem mais tempo do que imaginávamos — concluiu Alex, com sabedoria.

— Sim — respondi, cabisbaixa. — Antes de você e eu, ele já havia assediado a minha mãe e tentado desposá-la. Ele pretendia gerar com ela os filhos perfeitos da união entre morois e bruxos... O canalha era obcecado em criar descendentes poderosos que rivalizassem com o Concílio de Sangue. Ele desejava destronar Lucien Archambault e, para isso, desenvolveu verdadeira obsessão pelas mulheres da família Dubhghaill, de quem eu descendo.

— Que bom que o tio Costel decapitou esse desgraçado!

Havia fúria nos olhos celestes de minha filha.

— E que pena que eu não consegui liquidar Thænael e seu hospedeiro no mesmo dia em que Dumitri morreu. Tudo teria sido mais fácil se eu não tivesse falhado...

Precisei de um tempo para absorver as minhas próprias palavras.

— O fato é que Thænael agora sabe a respeito dos portais por causa dos diários de Dumitri. Ele teve bem mais de dez anos para estudar a fundo cada um dos registros escritos do vampiro e, provavelmente, tem usado desses conhecimentos para buscar uma maneira de abrir os portais selados por minha bisavó.

— Mas, ele tem como fazer isso? — foi a pergunta de Alex que, assim como nós, também havia perdido o apetite. — Se esses portais foram trancados por magia, ele precisaria de algum tipo de chave para abri-los, não é?

— Eu conferi por data os diários de Dumitri que peguei da biblioteca do castelo da Transilvânia antes de sairmos de lá, e estão faltando vários volumes. Se Dumitri encontrou um meio de destravar esses portões, a resposta estava nos cadernos que Costel levou com ele, pouco antes de fugir moribundo do castelo. Eu não tenho essa resposta.

— E esses portais? Onde eles estão, e como chegamos neles?

— Dumitri descobriu com uma cigana em Hîncesti que dois deles jaziam escondidos na Bulgária, mais precisamente em Rila e no Santuário de Belintash. Não há qualquer indicação de como chegamos lá ou se são visíveis a olho nu, mas é tudo que temos — respondi à Alex, pouco antes de Akanni aprofundar a resposta:

— O planeta Terra possui diversos pontos de energia que fluem através dos continentes. Esses pontos podem ser mais ou menos perceptíveis em determinadas épocas do ano, ou de acordo com conjunções astrais específicas. Porém, existem locais que beneficiam essa percepção energética em qualquer temporada, e é onde o tecido entre as realidades costuma se tornar mais tênue.

Alex parecia interessada pelo assunto.

— E você conhece algum desses pontos de energia, além dos citados pela minha mãe, Akanni?

Ele acenou que sim.

— Existe algum perto de onde estamos?

Agora um aceno negativo.

— Você conviveu com Costel por bastante tempo, filha. Ele nunca disse nada a respeito dos diários de Dumitri ou sobre os tais portais?

— Só mencionou as passagens dos diários que diziam respeito a você, mãe... Ele nunca falou sobre passagens para outros mundos, Céu, inferno... Eu não fazia ideia que ele buscava algo assim naquela época!

Eu estava profundamente preocupada. Sentia que o tempo para determos Thænael estava se esgotando e, quanto mais demorávamos para encontrá-lo, menores eram as nossas chances de impedir que ele abrisse as portas entre a Terra e o inferno para liberar as legiões de nefilins que tomariam o nosso mundo.

— Eu só ainda não entendi uma coisa: qual o papel do Concílio de Sangue nisso tudo? — a pergunta de Alex era pertinente e a resposta de Akanni foi direta:

— Um exército — nós o observamos atônitas e em silêncio. — Assim que abrir os portais, Thænael precisará de hospedeiros fortes como ele para conter as almas de seus irmãos nefilins... Ele quer transformar o concílio em seu exército de demônios-vampiros.

Aquela teoria fazia todo sentido. De repente, cada uma das peças soltas parecia se encaixar sobre o tabuleiro do quebra-cabeças. A minha responsabilidade em achar Costel e destruí-lo aumentava ainda mais.

Já detive a abertura de outros portões para o inferno antes e tenho que conseguir de novo. Eu não posso falhar. Não posso.

Naquele início de madrugada, Alex se entreteve na sala de casa assistindo a uma série de ficção-científica chamada "Star Trek" pela televisão. Assim como eu, havia ficado preocupada com a iminente ascensão de Costel ao posto de o vampiro-demônio mais poderoso do mundo, e quis desanuviar a cabeça consumindo os programas norte-americanos que eram transmitidos em reprises de madrugada.

Senti-me fragilizada devido o teor de minhas descobertas, e do meu medo em falhar com a busca por meu meio-irmão. Embora tivesse jurado a mim mesma que não cairia mais em tentação — e que não permitiria que ele também caísse em tentação —, naquela noite, eu voltei a fazer amor com Akanni.

