Capítulo 31 - A isca
AKANNI ME ACOMPANHOU de Tverskaya até próximo do hotel onde eu estava hospedada. Ainda no carro, apresentou preocupação quanto aos arranhões em meu pescoço, mas eu o confortei dizendo que estava bem. Ele estava de olho no espelho retrovisor do lado do passageiro, receoso que estivessem nos seguindo. Foi quando lhe indaguei:
— Como foi que me achou na União Soviética?
O anjo negro segurava com firmeza a bengala com o leão de madeira esculpido em seu cabo, como que esperando outro motivo para usar a lâmina que a estrutura tubular escondia. Ainda era possível sentir o cheiro do sangue de Randolph Delacroix em seu fio, nítido e fresco. Mas ignorei para ouvi-lo responder.
— O seu rastro é bem mais fácil de seguir do que o de seu irmão.
Eu não sabia dizer se isso era bem uma vantagem.
— Você chegou do nada... Rasgou aquele vampiro... E usou aquela coisa giratória... O que era aquela coisa, afinal?
Ele abriu o casaco levemente. O instrumento com que havia atingido a nuca do companheiro de Randolph estava preso a um de seus bolsos, com seus ganchos e bordas pontudas.
— Isso é uma kpinga — respondeu, com sua voz tranquila. — É uma arma de arremesso a curtas distâncias que uso desde a minha estadia na África Central. Tem pontas de prata, como o gume da minha takoba, por isso matou aquele vampiro instantaneamente.
Estacionei a uma quadra do hotel, quando ele fez menção de desembarcar do veículo alugado. Me certificou de que estávamos seguros por ora, mas mandou que eu me mantivesse incólume até a noite seguinte, por precaução.
— Eu ainda detecto o fedor de Thænael no ar dessa cidade. Vou continuar procurando por ele madrugada adentro. Amanhã voltamos a nos encontrar.
Em meu segundo dia em Moscou, eu percebi que estava colocando as vidas de meus funcionários em risco ao mantê-los em solo soviético. Por essa razão, os despachei de volta para Riad no primeiro voo que partia dali para o Oriente Médio.
Tão logo afastei Saeid e os outros do alcance de um possível ataque do Concílio de Sangue, voltei a me unir com Akanni à noite, e saímos em busca de pistas que nos conduzissem à Yuliya Mikhailova.
— A mulher não pode ter evaporado — estávamos novamente no beco onde eu havia sido emboscada, e os restos mortais dos quatro vampiros mortos na noite anterior não enchiam um copo. O sol tinha queimado qualquer vestígio de seus cadáveres pela manhã, e tudo que sobrara naquele endereço era o indisfarçável odor do mistério que envolvia a possível aliança entre Yuliya, Costel e Lucien Archambault. — De alguma forma — continuei falando. —, ela sabia que estava sendo seguida por mim desde a porta da Novvy Kordon. Me atraiu de propósito para um lugar onde eu seria encurralada pelos vampiros do concílio. A questão é: ela estava agindo de conluio com o clã de Archambault?
Akanni se agachou de cócoras próximo à porta lateral que dava para os fundos do sobrado vizinho. Olhou fixamente para o piso cimentado como que enxergando resíduos invisíveis, depois, se levantou antes de me responder:
— Improvável — se voltou para mim a ajeitar na cintura o sobretudo marrom que trajava. — Pelo que você me disse há algum tempo, Yuliya e Costel também estão sendo procurados pelo Concílio de Sangue. Os dois barbarizaram juntos um número impensável de "ninhos" vampiros por quase toda a década de 1930. Aos olhos de Lucien Archambault, eles são tão malquistos quanto você e Alex. Uma aliança entre os dois lados seria praticamente impossível.
Eu não sabia o que pensar, mas aceitei a sugestão de meu companheiro angelical para que saíssemos daquele lugar. Com bom humor, ele lembrou que, na maioria dos romances policiais, o criminoso sempre retornava ao local do crime, por isso, era possível que aquele beco estivesse sendo vigiado pelos amigos dos vampiros que havíamos vitimado. Enquanto eu divagava pensando se um anjo tinha tempo para ler livros, voltamos para o carro alugado a uma esquina de distância, e partimos velozmente dali.
