Capítulo 29 - Refúgio em Edmonton

O MEU PEITO ARDIA em rancor, mas a realidade era que nem eu e nem Alexandra éramos capazes de enfrentar todo o Concílio de Sangue sozinhas. Em séculos de existência, e tendo se autoproclamado o patrono dos vampiros, Lucien Archambault tinha influência suficiente para mover exércitos contra a minha família e, por mais que eu já tivesse participado de batalhas épicas antes e, costumeiramente me garantisse mesmo contra todas as probabilidades negativas de vitória, daquela vez, eu estava pisando em um terreno desconhecido e não queria arriscar a segurança da minha filha.

O nosso retorno a Edimburgo precisou ser breve. Embora aquele fosse o meu lar por vários anos e eu me sentisse confortável no inverno das terras gélidas da Escócia, eu estava sendo obrigada a deixá-lo para trás por conta da ameaça tripla representada pelos clãs primordiais de Archambault, D'Aramitz e Quinn. O meu endereço não era mais segredo para o dito "rei dos vampiros" e, tão logo desembarcamos do avião que nos tirou da França, tratamos de pegar apenas o essencial em casa para voltarmos a cair na estrada.

Por conta das minhas atividades como empresária, eu não podia me dar ao luxo de desaparecer e me tornar incomunicável para os acionistas da petrolífera, mas por um tempo, dei poder de decisão a um de meus mais leais assistentes árabes a fim de que ele me representasse pessoalmente nas reuniões e conselhos deliberativos mais importantes.

Saeid Al-Madini era formado em Gestão Empresarial e me acompanhava à frente da Rux-Oil há pelo menos sete anos. Tinha um faro muito bom para os negócios e uma expertise impressionante no que concernia ao assunto petróleo e gás, os principais produtos que extraíamos e comercializávamos.

Uma semana após os eventos em Lyon, Alex e eu viajamos para Riad, a capital da Arábia Saudita onde ficava a sede da empresa, e eu a apresentei a Saeid como minha filha. Por ser uma vampira que envelhecia muito vagarosamente e por precisar me locomover apenas à noite a meus compromissos, poucos de meus empregados me viam pessoalmente, exceto em raras exceções emergenciais em que a minha presença física era indispensável. De um modo geral, eu costumava resolver tudo por telefone ou telegrama, e era Saeid quem mais fazia a ponte entre mim e meus funcionários.

— Eu vim até aqui pessoalmente porque vou precisar que me represente à frente dos negócios por alguns meses, Saeid. — Estávamos no interior do escritório presidencial da petrolífera aquela noite. Saeid estava sentado de frente para a minha escrivaninha, a me observar atento. Era um homem de um metro e sessenta e oito, cabelos pretos e bigode saliente acima dos lábios grossos. Tinha olhos grandes e uma voz anasalada que me soou trêmula quando me perguntou:

— Algum problema sério que precise resolver, senhorita Di Grassi?

Alex estivera impaciente ao longo de toda a viagem até a Arábia Saudita e permaneceu em pé, no lado oeste da sala. Observava os quadros expostos na parede com as imagens de algumas das nossas plataformas petrolíferas pelo mundo, mas seus pensamentos estavam distantes.

— Nada com que precise se preocupar. Vou deixar meu número de contato emergencial caso precise se comunicar comigo nesse período, mas evite fazê-lo. Preciso de um tempo para cuidar da minha família e estarei indisponível. Confio em você e sei que dará conta de cuidar de tudo por aqui até o meu retorno, Saeid.

Aproveitei que estava em Riad para fazer uma inspeção nas atividades de extração e mineração que estavam em andamento no Oriente Médio, mas, pouco depois, voltei para o aeroporto a fim de seguir para a Suíça. Há muito tempo, eu havia guardado itens de minha grande estima no cofre de um banco em Zurique, e precisava reavê-los antes de, enfim, desaparecer do mapa na companhia de Alex.

Ainda durante o voo, me ative à distração de minha filha a observar a paisagem noturna pela janela do jatinho. Estava com os cabelos presos num rabo-de-cavalo, usava uma blusa de gola alta, calça jeans e sapatos baixos. Não tinha prestado a atenção em nada que eu dissera nos últimos minutos sobre extração mineral e gasodutos, por isso, se voltou a mim desnorteada quando lhe fiz a seguinte pergunta:

— Ainda preocupada com o Reece ou está apenas pensativa sobre o que aconteceu em Strasbourg, há três anos?

