Capítulo 36 - A essência
EU ESTAVA TRANSTORNADA quando terminei de ler aquele volume dos diários de Dumitri. Caminhei até a cozinha quase a esmo, e mal consegui encher o copo com a dose de Knappogue Castle da minha reserva pessoal. Bebi tudo de um só gole, como que tentando fazer com que o álcool me ajudasse a digerir as palavras.
Não funcionou.
Akanni voltou da floresta carregando um cervo inteiro nos ombros. Deixou de lado a espingarda para apoiar o animal morto sobre o balcão da cozinha, e Alex se animou em dizer que cuidaria da limpeza da carne. Os dois tinham passado a tarde quase inteira juntos a caçar. Quando me procurou pelo chalé, ele me encontrou bêbada no canto mais escuro do meu quarto, no porão, com a garrafa de Castle vazia no colo.
— Noite ruim?
Apontei em direção aos cadernos em capa marrom sobre a cama de casal. Ele acendeu a luz do abajur antes de folheá-los e entendeu logo a razão da minha aparente amargura.
— Dumitri passava boa parte dos seus relatos citando uma mulher misteriosa que ele conheceu em Hîncesti. Parecia obcecado por ela. Começou a visitá-la insistentemente em seu antiquário... se tornaram amigos. O seu nome era Alanna Dubhghaill. Uma búlgara de aspecto jovial que parecia esconder um passado ligado a bruxaria... descendente de celtas... Ela era a minha bisavó, Akanni!
Nos anos que se passaram desde a sua aterrisagem no jardim do castelo na Transilvânia, eu tinha relatado, sem grandes detalhes, um pouco mais sobre a minha trajetória de vida ao anjo. Akanni sabia que eu era filha de dois agricultores da Valáquia e que, embora soubesse com precisão que não havia nada de especial na ascendência de meu pai, desconhecia totalmente as origens de minha mãe.
— Essa bruxa rechaçou Dumitri quando percebeu que ele possuía algo de maligno em seu interior. Por trás de toda a sua carapaça simpática e nobre, ele não passava de uma criatura subversiva que só existia para causar mal a quem encontrasse pelo caminho. Eu li dezenas desses diários — e tornei a apontar para os cadernos sobre a cama. — O próprio Dumitri descreveu com detalhes abjetos a maneira como ele usava as mulheres para conquistar aquilo que desejava. Ele se tornou rico usando e abusando de seu poder de compulsão. Hipnotizou inúmeras vítimas a fim de galgar degraus sociais... até que encontrou Alanna.
Akanni sentou-se na beirada da cama dando uma atenção especial ao último volume que eu tinha lido. Correu os olhos pelo parágrafo final da anotação escrita à mão e franziu o cenho.
— Ruxandra era o nome da sua mãe...
Assenti sem conseguir controlar a lágrima de sangue que voltou a brotar de meu olho esquerdo.
— Dumitri a conheceu quando ela ainda era uma menina?
Fiz que sim. Empurrei a garrafa vazia de lado e me apoiei na parede enquanto me levantava do chão. Akanni continuou lendo mais um trecho do diário.
— Dumitri fazia parte do Concílio de Sangue de Archambault, muito antes de eu nascer. Após a morte de Alanna, ele havia perdido completamente o rastro da sua família, e foi por acaso que reencontrou Ruxandra pelos corredores do castelo em Pleven, onde ocorriam as reuniões de vampiros. Ele não demorou a descobrir que a jovem criada de Lucien, na verdade, era filha de Arlene Dubhghaill, logo, uma descendente direta da mulher bruxa pela qual ele havia ficado obcecado anos antes. Foi a partir daí que começou a fixação de Dumitri pelas mulheres da minha família. De alguma forma, ele podia detectar a herança mística em nosso sangue, e desejava ardentemente desposar uma de nós... gerar seus descendentes perfeitos. Ele tentou com Alanna. Falhou com Arlene. Quase conseguiu com Ruxandra... e comigo!
Akanni abandonou o caderno. Apoiou a mão grande próximo ao colo antes de perguntar:
— A que conclusão chegou depois de ler esses relatos?
A minha cabeça nunca estivera tão confusa e nem era por ação do álcool, que já havia se esvaído inteiro do meu organismo menos de vinte minutos depois de eu tentar me embriagar com ele.
Maldito metabolismo acelerado!
— Em nosso último encontro, em Bucareste, Dumitri tentou me convencer de que eu possuía ascendência real. Na época, eu achei que fosse delírio de um velho recluso que tinha passado mais de vinte anos sozinho e escondido para não ser localizado pelo Concílio de Sangue. Ele me falou uma porção de baboseiras sobre "querer que eu enxergasse todo potencial que o meu sangue real já trazia mesmo antes de me tornar uma imortal". É como eu disse... Eu não levei nada daquilo a sério... Até que o assunto voltou à tona depois que reencontrei Costel... Ele me fez acreditar que aquilo que Dumitri buscava em mim era a nossa compatibilidade moroi... Que eu só era a esposa perfeita porque podia gerar seus filhos... Depois disso, eu parei de me preocupar com o tal "sangue real".
Akanni estava me observando com bastante atenção, até que enxerguei em seu semblante que havia algo que ele queria me dizer. Algo que estivera escondendo esse tempo todo. Dei-lhe um tempo para que se abrisse, mas ele não o fez.