Logo que a madrugada fria do verão europeu atingiu a cidade, comecei a rodar pelas ruas de Moscou a esmo. Eu tinha mais perguntas do que respostas acerca do que estava fazendo na URSS, mas Akanni me ajudou a elucidar algumas das minhas inquietações.
— Thænael não faz nada sem um bom motivo, Alina. Para ele, era importante que você estivesse em Moscou no dia e no momento exatos. De alguma forma, a informação de que os homens de Archambault estariam por aqui na noite passada era de seu conhecimento, e a atraiu para o escritório usando a desculpa do acordo entre as duas petrolíferas de maneira premeditada.
Naquele momento, o carro popular onde nos espremíamos trafegava junto à rua Kotelnicheskaya. À nossa esquerda, era possível enxergar o rio Moskva, bem como uma parte considerável da zona urbana de Moscou.
— Foi uma jogada de mestre — disse, com a mão firme no volante. — Era como se o homem sentado na cadeira da presidência fosse mesmo Theodor Constantinescu. Enquanto falava comigo, em nenhum momento os níveis de adrenalina oscilaram em seu corpo. Os seus pensamentos eram claros. Se ele é mesmo um impostor contratado por meu irmão, o desgraçado se controlou bastante para não entregar a sua mentira!
— Thænael deve ter submetido o homem a um nível profundo de hipnose para sobrepor totalmente a sua verdadeira personalidade — conjecturou Akanni. — Para todos os efeitos, ele realmente acredita que é o dono bem-sucedido da petrolífera, por isso você não detectou a farsa em suas emoções.
A cada dia que passava, eu ficava mais espantada com o nível insano de poder que Thænael havia adquirido ao longo daqueles anos, e tinha cada vez menos esperança de que o meu verdadeiro irmão ainda podia ser resgatado das profundezas do ser moldado em torno de si.
— Mas, como Yuliya conseguiu fugir tão depressa do beco? Eu demorei menos de dois minutos para segui-la... Quando percebi, já estava cercada pelo bando de Randolph Delacroix, e não havia nenhum rastro da loira.
— O sobrado vizinho ao beco pertence a uma família chamada Krashokholmsky que, coincidentemente, está em viagem desde o começo do mês. Eu aproveitei a manhã para investigar mais a respeito, e não encontrei qualquer ligação desses moradores com a Novvy Kordon. Apesar disso, é possível que a propriedade esteja em nome de alguma outra empresa ligada a Constantinescu que não identifiquei... Ou que essa família esteja, na verdade, morta a uma hora dessas.
— Se a casa estava vazia, foi por lá que Yuliya escapou.
Akanni assentiu sem se virar. Estava apreciando a paisagem pelo seu lado da janela.
— Isso quer dizer que a vagabunda já tinha uma rota de fuga planejada quando me atraiu ao beco. Provavelmente, ela só esperou que a minha presença chamasse a atenção dos agentes do concílio e, quando percebeu que funcionou, saiu pela tangente.
Eu estava frustrada. Akanni percebeu.
— Eu não tenho como saber com precisão o que Thænael planejava ao usar a sua serva como isca, mas é bem óbvio que ele queria que você fosse capturada pelos homens de Archambault. Seja qual for o seu jogo, o nefilim precisa que você e todo o Concílio de Sangue estejam reunidos em um só lugar para a execução da próxima etapa.
Akanni e eu passamos mais dois dias em Moscou para encontrar os esconderijos que Thænael usava na cidade, mas as nossas buscas noturnas foram tão infrutíferas quanto todas as demais em outros lugares do mundo. Quando tudo mais falhou, tentamos espreitar os passos de Yuliya junto ao prédio de escritórios da Novvy Kordon, entretanto, descobrimos logo que a mulher não havia mais dado as caras na empresa desde a noite da emboscada no beco em Tverskoy.
Com o sumiço definitivo de Mikhailova, aproveitamos a nossa estadia para rondar os bares e prostíbulos de Moscou. Mesmo em meio aos bêbados e vagabundos da cidade, não obtivemos informações acerca de atividades incomuns nos bairros. Ninguém sabia nada sobre ataques recentes de animais a transeuntes, eviscerações, desmembramentos ou qualquer outra das atividades "esportivas" que tanto Costel quanto sua assistente costumavam praticar na calada da noite por onde quer que passavam.
