Capítulo 33 - Amor de anjo

OS GRITOS DE ALERTA DE Akanni fizeram com que os transeuntes na calçada se abaixassem, enquanto o impacto dos tiros disparados do prédio em frente os pegava de surpresa. Em meu atual estado, eu estava sendo praticamente arrastada por ele em direção ao carro e, de tão atordoada, nem percebi quando as balas do atirador de elite acertaram as suas costas, o ferindo sem gravidade.

Saímos do alcance da mira do homem a serviço de Yuliya assim que dobramos a esquina da Novvy Kordon. Foi quando nos esforçamos para chegar à quadra onde tínhamos largado o carro de aluguel.

— O-Onde você estava? Por que demorou tanto?

Ele me deitou no banco traseiro e assumiu rapidamente a direção, antes que eu questionasse a sua habilidade como condutor. Teve dificuldades para arrancar devido a sua inexperiência em controlar automotores, mas após alguns erros de principiante, pegou o jeito da coisa rapidamente para tocar em direção ao hotel.

A prata em meu organismo me fez desmaiar no caminho até a hospedaria e, quando dei por mim, estava deitada sobre a cama da suíte, seminua. O lençol sob meu corpo ainda apresentava manchas de sangue, e a minha cabeça zunia como se tivesse sido usada como bola de futebol.

Akanni estava ajoelhado no chão próximo à porta de saída do quarto. Tinha arrancado a blusa e o sobretudo que usava. Parecia em estado de meditação. Mantinha os olhos fechados e as mãos a descansar sobre as coxas.

O chiado incômodo que sempre o rodeava estava ainda mais audível aos meus ouvidos sensíveis, e a sua pele jazia quase translúcida. Sob ela, era como se emanasse a energia de um reator nuclear a brilhar intensamente. A minha visão foi ofuscada um segundo antes de eu o chamar para tirá-lo do transe.

— Alina... você está acordada.

Ele tinha me deixado apenas de calcinha e sutiã sobre a cama. O restante das minhas roupas jazia largado num canto do quarto, amarfanhado e fedendo a pólvora. Mas, por algum motivo, não pensei em cobrir meu corpo com nada além do que a minha lingerie. Estava confortável que ele me visse em trajes sumários.

Já me viram em situação muito pior, pensei.

No momento seguinte, ele se levantou do chão e se dirigiu até onde eu estava.

— Você estava... meditando?

Ele não respondeu. Pediu licença para me examinar o ferimento no ombro e verificou se o processo de cicatrização já havia começado. Correu os dedos firmes em minha pele para dar o diagnóstico:

— Eu consegui extrair toda a prata. Você vai ficar bem.

Assim como o buraco no ombro, todas as áreas feridas pelo chumbo já estavam sarando, e suspeitei que fosse obra de seus poderes angelicais. Eu não entendia bem como os seus dons de cura funcionavam, mas estava em dívida com ele. Pela segunda vez.

— Eu desmaiei... Co-Como foi que passou pela portaria do hotel comigo nos braços sem causar alarde nos funcionários?

Ele começou a se afastar no momento em que fixei os olhos nas cicatrizes que ele ostentava por boa parte da pele do torso. Possuía uma musculatura rígida nos ombros e braços, e tinha um abdômen levemente inchado, porém, tonificado.

— Não foi um problema. As pessoas na recepção estavam um tanto quanto distraídas com o noticiário das dez horas transmitido pela televisão.

O tiroteio no prédio da Novvy Kordon havia chamado a atenção da imprensa soviética e, em menos de uma hora, até caminhões do exército estavam cercando o local por causa de um boato de que terroristas estrangeiros haviam invadido para matar o presidente da empresa. A nossa ação não tinha sido das mais sutis, e era muito provável que a polícia local e até a KGB estivessem à nossa procura naquele momento.

Akanni andou em direção à porta do quarto e abriu uma fresta com a intenção de espiar do lado de fora. Enquanto ele se empenhava em vigiar os corredores do hotel, eu percebi que as suas cicatrizes de batalha se estendiam também para a região de costas e lombar. Ao que parecia, aquele seu corpo mortal já havia sofrido um bocado para manter o espírito do anjo íntegro em seu interior.

— Por que demorou tanto para aparecer no hall de entrada da Kordon? — o questionei, ainda curiosa. — Se você estivesse nos esperando no átrio, como o combinado, nós teríamos capturado a Yuliya e obrigado a maldita a nos levar até Costel.

Akanni voltou a trancar a porta antes de se virar para mim.

