Capítulo 25 - O clã de Archambault

OS DIÁRIOS DE DUMITRI

24 de outubro, 1809.

O castelo em Pleven era uma antiga fortificação medieval que havia servido como abrigo para os soldados e membros da realeza búlgara em tempos idos. Possuía torres pontiagudas de arcos ogivais, paredes de pedra maciça, portões altos de metal fundido e um fosso, que impedia a invasão de inimigos pela dianteira.

No primeiro dia que visitei o local, fiquei deveras impressionado com a sua grandiosidade. Era como se coubesse em seu espaço físico dois castelos com o mesmo tamanho daquele em que eu residia em Varna, a mais de trezentos quilômetros dali.

O indivíduo que se apresentara a mim como Mael D'Aramitz desvelava-se enigmático, proferindo poucas palavras ao longo da nossa jornada. A maior parte do tempo, desviava o olhar para além das janelas do coche, ignorando minhas indagações quando dirigidas a ele.

Tão logo chegamos ao castelo, seguiu à frente alegando que precisava falar a sós com o proprietário, e deixou-me na companhia dos dois outros vampiros a quem eu havia agredido mais cedo. Os ossos do braço daquele que eu havia partido já estava quase totalmente recuperado, e eu sorri, quando ele me direcionou um olhar enviesado, carregado de ódio.

Teria prazer em arrancá-lo do corpo em uma próxima oportunidade.

O senhor D'Aramitz retornou algum tempo depois para me conduzir, desta vez, sozinho até o terceiro piso elevado do castelo. Subimos os lances de escadas que nos conduziram a um salão de recepção, passando por um corredor estreito e uma galeria de armas medievais, e só então adentramos o mesmo recinto em que ele nos aguardava.

À primeira vista, Lucien Archambault não possuía uma aparência impressionante ou amedrontadora, mas era um homem de notável beleza física, além de possuir um porte elegante. Em sua fisionomia, perdurava a juventude que seus dons vampíricos haviam perpetuado no tempo, além de revelar-se em gestos e palavras um cavalheiro extremamente refinado.

Na ocasião de nosso primeiro encontro, ele estava acompanhado de uma moça irlandesa de exótica formosura a quem se apresentou como Adela, e eu fui impelido a cumprimentá-la gentilmente.

Enquanto eu me sentava à mesa com os três vampiros, tratei de exprimir todas as curiosidades que eu havia acumulado acerca de nossa raça ao longo da minha solitária vida. Eu ansiava saber da sua origem, dos seus costumes e da sua longevidade, e os três me recompensaram sanando cada uma das minhas dúvidas, me abarcando de um saber ímpar que há muito eu almejava.

Em contrapartida, Lucien, Mael e Adela quiseram saber um pouco mais sobre a minha infância na Valáquia, a minha juventude nas ilhas gregas e a minha vida adulta na Itália. Indagaram-me a respeito de outros de nossa raça que eu havia conhecido durante a minha jornada, e o que tínhamos feito juntos. Frustraram-se ao saber que a única vampira com quem eu havia me relacionado naquele período era a minha própria esposa, Valentina, e foi impossível não perceber a nuvem lúgubre que tomou os três pares de olhos com tal constatação.

Assim como eu, eles também esperavam obter respostas sobre quem tinha sido o primeiro de nossa espécie, a pedra fundamental de nossa linhagem, e onde ele ou ela estaria em todos aqueles anos.

30 de outubro, 1809.

Mudei-me temporariamente para o castelo em Pleven e escrevo essas mal traçadas linhas dos meus aposentos, no quarto piso.

Tenho desfrutado da companhia de meus pares durante as noites geladas da Bulgária e absorvido grande parte do conhecimento que os três membros do clã Archambault têm a me oferecer.

Diferentemente de mim, eles têm desfrutado de sua existência eterna em agradável convívio há um longo tempo e, segundo relatam em seus discursos ébrios, já se depararam com dezenas de vampiros ao redor do mundo, nem todos amigáveis.

Lucien é o mais experiente de todos. Nascido em uma vila agrária na região de Montbéliard, era um simples peão na fazenda de trigo de seu pai quando, aos vinte e cinco anos de idade, teve seu primeiro encontro com um vampiro. Mais especificamente, uma vampira.

Naquela época, o jovem camponês desconhecia a natureza dessa espécie ou o motivo pelo qual ela o havia mordido no pescoço. Porém, na ânsia de preservar sua própria vida, enquanto seu sangue esvaía-se de seu corpo agonizante, ele conseguiu atingi-la fatalmente com um instrumento de madeira, e a mulher foi destruída antes mesmo que ele pudesse desvendar sua origem.

Quem ela era? De onde vinha? A quem era filiada?