Moscou nunca estivera tão tranquila e, em detrimento da certeza de Akanni a respeito disso, eu começava a duvidar que meu odioso meio-irmão havia realmente se instalado por ali recentemente.
No meu último dia em Moscou, logo no início da noite, Akanni me encontrou na sacada do hotel onde eu estava hospedada para relatar o que havia conseguido descobrir pela manhã, enquanto eu hibernava em meu quarto escuro. De onde estávamos, era possível enxergar as luzes noturnas da cidade através da janela à nossa frente, e um luar bastante estimulante surgia por entre as nuvens espessas do céu.
— Tenho certa dificuldade para me misturar entre os humanos dessa parte do mundo devido a minha aparência — e encarou o próprio reflexo pelo vidro. —, mas pela manhã, consegui registros da família Mikhailov em um cartório local próximo a Vostochnyy, a trinta quilômetros de onde estamos.
— Encontrou alguma pista que nos leve a Yuliya?
Ele não pareceu empolgado.
— Na verdade, os registros são bem antigos, e foi bem trabalhoso consegui-los — falou, enquanto eu esperava o "mas" da sua frase. — O casal Mikhail e Yelena tiveram outro filho além de Yuliya, um rapaz chamado Sergei. Descobri, por meio de vizinhos de onde eles moravam em Vostochnyy, que Sergei serviu como soldado raso na Primeira Guerra Mundial e jamais voltou para casa. Morreu em uma batalha perto da Hungria, em 1917. A filha caçula, Yuliya, fugiu de casa ainda jovem, e abandonou os pais para viver uma aventura amorosa com um homem mais velho. O casal faleceu pouco tempo depois, em um acidente de trem perto de Sviblovo, e a casa deles permaneceu vazia por várias décadas. Hoje, existe outra família ocupando o imóvel, porém, nada têm a ver com os Mikhailov.
— E o cara com quem a garota fugiu? Alguma pista sobre ele?
Um gesto negativo antes da resposta verbal:
— Os vizinhos só souberam informar que era um sujeito de uns vinte e cinco anos na época, e que ele era algum tipo de comerciante ilegal de entorpecentes.
Eu não possuía muitas informações acerca do antigo relacionamento entre Costel e a tal Yuliya, exceto que os dois haviam se encontrado e começado a se ajudar na década de 1930, pouco após o ritual em Donetsk que atrelou o corpo de meu meio-irmão ao espírito do nefilim desgarrado. Em algum momento da fuga dele da Ucrânia até a sua chegada à Rússia, o destino de ambos se cruzou, mas era difícil conjecturar porque os dois vieram a se tornar aliados, ou a razão pela qual a mulher era tão subserviente a Thænael.
Estaria ele manipulando a mente da vampira ou as ações da garota são por sua própria vontade?
Naquele momento, enquanto eu pensava nas razões de Yuliya, eu tive uma ideia e a compartilhei com Akanni, que me olhou entre o desconfiado e o arredio:
— Já está quase na hora do final do expediente no escritório da Novvy Kordon. Eu acho que sei uma maneira de atrairmos a atenção da assistente russa de meu meio-irmão.
Em meus anos de espionagem com o pessoal da Teia, eu tinha aprendido alguns truques sobre furtividade, e não tive problemas para atravessar a segurança do prédio ou atingir os níveis mais altos do escritório da petrolífera até a sala da presidência.
Uma vez no piso que havia visitado há alguns dias, eu nocauteei os guarda-costas que esperavam pela saída do chefe na antessala, atentos a possíveis ameaças ao executivo. Mandei que a secretária pessoal do falso Constantinescu entrasse na sala comigo em silêncio se queria permanecer com a cabeça sobre o pescoço, e nós duas surpreendemos o velho de cabelos brancos a botar o paletó, pronto a deixar o prédio após mais um dia de trabalho.
— Mas, o que significa...?