— Ela sabia que eu estava dando cobertura a você na parte de baixo do prédio, por isso, trouxe alguns de seus amigos vampiros com ela para me manter ocupado.

— Era como eu suspeitava — disse, usando meu tom mais pesaroso na voz. — Nós estávamos sendo observados desde o desembarque em Moscou. Yuliya estava um passo à frente o tempo todo. Não estivemos em vantagem por nenhum momento.

Akanni parecia levemente incomodado com algo além do que a nossa segurança. Estava mantendo a sua percepção extra-sensorial em potência máxima para captar possível movimentação hostil nas ruas em torno do hotel. Não sabíamos até que ponto havíamos sido identificados pelas autoridades durante a ação na Novvy Kordon e, até que o som das sirenes de emergência cessasse por completo ao longe, não podíamos nos dar ao luxo de relaxar.

— Você se feriu na luta contra os vampiros? Parece um pouco cansado...

— Eles não eram tão experientes — respondeu ele. — Mas atacaram aos montes, o que exigiu mais esforço da minha parte do que eu previa.

Movimentei o ombro direito ainda tentando restabelecer a sensibilidade da pele ferida e sorri em sua direção. Seus olhos miraram o decote do meu sutiã sem qualquer pudor da sua parte, logo depois, se voltaram para o meu rosto. Senti uma sensação curiosa no ventre com aquela olhada. Algo que há muito tempo eu não experimentava.

— Aquilo que você fez aos soldados no hall foi... incrível.

Ele flexionou os músculos da face assumindo uma feição tristonha. Abaixou os olhos em resposta ao meu elogio.

— Eu quis dizer que foi espetacular mesmo... Você me poupou uma porção de buracos de balas extras na minha roupa nova... — Ele não reagiu à minha tentativa de chiste. — Você deve ter gastado um bocado de energia para canalizar aquela... luz. Foi impressionante!

Sem dizer nada, Akanni andou até mim e se sentou à minha frente sobre o colchão. Percorreu os olhos de um jeito quase lascivo das minhas coxas até os meus seios, e ficou me encarando. Parecia querer ler os meus pensamentos.

Eu estou ficando estranhamente balançada com o jeito que ele está me olhando... Será que é o que estou pensando? Será que... Será que ele consegue ler a minha mente nesse momento?

— Eu despendi um nível alto de energia para enfrentar os vampiros, para derrotar os homens no átrio do prédio e para curar nossos ferimentos — disse, com um tom de voz mais rouco que o normal. — Mas isso não é nada perto do que ainda terei que usar em outros confrontos se não encontrarmos logo Thænael e o mandarmos de volta para o inferno.

Havia um magnetismo irresistível pulsando entre nós dois no interior daquele quarto de hotel. Ainda estávamos fragilizados em decorrência dos eventos anteriores e, por algum motivo que eu não sabia explicar, estar ali com ele naquele momento estava me causando uma sensação incontrolável de desejo.

— Acho que temos algum tempo para gastar enquanto nos recuperamos dos ferimentos — disse, descendo lentamente as alças de meu sutiã. — Pelo seu histórico na Terra, imagino que não se sinta desconfortável na presença de uma mulher como eu, seminua, não é?

Soltei o fecho da lingerie e ele nem piscou. Observou atentamente o descortinar dos meus seios sem mexer um músculo do corpo.

— Quer dizer... supondo que já tenha encontrado uma mulher como eu!

Um sorriso ligeiro abrilhantou seu rosto.

— Teve uma vrycolaka uma vez... Com dentes pontiagudos e garras... E as irmãs gêmeas súcubos na Grécia Antiga também... Foi o mais perto que cheguei de vampiras...

Eu não conseguia resistir à minha própria luxúria. Percorri a pequena distância que ainda nos separava sobre o colchão da cama de casal para me apoiar em seus ombros antes de beijá-lo. Em contato com a minha pele, a dele queimava, e a sua carapaça mística produzia um som ainda mais agudo. Senti todo o meu corpo em combustão no momento em que seus dedos envolveram a minha cintura e ele me apertou contra seu torso.

Então essa é a sensação de tocar um anjo?

— Eu não sei o grau de diversão que teve com as outras, mas comigo garanto que vai ser totalmente diferente... E substancialmente mais prazeroso.

Antes que eu estivesse pronta para o que viria a seguir, no entanto, nós dois nos deitamos sobre aquela cama e unificamos os nossos corpos em uma comunhão inédita para mim até então. Eu realmente nunca havia experimentado nada parecido com aquilo e, como se estivesse sendo arrebatada por uma força superior muito acima da minha compreensão, me vi gozando de um prazer que eu nem imaginava que fosse possível sentir.

