Capítulo 23 - A mansão de Montbéliard
O RONCO DO MOTOR e o trepidar dos pistões eram cada vez mais audíveis por baixo do capô do Rolls-Royce conforme o motorista pisava no acelerador para chegar mais rápido ao nosso destino. Eu estava sentada no banco do carona e observava de perto o homem pálido de cabelos compridos a conduzir o veículo. Usava um casaco de couro com gola alta, camisa de seda e coturnos nos pés. Quase não respirava, e os seus batimentos cardíacos eram quase tão tranquilos como os de um cadáver. Era um vampiro, mas de uma espécie diferente da minha.
Seria ele um "vira-lata", como Dumitri se refere em seus diários a vampiros que não são descendentes diretos de morois?
O homem no banco de trás, sentado ao lado de minha filha, exalava testosterona por cada um de seus poros. Era extremamente bonito, além de muito forte e, de alguma forma, estava causando muita excitação em Alex. Desde o nosso reencontro, eu nunca havia visto a menina tão empolgada. Mesmo que não quisesse, os seus pensamentos lascivos soavam agora altos em minha mente, enquanto ela o observava de perto, sem nem disfarçar.
"Oh, inferno! Esses músculos tão rígidos por baixo da blusa... Ele é tão maciço... Tão forte! E esses pelos saindo pela gola afora... As veias saltando nos antebraços... As coxas firmes... Oh, diabo! E esse cheiro me deixando maluca? Que cheiro é esse!"
Me virei por um instante tentando me comunicar mentalmente com ela, mas a garota ignorou meu chamado. Continuou olhando em direção a Reece como que encantada. Intervi:
— Para onde estamos indo? Não pretende chegar até a França de carro, não é mesmo?
O primogênito de Mason Grealish se mexeu no banco de trás e fez que não com a cabeça, com ar levemente irônico. Estava sentado com as pernas bem afastadas no estofado de couro e Alex agora mirava indecorosamente as suas partes íntimas.
"Ele parece ser tão grande lá embaixo... Demônio! Eu acho que... Eu acho que fiquei molhada...".
"ALEX!", gritei mentalmente. A menina desviou o olhar por um instante e disfarçou, se virando para o lado da janela enquanto Reece me respondia:
— Randolph está nos conduzindo até a pista de voo particular do senhor Archambault. Vamos viajar de avião até Montbéliard, e lá, seguiremos em um transporte terrestre até a residência.
O céu do lado de fora do carro ainda estava bastante enegrecido, porém, pelos meus cálculos, chegaríamos ao amanhecer na França. Alex tinha sido beneficiada por seu sangue meio-vircolac e podia caminhar sob o sol sem problemas, mas tão logo eu descesse do avião, meu corpo seria transformado em cinzas.
— Não se preocupe, senhorita Di Grassi. O avião é equipado com caixões à prova de luz solar. Estaremos seguros até chegarmos à mansão Archambault.
Randolph possuía um leve sotaque francês e mal se virou enquanto falava comigo. Por um momento, suspeitei de que ele também fosse um telepata e tivesse lido a minha mente, mas não demorei a concluir que não. Seus pensamentos eram altos e claros para mim, e ele tinha respondido aquilo baseado apenas na minha expressão preocupada ao olhar o céu da noite do lado de fora do carro.
Mantendo sempre uma certa distância do Rolls-Royce, o segundo vampiro que havia nos visitado em nosso castelo fazia uma espécie de escolta ao carro montado em sua motocicleta de mil cilindradas. Virada para trás, o observei de longe pelo vidro traseiro, e indaguei a Reece:
— Quem é o vampiro pilotando a Cafe Racer lá atrás?