Empurrei a moça esquelética em direção à mesa do chefe e tranquei a porta atrás de nós. A alguns andares abaixo, já era possível ouvir o som dos socos e pontapés desferidos por Akanni nos demais seguranças do edifício, e eu curvei os lábios em um sorriso de satisfação.
Não vamos ser importunados por algum tempo, pensei, já sacando uma das minhas Berettas de dentro do coldre oculto em meu casaco.
— Senhorita Di Grassi. O que pensa que está fazendo?
Apontei a arma para a testa do velho e a engatilhei, a menos de dois metros de distância dele.
— Não se preocupe. Eu não quero nada com você. Eu só preciso que a sua secretária pegue o telefone e entre em contato com a sua funcionária, Yuliya Mikhailova. Diga que você a está convocando para uma reunião de emergência, sei lá! Invente uma boa desculpa para que ela saia de casa e venha até o escritório imediatamente.
O falso Theodor começou a suar pela têmpora. Estava visivelmente assustado. A sua voz soou gaguejante.
— E-Eu não tenho como contatar a senhorita Mikhailova... Eu...
Apertei o gatilho e o estampido do tiro ressoou agressivo no espaço fechado. O velho se encolheu inteiro. A secretária cobriu a cabeça, amedrontada. O buraco do projétil na poltrona presidencial do homem fumegava.
— Se tentar inventar outra desculpa, a próxima bala vai atravessar o seu crânio — ameacei. — Ligue para Mikhailova. Eu sei que pode encontrá-la agora, afinal... Ela é a sua assistente, não é?
Theodor parou de hesitar e ordenou que a secretária magricela apanhasse o telefone para discar os números que ele mesmo lhe indicou. Lágrimas escorriam dos olhos castanhos da garota e suas mãos tremiam enquanto ela levava o fone ao ouvido. Antes que ela abrisse a boca ou alguém atendesse do outro lado da linha, ordenei:
— Fale o mais naturalmente possível. Não quero que ela saiba o que vai encontrar aqui quando chegar.
O meu plano tinha uma alta probabilidade de falha, mas eu sabia que precisava arriscar. Os quatro dias em Moscou não haviam servido para nada além de me expor para o Concílio de Sangue, e eu não podia deixar o solo soviético sem que houvesse uma mínima chance de localizar Costel.
No terceiro toque, uma voz feminina grave atendeu do outro lado, e eu reconheci Yuliya. Mesmo mantendo certa distância da mesa, ainda apontando o cano da Beretta para a cabeça de Theodor, eu conseguia ouvir perfeitamente o que era falado pelo aparelho de telefone.
"Uma reunião a essa hora?", indagou a mulher do outro lado. "Por que não fui avisada dessa reunião antes?"
A secretária improvisou, me vendo mudar a mira da minha pistola para o espaço entre os seus olhos:
— O senhor Constantinescu decidiu de última hora e mandou que eu a contatasse, senhorita Mikhailova. Ele vai ficar até mais tarde esperando por você.
Ouviu-se algo semelhante um bufo do outro lado. Então, a resposta:
"Chego em trinta minutos".
O tempo estimado de chegada indicava que a mulher residia em um endereço nos arredores de Moscou. Ela estava mais perto do que Akanni e eu suspeitávamos.
É bem provável que ela ou seus comparsas estiveram espionando cada um de meus passos desde que pisei em Moscou, pensei, um tanto quanto desconfiada. Assim sendo, é possível que ela já saiba que a estou esperando, e que venha preparada.
No instante em que pensei aquilo, a secretária desligou o telefone e eu avancei em sua direção. Não sabia até que ponto a garota estava envolvida nas tramoias de meu meio-irmão, ou se ela sequer sabia quem era seu chefe na verdade. Por precaução, a atingi com um tapa, e a deixei inconsciente num canto da sala.
— Não precisava machucar a Anna. Ela é uma boa garota...
Ignorei a sua observação. Puxei a cadeira em frente à mesa e me sentei, ainda mantendo Theodor sob a mira da minha arma. Indiquei com o cano que ele tomasse o seu assento furado de bala. Ele obedeceu, sem questionar.
— Agora, enquanto a sua empregada não chega, nós vamos bater um papo. Tenho algumas perguntas a fazer, senhor Constantinescu.
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