Desde a fuga em Montbéliard, vínhamos evitando falar sobre o grande elefante branco na sala. Depois das revelações de Lucien Archambault acerca das suas atividades secretas ao lado de Costel e do massacre ao ninho de vampiros em Strasbourg, Alex tinha ficado amuada, e passava grande parte do tempo reflexiva. Não teve coragem de me fitar quando disse:

— O Reece vai ficar bem. Mason não vai permitir que machuquem o seu filho. O meu problema é com Strasbourg. Eu não consigo me lembrar de nada referente àquela noite... Tenho me esforçado para reavivar qualquer resquício ou flash de memória em minha mente, mas não tem dado certo. É como se tudo não passasse de uma ficção criada por Archambault...

Ela estava melancólica. Tentei ajudar.

— Talvez tenha sido. Lucien usaria de qualquer argumento para sacrificar você depois do que aconteceu no Condado Grealish. Ele descobriu o quanto você é poderosa e passou a vê-la como uma ameaça ao seu clube de vampiros.

Alex emitiu um muxoxo. Entrelaçou os dedos das mãos e assumiu postura alquebrada.

— Você viu o estado daquele tal de Antoine, mãe. Eu reconheci aquelas marcas permanentes em seu rosto... aquilo foi feito por um vircolac. Eu sei disso.

Ficamos em silêncio por um minuto, mas em seguida, senti as emoções de Alex se alterando pela nossa conexão mental. Ela estava com remorso.

— Strasbourg não foi a primeira ou a última de nossas investidas a ninhos vampirescos, mãe. O tio Costel e eu saímos em missão várias outras vezes depois que começaram os meus treinos de luta e defesa pessoal. Mesmo quando não estava transformada em vircolac, eu o acompanhei em outros assaltos. Eu o ajudei a matar uma porção de vampiros. Eu me lembro de tudo.

Aquela era uma revelação dura de absorver, mas sabendo a natureza da relação que Costel mantinha com a menina ao longo dos anos, não era de se admirar que ele a estivesse preparando para se tornar uma arma mortífera. A sua melhor e mais perfeita arma mortífera.

— No começo, ele me dizia que era um teste para as minhas recém-descobertas habilidades vampíricas. Eu ainda me lembrava das brincadeiras recentes no jardim do château com a Danielle, das cantigas que o papá cantava para me ninar mesmo quando eu já era grandinha, me lembrava do quarto de brinquedos e das bonecas que o tio Miguel Harone havia me comprado... Eu era uma criança boba e inocente em Avignon e, de repente, estava caçando e matando vampiros como treinamento para uma guerra que eu nem entendia direito...

Lágrimas de sangue escorreram dos olhos celestes de Alex. Aquilo me comoveu mais do que eu queria admitir.

— Costel... Ou a coisa que o controlava, me usava para atacar de surpresa os ninhos que encontrávamos juntos, depois, ele aparecia para saciar a sua sede do sangue deles. Sugava-os um a um com um sorriso na cara. Gostava de vê-los implorar, suplicar por suas vidas, então, os matava devagar. Depois de um tempo, ele me explicou a respeito das propriedades existentes no sangue vampiro. Dizia que era um verdadeiro "néctar dos deuses" e que se sentia ainda mais poderoso conforme o consumia. Me fez experimentar também e, quanto mais eu bebia, mais confiante e mais forte eu me tornava. Era como uma droga muito eficaz e muito viciante.

Alex tinha pouco mais de vinte anos biológicos, mas já era quase mais forte do que eu com os meus cento e tantos anos. O consumo de sangue vampiro explicava a razão de ela já ser tão poderosa sendo tão jovem, e eu devia aquilo tudo ao demônio que a estivera manipulando por uma década, transformando vagarosamente a minha filha em um monstro vil e desalmado.

Era difícil consolá-la após aquele relato tão intenso, mas segurei-lhe o dorso da mão disposta a tentar.

— Você era uma criança sendo persuadida por uma criatura maligna com milênios de experiência, Alex. Você não pode se culpar por tudo que aconteceu no período em que viveu com ele. Thænael a estava usando em pró de seu plano maquiavélico de vencer as forças celestes. Você era um peão em sua mão. A morte de todas aquelas pessoas não foi sua culpa.