Nenhuma daquelas respostas pode ser obtida do cadáver que se desfez no dia seguinte ao menor sinal da radiação solar. Lucien sobreviveu, apesar de ter o sangue contaminado pelo da mulher e, dias depois, ele também descobriu que tinha sido transformado, e que teria a vida eterna inteira pela frente, como o resto de nós.

10 de junho, 1812.

Eu fui integrado ao Concílio de Sangue do clã Archambault e, a cada temporada, visito Pleven para a nossa reunião anual. Hoje está uma noite bastante enevoada do lado de fora da janela onde escrevo esse registro, e o castelo está deveras agitado por conta da visita dos clãs Romanoff, da Rússia, os Strauss da República Tcheca, os Gonçalves de Portugal e os Santoro da Itália.

Na noite passada, me vi bastante entretido em uma conversa reveladora com o conde Augusto Santoro por conta de nosso passado singular na península itálica. O vampiro pertence a uma das famílias mais tradicionais de Florença e, curiosamente, sem que eu soubesse, há não muito tempo, já havia feito negócios com os Montanaro, sobretudo, no que concernia à compra de cereais de uma das minhas fazendas.

Ao mencionar que eu tinha sido casado com Valentina Montanaro e que eu era genro de Dom Giovanni, o homem revelou-me que, num passado não muito distante, já havia jogado cartas em um clube aristocrata com meu falecido sogro, e que o velho marquês era ótimo no blefe.

Contou-me também que fazia parte da lista de convidados para a cerimônia religiosa do meu matrimônio, chamado especialmente por Giovanni, e que só havia recusado a convocação devido a sua total aversão a símbolos ecumênicos.

Segundo ele, crucifixos, incenso e água benta eram-lhe totalmente nocivos, bem como outros itens sagrados da Igreja Católica e Ortodoxa. Sem que eu mencionasse a razão de minha oportuna resistência àqueles mesmos objetos sacros, Augusto ficou muito intrigado em saber como eu era capaz de tal feito, sendo também uma criatura da noite bebedora de sangue.

19 de novembro, 1815.

Com a queda de Napoleão, Victor Manuel II nomeou Camillo Benso Di Cavour presidente do Conselho de Ministros na Itália. Artífice da unificação, Cavour conseguiu que o reino sardo-piemontês se transformasse em Reino da Itália, de que somente Roma e Veneza ficaram excluídas.

Diante desse panorama, eu decidi retornar à península temporariamente, a fim de averiguar se os bons serviços de Marcelo Bonaventura à frente das minhas empresas ainda eram desempenhados com diligência, uma vez que o mesmo se aproximava da sua aposentadoria. Colaborei, então, na seleção do seu sucessor no cargo de advogado principal do escritório responsável por representar meus interesses.

Dentre os diversos nomes cogitados, a escolha de Nico Casavette para suceder a Marcelo ressoava de forma inequívoca como a mais certa. Apesar de jovem, esse homem possuía a experiência e a perspicácia necessária para assumir a gestão de meus negócios na terra de César. Parti, assim, de volta à Bulgária convicto de que as coisas continuariam sendo bem geridas por lá.

25 de dezembro, 1816.

Não há qualquer registro histórico da passagem de outros vampiros pela Europa antes da fatídica ocasião em que Lucien Archambault foi atacado e mordido pela fêmea vampira em Montbéliard no ano de 1735, o que amplia ainda mais o véu de mistério que envolve a nossa origem vampírica.

Embora tal afirmação não possuísse fundamento verídico, meu belo e arrogante anfitrião considera-se o primogênito de nossa estirpe e, portanto, aquele que deve liderar-nos rumo a um futuro de união e fortalecimento, visando a perpetuação de nossa espécie.

Mael demonstra uma lealdade inabalável para com seu amigo francês, seguindo cada uma de suas ordens sem hesitar nem por um instante. Os dois criaram uma história que remonta ao século anterior, e nada parece capaz de abalar a confiança mútua que nutrem um pelo outro.

O elo mais frágil dessa corrente é a mulher ruiva que os acompanha através dos tempos, a deslumbrante e, ao mesmo tempo detestável, Adela Quinn. Durante nossas reuniões, ela é a única ousada o suficiente para desafiar abertamente as diretrizes de Archambault, chegando a se confrontar com ele em mais de uma ocasião.

Não tenho intenção de servir eternamente ao clã, e caso eu venha a assumir o comando deste concílio, contra os meus próprios desejos, minha mais valiosa aliada será a irlandesa de cabelos flamejantes, a quem tanto menosprezo.

11 de julho, 1818.