— Oh, Akanni! Você está me... Eu vou... Eu vou...

De repente, ele estava aflorando a minha porção vampira. Enquanto seu membro rígido me penetrava sem descanso lá embaixo, eu me vi forçada a mordê-lo com as minhas presas e a arranhar a sua pele com as minhas unhas. Diferente do que eu pensava, não havia sangue por baixo dos ferimentos que eu lhe causava. Apenas uma essência adocicada e afrodisíaca que me fazia querer experimentá-la ainda mais.

— Não pare o que está fazendo, por favor... Apenas... Não pare!

Ignorando totalmente os vizinhos de andar, continuamos em nossa prática lasciva ininterrupta, causando rangidos na estrutura metálica da cama e produzindo sons infindáveis de cópula.

O tempo tornou-se relativo à nossa volta e, enquanto nos amávamos com fúria sobre aquele colchão, todos os nossos problemas e inquietações se tornaram secundários ante a nossa fome libidinosa.

— Não pare o que está fazendo, Akanni... NÃO PARE!

Eu não estava preparada para ter relações com um ser celestial, mas aquela foi mesmo uma experiência transcendental da qual eu não me arrependi nem por um segundo.

O dia já havia nascido do lado de fora da janela quando despertei sobre a cama do hotel. Sentia como se cada célula do meu corpo tivesse sido recarregada durante a madrugada, e me percebi faminta, como se não comesse há dias.

O quarto estava silencioso ao meu redor. Não havia qualquer sinal de Akanni. Ouvi o som de gotas a bater nas paredes pelo lado de fora do hotel, e senti o cheiro de chuva sendo trazido até meu nariz. Por conta da ausência do sol, os dias chuvosos costumavam ser os meus preferidos.

Aproveitei a ausência de Akanni para me dirigir até o banheiro da suíte e tomar um banho longo. Quando saí do box enrolada em uma toalha, o encontrei já totalmente trajado com seu sobretudo escuro. Folheava um jornal local com cara preocupada. Havia descido até a banca a fim de se informar a respeito das investigações da polícia sobre o ocorrido na Novvy Kordon e voltou com o diário de Moscou sob o braço

— Más notícias? — perguntei, já providenciando roupas limpas junto à minha bagagem. Me despi da toalha de costas para ele para me vestir.

— Foi como você disse — respondeu, sentado na beirada da cama ainda amarfanhada após a nossa noite de amor. — A KGB afastou todas as atenções do prédio da petrolífera para cuidar sozinha do caso.

A KGB era responsável por proteger o Estado soviético contra ameaças internas e externas, e atuava na coleta de informações de inteligência, na investigação de atividades consideradas subversivas ou contrárias aos interesses soviéticos. A agência tinha amplos poderes para monitorar e controlar a sociedade, incluindo vigilância da população, censura da imprensa e controle da segurança interna.

Se a organização havia sido indicada para cuidar do tiroteio na Novvy Kordon, muito em breve a PGU, que era a divisão dentro da própria KGB dedicada à espionagem estrangeira, estaria fechando o país e impedindo a saída de quem quer que fosse por suas fronteiras. Tínhamos pouco tempo para deixar a União Soviética se ainda queríamos manter a nossa liberdade intacta.

— Me sinto enfraquecida durante o dia, mas precisamos aproveitar que o céu está encoberto de nuvens por conta da chuva para chegar o quanto antes ao aeroporto. Agora é uma questão de tempo até que a KGB feche todas as saídas do país, e a última coisa que quero é ficar presa por tempo indeterminado na União Soviética!

Eu terminei de me vestir enquanto Akanni carregava a minha mala para fora. Menos de cinco minutos depois, estávamos dando baixa na reserva do quarto no balcão de atendimento e pegando um táxi em direção ao aeroporto de Moscou.

Pela janela do veículo, vimos a movimentação de carros da polícia e caminhões do exército pelas ruas da Praça Vermelha, e o trânsito na região se encontrava ainda mais caótico do que o normal para um dia chuvoso. Embora estivesse levemente nauseada por conta dos efeitos da claridade do dia, eu me permiti sorrir quando me ocorreu um pensamento que compartilhei com o homem robusto sentado ao meu lado.

— Tudo isso poderia ser evitado se, ao invés do táxi, você me pegasse nos braços e batesse asas comigo em direção a qualquer outro país vizinho...

A sua atenção voltou-se momentaneamente em minha direção, mas ele não estava com semblante alegre. Se manteve sisudo ao responder:

— Nem se eu quisesse... você esgotou as minhas energias ontem!