— Então por que eu sinto que foi? — ela enxugou a linha de sangue que descia por seu rosto formoso. — Thænael estava usando a compulsão de Costel para me manipular feito um fantoche, mas eu ainda posso me lembrar do sangue, das lacerações, dos gritos... Eu me sentia satisfeita com a barbárie, mãe. Era eu rindo enquanto sentia as vidas daqueles vampiros se esvaindo pelas minhas presas... eu jamais vou conseguir esquecer o que eu fiz. Jamais.

Algumas horas depois, já estávamos a bordo do carro alugado que eu havia conseguido em Zurique para o nosso traslado do banco até o hotel, quando Alex observou a maleta que eu misteriosamente havia deixado no assento traseiro do carro. Ela ainda aparentava languidez por conta do relato feito no voo até a Suíça, mas franziu o nariz de uma maneira quase divertida.

— O que tem na maleta?

Autorizei que ela pegasse o objeto e o abrisse. Seu rosto se iluminou quando enxergou o conteúdo.

— Duas Berettas M1923 de 9mm. Por que as estava guardando em um cofre, mãe?

Sorri levemente enquanto conduzia o carro de volta ao hotel, e lhe respondi:

— Essas pistolas pertenciam ao seu pai, Alex. Elas estiveram comigo em momentos importantes da minha vida e me salvaram a pele mais vezes que consigo me lembrar. Tenho grande estima por essas belezas e, com Lucien Archambault e o seu tio Costel à nossa espreita, creio que mais cedo ou mais tarde eu vou precisar fazer uso delas mais uma vez.

Em 1968, o mundo estava sendo assolado pela iminência de uma guerra atômica entre os Estados Unidos e a União Soviética, mas enquanto a Guerra Fria se tornava cada dia mais "quente", Alex e eu resolvemos ignorar as notícias sobre o fim do mundo para nos mudarmos para um continente fora da jurisdição de Lucien Archambault e o seu Concílio de Sangue: a América do Norte.

Naquele ano, o Canadá estava passando por transformações políticas e sociais profundas, começando pelas revoltas estudantis que ocorriam em várias universidades do país em protesto contra a Guerra do Vietnã, em defesa dos direitos civis e por reformas educacionais.

Outro assunto que andava movimentando bastante a opinião pública canadense era a alteração na legislação proposta por Pierre Trudeau — o primeiro-ministro eleito naquele ano — que introduziu uma série de políticas progressistas em seu governo, incluindo a legalização do aborto, a descriminalização da homossexualidade, a aprovação da Lei do Divórcio e a implementação de políticas multiculturais.

Nós morávamos agora em uma região montanhosa em Edmonton, a mais de três mil e quinhentos quilômetros da capital do país, Ottawa e, embora fossemos estrangeiras em um país norte-americano, tínhamos muita familiaridade com os dois idiomas falados ali. O Canadá havia sido uma colônia francesa até meados do século XVIII e, atualmente pertencia à Coroa Britânica, o que a tornava uma nação tradicionalmente familiar aos hábitos e costumes da cultura europeia. Por conta disso, não tivemos qualquer problema de adaptação territorial.

Enquanto o novo governo implementava mudanças sociais de grande impacto para o país, minha filha e eu estávamos nos mantendo distantes dos grandes conflitos, permanecendo discretas e praticamente invisíveis em nosso exílio. Morávamos perto da floresta, longe dos grandes predadores que haviam nos espreitado recentemente e fora de seus radares.

A vida no Canadá era bem simples a maior parte do tempo. Residíamos em um chalé confortável à beira de um rio que jazia congelado a maior parte das estações frias, vivíamos da caça de animais selvagens que rondavam o território, evitávamos nos misturar com os vizinhos e só nos deslocávamos para a cidade em raras ocasiões; em especial, para comprar mantimentos ou para que eu me comunicasse com Saeid, em Riad.

A nossa dieta de sangue animal não era a mais adequada e, embora tivesse nos bastado ao longo dos primeiros meses de nossa mudança, começou a nos enfraquecer em um período curto de tempo. Tínhamos nos acostumado ao sangue humano congelado desde a compra dos hemocentros na Europa, e a falta da nossa principal fonte de poder estava mexendo com nossos instintos mais básicos.

— Precisamos voltar a consumir sangue, Alex... não podemos nos dar ao luxo de enfraquecer. Temos que nos manter em alerta, sempre.

O Canadá era rico em sua própria mitologia que contava relatos sobre avistamentos de yetis, sasquatches e wendigos, seres sobrenaturais, sobretudo, ligados à natureza abundante do lugar. Logo, se Alex e eu voltássemos a nossos antigos hábitos predadores, poucos seriam aqueles que suspeitariam de ataque vampiro, tendo tantas outras ofertas de mitos na região.