— Costel... Ou Thænael, sabia desde o início o que meu sangue guardava, mas não quis me alertar sobre isso. Provavelmente, ao me atrair de volta para a Romênia, ele esperava me liquidar a fim de se alimentar de mim... Para se tornar ainda mais poderoso com o meu sangue.
Na parte de cima da casa em Edmonton, Alex cantarolava uma canção dos Stones enquanto arrancava a pele do cervo que ela havia ajudado a caçar, e cuja carne prepararia para o jantar. Estava totalmente alheia à discussão no porão que eu havia adaptado como quarto para me isolar nas manhãs ensolaradas do Canadá.
— A mulher Yuliya teve a chance de explodir os meus miolos com uma bala de prata — continuei meu raciocínio. — O seu atirador de elite tinha a visão perfeita de mim do outro lado do prédio em Moscou. A história toda podia ter acabado ali, mas, de alguma forma, nem ela e nem Thænael me queriam morta. Os dois precisam de mim viva. Eu sinto isso.
— Você está certa — a frase assertiva soou quase como um murmúrio. Akanni estava mais tenso que de costume, e me encarou de baixo, ainda sentado na beirada da cama. — Desde a primeira vez que nos encontramos, eu nunca a enxerguei apenas como uma vampira. — Aquela frase me causou um assombro. — Nós, os anjos, conseguimos enxergar o interior das pessoas. É como uma espécie de "Raio X celeste". Quando queremos, podemos ver muito além da estrutura baseada em carbono com que todo organismo vivo é constituído. Eu vi a sua essência naquele jardim da Transilvânia, e ela conversou comigo, Alina.
Naquele momento, eu desejei ter outra garrafa cheia de Castle em mãos para tomá-la inteira.
— Você falou com a minha essência?
Acenou que sim.
— Você percebeu que eu era um tipo de descendente bruxa só de me olhar?
Outro aceno positivo.
— Mas, por que eu não consigo sentir nada? — andei de um lado a outro do quarto, enquanto meus pensamentos se tornavam ainda mais obscuros. — Eu passei mais da metade da minha vida combatendo bruxos e pessoas que eram capazes de controlar mentes ou canalizar fogo com as mãos... Eu... Eu passei quarenta anos dentro de uma tumba porque fui atingida por uma bola mística incandescente atirada contra mim. Por que essa "essência mágica" não me salvou? Por que ela nunca falou comigo?
Akanni tinha um jeito enigmático de me fitar sempre que não queria responder algo para a qual sabia a resposta. Ele já havia me dito em mais de uma oportunidade que certos conhecimentos fugiam à compreensão humana, e que jamais seríamos capazes de entender Deus e muitos dos Seus desígnios. A julgar por sua expressão, as minhas perguntas deviam ter arranhado essa superfície do "impossível de entender".
— Eu não sabia sobre sua bisavó, nem tampouco sua ascendência céltica, mas cruzei com seu povo em mais de uma oportunidade em minhas jornadas. Sei do que eles eram capazes de realizar e detecto essa mesma capacidade em você, Alina.
— Então... Eu sou mesmo uma bruxa? Eu posso... Soltar bolas de fogo pelas mãos?
O primeiro riso da noite soou da sua boca. Me senti uma estúpida.
— Eu sou versado em magia devido ao meu treinamento como Grigori. Rafael só recrutava os melhores para o seu exército, logo, eu precisava entender de magia enoquiana, arcanismo e outros tipos de manipulação energética se quisesse fazer parte da sua tropa. Desde que decaí, eu não sou mais capaz de curar terceiros ou a mim mesmo apenas com meu dom natural. Eu recorro à manipulação de energia e, para isso, uso os ensinamentos de Enoque.
Aquela informação me era inédita. Ele, então, continuou:
— Nas duas vezes em que usei desses conhecimentos para curar os seus ferimentos, no entanto, eu não precisei despender muito da minha energia para fazê-lo, Alina. Na verdade, eu só precisei conversar com a magia que já havia dentro de você. Foi ela quem te curou.
Estava difícil de acreditar naquela história. Encarei as palmas das minhas mãos como se temesse o que poderia sair delas, de repente. Então, me voltei para o homem-anjo sentado em minha cama.
— Por que você nunca me disse nada disso antes?
Silêncio.
— Todo esse tempo... Você sabia que havia esse poder em mim e nunca me falou nada. Me deixou no escuro de propósito.
Ele parecia desconfortável.
— E não se atreva a me responder que é algo além da minha compreensão, Akanni!
Ele abaixou os olhos um instante. Encarou a garrafa no chão, então, disse:
— Nós anjos não podemos interferir no destino das pessoas ou precipitar a descoberta humana. Somos proibidos de usar o nosso poder para esse fim.
Dei um riso irônico.
— Não podem interferir em nosso destino, mas está liberado fazer sexo com fêmeas humanas e engravidá-las?
Ele me olhou de um jeito sério.
— Algumas regras celestes se mantêm na Terra, mesmo para os caídos. Nós não podemos intervir no destino da humanidade. Nem de um só indivíduo, nem da população como um todo.
— Quer dizer que, se eu estiver na iminência de morrer e você souber disso... Vai simplesmente deixar acontecer?
Não houve resposta verbal, mas em meu âmago, eu sabia o que ele tinha a me dizer.
Eu estava chateada demais com toda aquela história para querer continuar a conversa. Recolhi os cadernos de sobre a cama, dei as costas ao anjo e subi as escadas. Precisava de uma bebida urgentemente.
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