Capítulo 24 - O Concílio de Sangue

O ESCRITÓRIO DE LUCIEN era um local de trabalho bastante elegante equipado ao centro com uma mesa de mogno maciço, cadeiras de couro e estantes com documentos e objetos de valor ao nosso redor. A biblioteca que dividia espaço com o ambiente era repleta de livros antigos nas prateleiras, obras de arte nas paredes e poltronas confortáveis dispostas ao redor de uma lareira majestosa. Vampiros não sentiam frio, mas havia algo de confortável no crepitar da lenha enquanto ela queimava.

— Como sabia de antemão da sua visita, fiz questão de mandar que meu mordomo, Michel, providenciasse em minha adega esse vinho tinto Fetească Neagră. Espero que esteja à altura do seu paladar refinado, Alina.

Um homem magro de cabelos rareando na cabeça que trajava um uniforme branco estava encurvado em minha direção enquanto me servia o vinho em uma taça de cristal. Ele fez um meneio antes de se dirigir ao balcão onde depositou a garrafa e, pouco depois, se retirou discretamente da sala.

— Esse vinho tinto possui notas frutadas, aromas intensos e taninos suaves. A variedade de uva autóctone com que ele é fabricado é amplamente cultivada nas regiões vinícolas da Romênia. Acredito que a Valáquia tenha produzido muito dela em seu tempo, não é?

Archambault estava sentado em sua poltrona aveludada diante de mim. Às suas costas, havia um espaço aberto propositalmente nas prateleiras de livros do escritório onde se via um brasão entalhado em madeira e aço com motivos medievais, e o nome da sua família em destaque na parte inferior. Ele parecia ter muito orgulho da sua própria origem e, para o meu azar, conhecia demais da minha.

— O meu pai cultivava esse tipo de uva em nossa fazenda. Ela é bem emblemática na região de onde eu vim. Fico feliz que tenha se dado ao trabalho de pesquisar tanto sobre mim antes de me convidar à sua casa, senhor Archambault.

Beberiquei o vinho enquanto o observava da minha cadeira, e ele tinha mesmo "sabor de casa". Por um momento, era como se eu estivesse experimentando as amostras que Grigore me dava na vinícola, me explicando detalhes como notas, aroma e harmonização, há mais de um século. Parecia uma viagem no tempo.

— Pode me chamar apenas de Lucien, Alina. Deixemos as formalidades para os serviçais, oui?

Pousei a taça sobre a mesa e corri os olhos mais uma vez pelo recinto. Pela aparência de móveis e a textura das paredes, era difícil acreditar que aquela mansão tivesse sido erguida antes do início do século, o que me levou a perguntar, direta:

— Há quanto tempo você lidera esse concílio, Lucien? Por que os nossos caminhos nunca se cruzaram antes?

Os olhos castanho-escuro miraram o conteúdo dentro da sua taça pouco antes de ele pousá-la sobre o tampo de mogno. Reclinou as costas enquanto me respondia:

— Eu fundei o Concílio há muito tempo, quase em outra vida, eu diria — seu olhar ficou perdido por alguns segundos, como se ele estivesse saboreando uma lembrança há muito não remexida. — Naquela época, Montbéliard ainda nem fazia parte do território francês. O condado foi vendido ao Ducado de Württemberg em meados do século XV pelo Sacro Império Romano, e permaneceu sob seu poder por um longo período. Toda a região que se pode ver ao redor da minha residência permaneceu sob o domínio dos alemães durante quase todo o século XVIII. Só em 1793 é que a França conseguiu retomar as suas terras. Toda a minha família nasceu e se criou aqui. Construí essa casa para organizar as reuniões do Concílio, mas também para que eu me lembrasse das minhas raízes.

O sotaque, os trejeitos e o porte elegante denotavam que ele era mesmo um cidadão francês em essência.

— Desde o final do século XVIII que eu venho reunindo nossos irmãos vampiros pelo mundo. Eu os instruo. Os educo. Os lidero. Ao longo dos anos, foram raros os de nossa espécie que escaparam do meu ou do radar de meus dois associados. Você pode se considerar uma exceção, mon cher.

Houve um instante de tensão entre nós dois. Ele estava tentando me decifrar e eu a ele.