— Entende de motocicletas, senhorita Di Grassi? — indagou ele, com ar de súbita surpresa no rosto. Assenti à sua pergunta um tanto incomodada por ele me considerar uma estúpida. Quem ele acha que eu sou? Algum tipo de ogra vivendo em uma caverna que não entende de modernidades? Logo depois, ele continuou: — O nosso colega se chama Arnaud. Não se preocupe com ele. Mesmo com aquela sua cara de poucos amigos e o mau humor constante, ele é inofensivo. Não vai lhe fazer mal.
Me voltei para Randolph antes de fitar Reece novamente:
— E há alguém entre vocês com quem temos que nos preocupar, senhor Reece?
O rapaz pareceu levemente desconcertado.
— Não foi o que eu quis dizer, senhorita. Ninguém pretende lhes fazer mal. Eu garanto.
O restante da viagem seguiu tranquila, excetuando a tagarelice repentina de Alex, que encheu Reece de perguntas acerca de Archambault e seu dito Concílio de Sangue. Enquanto os dois conversavam na parte traseira, pelo espelho retrovisor superior, eu analisava as expressões do grandalhão ao responder as perguntas. Apesar da imagem bruta, ele não parecia alguém capaz de realizar malignidades, e havia simpatizado bastante com minha filha. Era com Randolph e Arnaud que eu estava mais cabreira.
Espero não estar nos levando para mais uma armadilha. Eu não piso na França há muito tempo e já tenho lembranças ruins de lá o suficiente por uma vida. Não pretendo ficar marcada por mais delas.
O avião pousou em Montbéliard por volta das quatro da manhã e, embora o sol ainda não tivesse nascido, eu já conseguia sentir os seus efeitos nocivos de dentro do caixão blindado em que Reece havia sugerido que eu me deitasse antes do desembarque.
Me guiando apenas pela audição, eu conseguia ouvir um par de vozes do lado de fora, enquanto o caixão era posicionado no que parecia ser a caçamba de um veículo de carga. O motor ruidoso interrompia a conversa dos dois em alguns momentos, mas não era difícil perceber que Alex estava flertando abertamente com Reece.
— E você é como os outros da sua família que podem se transformar em lobisomens quando bem entendem, sem a interferência das fases da lua?
— Sim. É uma questão de experiência. Quanto mais velhos ficamos, mais fáceis se tornam as metamorfoses. Eu não dependo da lua cheia para virar lobo desde a adolescência — havia sinceridade em seu tom de voz e era possível notar que ele estava à vontade na presença de Alex. Não lhe representava nenhum risco.
— Dá pra ver que você é muito experiente mesmo! Essas cicatrizes nos braços... São tão... sensuais!
— Já participei de muitas batalhas, mais do que queria me lembrar. As cicatrizes não me deixam esquecer delas.
O trepidar do motor acelerando não me permitiu ouvir mais do diálogo na cabine do veículo, mas o que tinha escutado era o bastante para perceber que Alex estava sendo afetada por algum tipo de química sexual exalada pelo rapaz-lobo. Eu não sabia como aquele tipo de efeito ocorria entre os licantropos, mas a mim estava claro que a porção lupina de minha filha estava falando mais alto do que a vampira durante aquele passeio.
Mais um pouco e esses dois vão encostar o caminhão para acasalar antes de chegarmos a mansão do tal Archambault!
Alguns quilômetros mais tarde, o veículo dirigido por Reece parou diante do que pareciam ser portões metálicos, e o próprio rapaz desceu da cabine para abri-los. Aquele horário, o sol já estava surgindo no horizonte, e sair do caixão era suicídio. Movida mais pela curiosidade do que pela prudência, no entanto, abri uma pequena fresta no baú mortuário e espiei o lado de fora. A visão da mansão era espetacular.
Parece que os castelos estão mesmo fora de moda, pensei, um tanto quanto admirada com o que meus olhos enxergavam.
A mansão de Lucien Archambault em Montbéliard era uma imponente estrutura em arquitetura clássica que ficava situada em um amplo terreno cercado por muros de pedra. Os jardins circundantes eram meticulosamente cuidados, com canteiros de flores coloridas, arbustos bem podados e árvores altas e frondosas.