Após uma minuciosa análise das diversas famílias e clãs arregimentados por Archambault ao longo do tempo, deparei-me com a revelação de que sou o único ser nascido vampiro. Embora muitos deles tenham se reproduzido entre si, transferindo a sua maldição vampírica através de seu próprio sangue de um para o outro, a maioria dos anciãos desconhece a origem de quem os infectou.

Em uma conversa com Hugo Strauss, o patriarca do clã tcheco, ele revelou-me ter sido mordido no pescoço por um estranho que o atacou furtivamente durante a noite, no recôndito do quintal de sua morada em Praga, onde residia com seus genitores. Segundo seu relato fantasioso, ele saiu pela porta em busca do motivo dos latidos insistentes de seu cão nos fundos da residência, porém, quando deparou-se com o animal, este encontrava-se despedaçado até os ossos, quase que completamente devorado.

Armado com uma carabina, Hugo empreendeu esforços na tentativa de localizar pela propriedade a criatura responsável pela morte brutal de seu fiel amigo canino. Foi então que se tornou vítima de uma entidade que ele descreveu como "um monstro de orelhas pontiagudas, olhos vermelhos e dentes semelhantes aos de um rato".

A descrição feita por Strauss coadunava-se com minhas pesquisas sobre os strigois, criaturas psíquicas que se alimentavam de sangue e energia mental. Segundo o mito do Leste Europeu, os predecessores dos morois eram espíritos malignos que perambulavam pela noite, sugando suas vítimas para se nutrir, porém, eram incapazes de transmitir sua maldição por meio de uma mordida.

Portanto, Strauss não poderia ter sido vampirizado por um strigoi. Contudo, se o que ele pensava ter presenciado naquela noite não era um strigoi, então o que seria?

Busquei informações sobre se, em sua transformação, o tcheco adquiria quaisquer características físicas da criatura que o mordera, mas ele negou veementemente. Estava completamente alheio à existência das distintas classes vampíricas que eu havia estudado com afinco desde sempre. Por questão de autopreservação, decidi manter em sigilo minha descoberta acerca de ser o único nascido vampiro entre os clãs.

21 de abril, 1820.

O coche que transportava a honorável senhorita Adela Quinn acaba de partir dos domínios de meu castelo em Varna, contudo, ainda não assimilei por completo as questões suscitadas em nosso recente diálogo.

Com o intuito de persuadir-me a permanecer ao seu lado em uma eventual (e improvável) dissensão do clã Archambault, essa mulher de personalidade perversa narrou-me minuciosamente sua trajetória desde a condição de herdeira milionária em Dublin até o dia em que cruzou o caminho de Lucien e Mael em uma taverna na Grã-Bretanha, em 1783.

Seduzida pela perspectiva de uma juventude eterna e arrebatada pelo estilo de vida dissoluto que os dois vampiros já desfrutavam àquela época, ela se entregou completamente a ambos, satisfazendo-os em todos os aspectos concebíveis e inimagináveis. Deixou-se transformar por eles, usou da riqueza de seu pai, um poderoso comerciante irlandês, para financiar as viagens e orgias que os três promoviam pela Europa, e foi amante de ambos durante um bom tempo, dividindo a cama com os dois juntos, inúmeras vezes

Ao chegar à minha residência, Adela exibia um semblante sério, aparentando temer pela própria existência. Repetidas vezes, enfatizava a necessidade de se libertar das amarras de Lucien, afirmando que ele havia se tornado obcecado pelo poder que lhe fora concedido e que ela já não suportava mais a situação.

Segundo as artimanhas manipuladoras da irlandesa, havia algo em mim que contrapunha à visão restrita que Archambault nutria para o futuro dos vampiros, razão pela qual ela havia me procurado clandestinamente. Para Quinn, o segredo da perpetuação de nossa espécie não consistia em unificar todos os clãs do mundo, mas sim em aniquilar os rivais, um a um, começando pelos mais frágeis e ascendendo à cúpula da cadeia alimentar.

Quando inquiri a mulher acerca dos adversários aos quais ela fazia menção, ela prontamente escolheu o silêncio como resposta, recusando-se a oferecer-me qualquer informação adicional além daquela já exposta.

Passamos o restante do tempo no interior do meu escritório falando sobre os meus estudos a respeito das espécies vampiras, misticismo e magia e, por alguma razão, o tema linhagens místicas de sangue a interessou particularmente.

Eis que, instantes antes de deixar o recinto de minha fortaleza, a senhora Quinn insinuou que passaria a me visitar com maior frequência, uma vez que vislumbrava em minha pessoa um aliado, mencionando, inclusive, que retomaríamos nossas conversas acerca da queda iminente de Archambault, da magia arcana e, sobretudo, da herança sanguínea.

Uma inquietação tomou conta de mim, entrelaçada a uma ansiedade singular em antecipação à sua próxima visita.

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