— Então é para isso que serve o seu "clubinho de vampiros"? Controle. Você gosta de enfileirar os de nossa espécie para tê-los sob seu domínio, sob seu comando?

Ele não reagiu.

— Você e a sua filha entraram em meu radar após a sua visita fortuita ao Condado Grealish — Lucien me observou aguardando a minha reação à sua informação. Fiquei impassível. — Certamente, o senhor Mason comentou que nossas comunidades possuem um acordo de mútuo benefício junto aos territórios europeus. Conheci Mason em 1887, durante uma das infames disputas territoriais entre vampiros e lobisomens. Naquela época, eu conhecia pouco sobre a natureza selvagem dos licantropos, e mandei que meus homens os atacassem com toda fúria.

— Um dos filhos de Mason me contou toda a história — o interrompi. — Você mandou que seus vampiros matassem a esposa humana de Grealish, e o seu filho recém-nascido só sobreviveu por um milagre.

O rosto gélido não demonstrou remorso e ele prosseguiu:

— Foram os meus encontros com Mason e a nossa posterior aliança que me fizeram entender o que, de fato, deveria ter sido o Concílio de Sangue desde o início. Os lobisomens andavam, caçavam e viviam em bando constantemente. Eles eram mais fortes em sua união. Quanto aos vampiros, sempre foi da nossa natureza a solidão, a soturnez... não fomos feitos para andar acompanhados. A nossa maldição nos obrigava a caminharmos sós, em busca de satisfação eterna. Atrás de uma saciedade que nunca era completa. Por isso, se quiséssemos mesmo sobreviver em um mundo cada vez mais competitivo, nós precisávamos evoluir. E para isso, era necessário que nos uníssemos em uma grande e fortificada irmandade.

— Sei — balbuciei. — Agora entra a parte em que você me convida a fazer parte da sua grande família, estou certa?

Lucien me fitou por um tempo até que aquilo se tornasse constrangedor. Agarrou a taça com o Fetească Neagră, tomou o que restava do líquido e me respondeu:

— Quando os soldados de Grealish começaram a alardear por aí a respeito de uma vampira sem clã e de como ela e a filha haviam derrotado um grupo experiente de lycans em seu próprio território, eu confesso que a notícia aguçou a minha curiosidade. Há muito tempo não tínhamos informações de vampiros desgarrados na Europa. Eu precisava saber mais sobre você, sobre Alexandra. Foi aí que botei meus homens para investigar a sua vida pregressa.

— E fez isso muito antes de me chamar aqui. Precaução ou medo, Lucien?

— Não pode me culpar por eu ser cauteloso, mon chérie!

Ele sorriu, mas eu não o imitei.

— Muitos dos descendentes ainda vivos dos Grigorescu residem na Romênia até hoje. Não deve ter sido difícil saber um pouco mais sobre mim por lá, embora faça mais de cem anos que deixei a região da Valáquia. Você sabe sobre meu pai, sabe da fazenda de uvas, da produção de vinho... O que mais descobriu a meu respeito, Lucien?

Ele entrelaçou os dedos pouco antes de responder:

— É incrível a quantidade de informações que podemos desenterrar sobre o passado de alguém empregando um bom punhado de dinheiro, Alina.

— Se pretende fazer algum tipo de chantagem só para que eu entre no seu clube das trevas, perdeu o seu tempo e o seu valoroso dinheiro. Posso não ter acumulado tanta riqueza quanto você ao longo dos anos, mas também sou bastante influente, e posso brigar de igual para igual em qualquer campo que quiser. Só escolher o dia e a hora.

Lucien espalmou a mão e aplicou um tapa no mogno que sacudiu a mesa e derrubou a taça de cristal no chão. Fios de cabelos negros escaparam do penteado meticuloso no alto da sua cabeça e caíram diante de seu rosto. Ele ostentava um sorriso assustador quando disse:

— Você é ainda mais interessante do que haviam me dito, Alina da Valáquia. Eu adorei toda essa sua arrogância e essa sua impetuosidade. Eu quase posso dizer que fiquei excitado em te ouvir esbravejar!

A máscara do boneco de gelo impenetrável havia caído, enfim. A sua breve demonstração de descontrole emocional tinha me deixado em alerta quanto aos reais motivos da minha presença no interior daquele ninho de vampiros. Comecei a buscar pela minha conexão psíquica com Alex. Ela precisava estar em alerta caso tivéssemos que providenciar uma saída estratégica.