Eu sabia que ele estava apenas sendo gentil com o seu comentário espirituoso, mas eu me senti envaidecida mesmo assim. Foi a minha vez de encará-lo séria, então, falei em tom baixo para que o motorista não nos ouvisse:

— Só espero que não tenha me engravidado, seu anjo devasso! A última coisa que precisamos agora é de um bebê vampiro-nefilim-demoníaco no mundo!

Ele ficou sem reação por um tempo, mas logo deixou escapar um riso malicioso.

— Não se preocupe. Não somos compatíveis. Não há nenhum risco de isso acontecer.

A chuva batia cada vez mais forte na lataria do carro do lado de fora. O limpador de para-brisa trabalhava incessantemente na intenção de clarear a visão do condutor que resmungava alguns impropérios em russo devido as condições do trânsito àquela hora.

— Foi muito bom, admito. Uma das experiências mais fantásticas da minha vida. Jamais poderia imaginar que teria relações com um... anjo... Entre todas as criaturas existentes no mundo... Logo um anjo! — sua atenção estava agora toda em mim. — Mas nunca mais ouse apontar esse seu... "cajado celeste" na minha direção. Precisamos manter a nossa relação apenas no âmbito profissional a partir de agora.

Ele não respondeu nada. Se virou para a janela e eu percebi que seus pensamentos viajaram. Eu estava curiosa.

— Pelo seu tempo de vida, acredito que já tenha dividido a cama com inúmeras mulheres de incontáveis lugares do mundo... Me diga Akanni. Houve alguma que realmente mexeu com você? Que te fez repensar a sua posição como Grigori... Ou que tenha te deixado tentado a permanecer aqui, entre os mortais?

O motorista deu uma leve espiada pelo espelho superior, mas não pareceu interessado em nos ouvir. Apesar da minha pronúncia impecável de seu idioma, eu estava sussurrando, e tinha certeza que só Akanni era capaz de me ouvir.

— Uma vez — respondeu o anjo, com um tom quase lânguido. — Eu já havia recebido de Rafael a missão de caçar os meus filhos e filhas na época. A minha armadura e a minha espada, a Clemência Celestial, me haviam sido retiradas. Eu estava em missão na região da Germânia quando a conheci. Ela era uma princesa local. A filha mais velha de um rei muito austero e valente, e a mais linda de todas as mortais. Seu nome era Heidi e, se tivesse permanecido por mais tempo ao seu lado, com certeza teria desistido da minha missão junto às hostes celestes, abandonado todos os meus poderes e aceitado viver como um humano comum.

Me senti ainda mais curiosa acerca da mulher que havia arrebatado o coração de Akanni, mas não ousei perguntar o que ele não queria dizer por vontade própria.

— Os anjos são desprovidos de sentimentos mundanos por uma razão, Alina. O Pai Celestial nos criou para que fossemos soldados leais a seus desígnios, e nada além disso. Foi a inveja da capacidade de sentir dos humanos que nos rebaixou. Foi para experimentar as sensações únicas do homem que nós aceitamos abdicar de parte de nosso imenso poder. Embora eu tenha experimentado de tudo um pouco em minha existência, em milênios de andanças pelo mundo terreno, eu jamais tornei a sentir arder em meu peito a chama que aquela bela princesa um dia me atiçou. Por um momento, entendi o quão especial era o sentimento humano, e passei a valorizar o que os Filhos de Deus tinham de mais excepcional, aquilo que em minha forma angélica eu jamais seria capaz de experimentar.

Havia muito de filosófico nas palavras de Akanni e eu demorei um tempo para absorver tudo. Depois daquilo que ele me disse a respeito da sua princesa germânica, nós seguimos o restante do trajeto em silêncio, e ficamos a observar a chuva a cair do lado de fora conforme deixávamos para trás as agruras e as maravilhas sofridas em Moscou.

A poucos quilômetros do aeroporto, eu roguei, em silêncio:

Eu só espero que sejamos capazes de deter Thænael, e que tenhamos sabedoria para impedir que as suas legiões demoníacas exterminem essa humanidade que os anjos tanto admiram e invejam.



KGB (Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti) ou Comitê de Segurança do Estado.

A sigla "PGU" referente a um órgão dentro da antiga KGB da União Soviética pode ser traduzida como (Glavnoye upravleniye postovoy sluzhby), que significa "Diretoria Principal de Serviços de Guarda".

A PGU era responsável pela segurança interna, incluindo a proteção de instalações importantes, a segurança de autoridades e contra-inteligência dentro da União Soviética.

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