Apesar de ter essa ciência, eu não queria que a minha filha voltasse a desprezar a vida humana como em seu período na Transilvânia, quando ela e Costel saíam para caçar indiscriminadamente todo tipo de vítima noturna; de colegiais virginais a idosos passeando com seus cães na calçada. Para evitar que começássemos uma matança na vizinhança do nosso novo lar, eu arranjei uma forma de receber em casa o alimento que nos sustentaria mensalmente, e despendi um valor polpudo para negociar um atendimento domiciliar de um banco de sangue do centro de Edmonton em nosso chalé.

Para todos os efeitos, a minha filha Alex sofria de uma rara doença sanguínea e precisava de transfusões sazonais para se manter saudável. A fim de tornar a farsa crível aos enfermeiros que nos visitavam, eu comprei um equipamento de hemodiálise e uma cama hospitalar para instalar em um dos quartos, e comecei a pedir estoques extras de sangue de uma mesma tipagem, para não levantar suspeitas.

Por um tempo, o plano funcionou perfeitamente, e tínhamos alimento suficiente na geladeira por temporadas inteiras, o que garantia que não precisássemos caçar ou espreitar moradores canadenses em busca de sustento. Éramos como ursos pardos estocando comida antes da hibernação.

Em 1969, os Estados Unidos — país vizinho de onde estávamos alocadas — estava em um conflito geopolítico com a URSS e, por mais absurdo que aquilo pudesse parecer, naquele período, a disputa territorial se estendeu para fora do planeta. Mais precisamente, até a Lua.

Em julho daquele ano, todos os olhos do planeta Terra se voltaram para as imagens televisivas que mostraram com grande destaque a chegada da Apollo 11 à Lua e dos primeiros passos do homem em solo lunar. Parecia mesmo algo inimaginável, mas graças a uma disputa entre países, a raça humana havia conseguido vencer os limites do espaço, e enviado pessoas a um ponto fora do planeta, algo que parecia inconcebível até mesmo para o mais crente escritor de ficção científica.

Semanas após os dois astronautas norte-americanos, Neil Armstrong e Buzz Aldrin, terem alunissado seu módulo espacial diante da audiência mundial, eu recebi um telegrama direto de Riad com o nome de Saeid no remetente. Ele informava que a minha presença estava sendo requisitada em Moscou para dali a dois dias, e que o assunto a ser tratado era de meu mais profundo interesse.

Enquanto lia e relia a missiva enviada por meu assistente, comentei sobre o tal convite com Alex, que estalou os olhos ao identificar o endereço do encontro no telegrama.

— É onde fica o escritório da Novvy Kordon. Só pode ser o tio Costel tentando entrar em contato. É a nossa chance de, enfim, botarmos as mãos nele!

Eu não partilhava da mesma esperança da garota.

— É uma cilada com certeza. De alguma forma, ele sabe que nós duas sumimos do mapa e está tentando nos encontrar usando meu contato com Saeid em Riad. Talvez, quando chegarmos lá, ele dê um jeito de nos emboscar. Não quero arriscar.

Ela tentou argumentar:

— Estamos há quase quatro anos esperando uma pista que seja do tio Costel e agora estamos praticamente sendo chamadas para a casa dele. Não podemos desperdiçar essa chance, mãe.

— E não vamos — respondi, a deixando confusa. — Armadilha ou não, eu vou comparecer a esse encontro, mas você não vai tirar a sua bunda daqui de casa.

— O quê? — O ar rebelde que há anos não via em seu rosto apareceu enquanto Alex se levantava à minha frente. — Você não vai me deixar de fora enquanto confronta um nefilim. Ele é muito poderoso para que o enfrente sozinha. Você vai precisar da minha ajuda. Eu tenho que ir junto.

— Não, Alex — insisti. — Costel está esperando apenas uma chance para tê-la novamente sob o seu domínio e eu não posso permitir que ele consiga. Não sabemos o que ele andou fazendo em todos esses anos e nem com quem se aliou, por isso, é melhor que fique aqui enquanto eu investigo.

Ela continuava irritada com a ideia de não viajar comigo, mas eu a confortei.

— Vou levar as duas Berettas comigo e estarei acompanhada de guarda-costas durante a viagem. Eu preciso terminar com essa história de uma vez por todas, Alex, e não vou descansar enquanto isso não acontecer.

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