Vamos lá, Alex. Onde está você, filha? Responda!

No momento seguinte, o mordomo Michel bateu à porta, atraído pelo som do estilhaçar do vidro no chão.

— Providencie uma outra taça, Michel — disse prontamente o homem sentado em sua poltrona ao velho sob o batente da porta. — A senhorita Alina me empolgou mais do que o esperado e eu acabei quebrando o copo.

Oui, monsieur Archambault, certamente. O senhor pediu que eu o informasse sobre a chegada do senhor D'Aramitz à mansão. Ele acaba de chegar.

Michel se encaminhou para onde jaziam os cacos de vidro do que antes era uma taça, mas Lucien lhe deu outra ordem. Se levantou de seu assento, ajeitou os cabelos com as mãos e tocou o ombro do mordomo.

— Esqueça a taça, Michel. Mande os empregados organizarem a sala de reuniões, e peça cordialmente para que Mael me espere lá, sim?

O homem magro assentiu.

— Mais alguma ordem, monsieur?

— Ah, sim. Vá até os meus aposentos e peça para que Cassandra desça até aqui. Eu quero apresentar uma pessoa a ela.

Michel desapareceu pela porta e, em seguida, Lucien andou em direção a uma das prateleiras de seu acervo de livros antigos. Voltou com um envelope em mãos e o depositou sobre a mesa, ao meu alcance. Sentou-se na beirada do móvel e ficou a me encarar, certo de que havia aguçado a minha curiosidade.

— Eu não a chamei aqui simplesmente para convidá-la a fazer parte do meu concílio. Eu a trouxe até o meu lar por causa do homem que você pode ver nessas fotos, Alina. Creio que o conheça bem, n'est-ce pas[1] ?

Abri o envelope em cor parda um tanto quanto apreensiva. Em seu interior, havia meia-dúzia de fotografias em preto e branco tiradas de uma grande distância, mas que mostravam uma pessoa que eu conhecia muito bem.

Eu reconheceria essa silhueta até mesmo no escuro, pensei, enquanto olhava para a imagem de Costel saindo de dentro de um edifício acompanhado de uma moça loira de estatura média.

— Onde essas fotografias foram tiradas? Quando?

A resposta não veio. Continuei analisando uma a uma as imagens, tentando identificar alguma placa ou símbolo do cenário que me indicasse a localização de meu irmão.

— Vocês também estão atrás de Costel? Por quê?

Quando se tratava do meu odioso meio-irmão, as minhas emoções ficavam à flor da pele. Lucien percebeu a minha exasperação.

— Nós estamos buscando por rastros de Costel Grigorescu ou, como ele é mais comumente conhecido, "Theodor Constantinescu" há muitos anos, Alina. O seu irmão tem dívidas a pagar com alguns dos membros do clã, e nós soubemos que você também tem procurado por ele.

As fotos possuíam uma qualidade muito baixa e era impossível determinar o lugar onde tinham sido tiradas. Podia ser em qualquer lugar ou em qualquer época já que, assim como eu, Costel não envelhecia na mesma velocidade que um ser humano comum.

— Dívidas? De que dívidas você está falando?

Sem me responder mais nada, Lucien acenou para que eu o seguisse, e nós dois saímos do escritório. Andamos vinte metros por um corredor de piso rústico, dobramos uma esquina cujo teto era iluminado por lustres cristalinos e subimos um lance curto de escadas até um segundo cômodo, fechado por portas duplas. O líder dos vampiros as empurrou e estendeu o braço à frente, insinuando que eu entrasse primeiro. Dei dois passos e me deparei com a sala de reuniões que ele havia mencionado anteriormente ao mordomo. Na parte de dentro, em torno de uma mesa de carvalho circular, estavam mais três pessoas a nos aguardar, duas mulheres e um homem.

— Alina, eu quero que conheça a minha esposa, a condessa Cassandra Archambault de Montbéliard e meus dois associados no Concílio de Sangue, Mael D'Aramitz e Adela Quinn.

Eu estava agora cercada por quatro dos mais poderosos vampiros da história, e sabia que, mesmo que quisesse, jamais conseguiria sair dali com vida em caso de um conflito físico.

Aonde eu fui me meter?


[1]n'est-ce pas? = estou certo?

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