Daquela vez, contivemos urros e gemidos de prazer em respeito à minha filha, e também evitamos mordidas e arranhões. O senti hirto e intenso dentro de mim, com ele deitado por cima. E, pelas longas duas horas em que ficamos juntos, quase como um só dentro daquele porão, me esqueci completamente dos meus problemas, e do perigo que nos ameaçava constantemente.

— Me desculpe contribuir para aumentar a sua lista de pecados na Terra... Mas você foi incrível... Ainda melhor que na primeira vez!

Eu estava deitada de costas e ainda ofegava devido ao ritmo intenso de nossa prática sexual. Akanni parecia relaxado com a cabeça no travesseiro ao meu lado, mas continuava em riste lá embaixo, como que pronto para continuar a me amar por mais duas horas... ou quatro.

Anjos são mesmo incansáveis, pensei, ainda levemente empolgada.

— E pensar que corriam boatos de que vocês não eram adeptos de tais práticas... Que não possuíam sexo definido e nem características físicas humanoides!

Ele ficou em silêncio por um tempo.

— Disse alguma bobagem? — perguntei, receosa.

— Não — respondeu, encarando o teto. — Anjos não possuem forma física. Pelo menos, não como vocês humanos compreendem uma forma física... baseada em carbono.

Me virei de bruços para continuar ouvindo a sua explicação. Ele encarou o meu traseiro e foi subindo os olhos até o meu rosto.

— O Pai Celestial nos criou como seres fluídos. Somos capazes de pensar, de falar e agir, mas não temos uma definição corpórea... Até que tenhamos que interagir com outros seres para levar a mensagem do Senhor.

— "E no meio do fogo havia quatro vultos que pareciam seres viventes. Na aparência tinham forma de homem, mas cada um deles tinha quatro rostos e quatro asas. Suas pernas eram retas; seus pés eram como os de um bezerro e reluziam como bronze polido. Debaixo de suas asas, nos quatro lados, eles tinham mãos humanas. Os quatro tinham rostos e asas, e as suas asas encostavam umas nas outras. Quando se moviam, andavam para a frente e não se viravam".

— Capítulo 1 do livro de Ezequiel, versículos de 5 a 9 da Bíblia Cristã — respondeu ele, ao reconhecer a passagem que eu havia decorado e citado. — A Torá judaica e o Alcorão islâmico também concordam em vários pontos quanto a anjos serem criaturas espirituais sem forma definida e que são mensageiras dos Céus. Poderíamos passar horas aqui falando sobre o que há de verdadeiro ou não nas escrituras sagradas, mas você ficaria enfadada.

Eu dei uma risada curta.

— Já me sinto feliz por você não ter apelado para a resposta costumeira de que "sou burra demais para entender os desígnios de Deus".

Ele me fitou com ar entre o sério e o curioso.

— Não a considero burra, Alina. Eu sei que você duvida da existência de um Ser Superior a quem nós, os anjos, devem obediência e subserviência. É por isso que evito explicações mais técnicas a algumas de suas perguntas.

— Eu tenho um monte de perguntas a respeito Dele... mas você ficaria bravo comigo se eu as fizesse!

Novo silêncio. Durou o suficiente para que ficasse constrangedor. Mudei de assunto.

— O seu nome é mesmo Akanni? Não me parece um título angelical como "Rafael" ou "Gabriel", por exemplo...

Seus lábios grossos se curvaram em um sorriso leve.

— Na língua comum, o meu verdadeiro nome soaria mais como "Akanael", mas em linguagem angélica, não haveria um meio de pronunciá-lo sem que uma explosão sônica fosse liberada...

Achei que ele estivesse brincando, mas depois, percebi que ele estava falando sério.

— Eu gosto de Akanael — ele voltou a sorrir enquanto me observava. —, porém, Akanni combina mais com essa forma que escolheu — e eu dedilhei um músculo de seu braço forte.

— Eu já tive muitas outras formas. Diversos outros nomes. Inúmeros rostos. Mas essa casca é a minha preferida. Faz eu me lembrar dos primórdios, de onde tudo começou, do berço da civilização moderna... de como eram os homens na época pré-diluviana...

Ele divagou. Continuei prestando a atenção.

— Eu vivi por muito tempo entre os mortais, Alina. Assisti a incontáveis revoluções, participei de muitas guerras e vi muita carnificina. Acho que está na hora de partir... Eu quero voltar a fazer parte de algo maior, quero estar com meus irmãos... Tenho que voltar a ser um Grigori, mas para isso, é necessário que eu complete minha missão.

Akanni sentou-se na cama e apoiou os antebraços sobre os joelhos. Mudei de posição para acompanhá-lo e me sentei a seu lado. Levou mais alguns segundos até que completasse seu raciocínio, e ele me revelou aquilo que o estava incomodando desde a mesa do jantar:

— Nós passamos os últimos dois anos procurando por Thænael, e ele pareceu antever todos os nossos passos. Mas agora eu quero fazer direito. Eu decidi que vou fazer uso da magia enoquiana de localização para saber com precisão onde ele tem se escondido. Eu vou encontrá-lo, Alina, e nós vamos destruí-lo de uma vez por todas.


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