A mansão em si era uma construção com três andares e telhados inclinados cobertos por ardósia escura. A fachada exibia uma simetria clássica, com grandes janelas de vidro com guarnições ornamentadas e venezianas de madeira. Os detalhes arquitetônicos incluíam colunas de estilo coríntio que adornavam o pórtico de entrada e uma sacada no andar superior, com balaustradas de ferro trabalhado.
Era um espetáculo da arquitetura moderna.
Assim que os portões de ferro forjado foram abertos, Reece voltou à direção do caminhão e o conduziu até uma área coberta dentro da casa, semelhante a uma garagem. Ouvi as vozes de outros empregados em torno do veículo e a ordem partiu imediata:
— Desçam os caixões e levem-nos até o hall de entrada.
Enquanto os serviçais carregavam o meu caixão por uma área cercada de paredes grossas que mal ressoavam as suas vozes, mais à frente, Alex estava acompanhando o grandalhão de perto, e quase não conseguia esconder a sua euforia.
"Pelos círculos do inferno! Eu nunca fiquei tão excitada perto de alguém! O Reece é muito lindo!"
Não demorou para que a tampa do meu caixão estivesse sendo aberta. Meus olhos levaram algum tempo para se adaptarem novamente à luminosidade e eu os cobri parcialmente com as mãos. As janelas eram todas lacradas por fora com placas de aço, e não entrava um resquício que fosse de luz solar no recinto. Me senti segura em saber que não seria queimada viva agora que estava fora do meu transporte blindado e soltei um ofego aliviado.
Eu tinha sido deixada em frente a um átrio espaçoso, com um piso de mármore polido e um lustre de cristal brilhante pendendo do teto alto. Ainda à vista de onde eu estava em pé, havia uma escadaria imponente de madeira ricamente entalhada que levava aos andares superiores. Na parte de baixo, móveis elegantes e requintados decoravam o que parecia ser a sala de estar, e havia nela tapeçarias elaboradas, poltronas estofadas em veludo e uma mesa de centro com tampo de mármore. Além disso, grandes espelhos adornavam as paredes, refletindo a luz dos lustres cintilantes.
Alguém aqui gosta mesmo da própria aparência, pensei, irônica.
As antigas lendas de que os vampiros não refletiam a sua própria forma em espelhos nunca estiveram tão equivocadas.
Assim que me vi na companhia de Randolph e Arnaud, que tinham viajado comigo na caçamba do caminhão, protegidos em seus próprios caixões reforçados, eu os encarei individualmente e a pergunta soou óbvia:
— Agora que chegamos, quando é que vou conhecer Lucien Archambault?
Os dois vampiros me cercavam com expressão blasé quando ouvi passos firmes soando do alto da escadaria de madeira. Antes mesmo que a figura impávida passasse da metade dos degraus, Randolph e Arnaud já estavam se ajoelhando no piso e abaixando as suas cabeças, em reverência ao homem cuja voz soou retumbante em meus ouvidos:
— É uma honra finalmente conhecer uma verdadeira filha da Valáquia.
Mais afastado do piso de entrada, vi Reece também curvando o tronco em cumprimento à figura pálida de cabelos negros que se dirigia a mim. Seus olhos escuros estavam pregados nos meus, e ele se aproximou sem qualquer cerimônia, com um sorriso enigmático a lhe curvar os lábios finos. Estendeu a mão comprida, recebeu a minha em cumprimento e depositou um beijo suave em seu dorso.
— É mesmo um prazer recebê-la em minha morada, Alina Grigorescu. Enchanté!
Ele sabia o meu nome de batismo e demonstrava conhecer muito bem o meu passado, vista a menção à Valáquia. Por um momento, me senti incrivelmente desconfortável na presença do sujeito alto e gélido à minha frente, e eu mal conseguia expressar o quanto.
— Como deve supor, eu sou Lucien, o proprietário dessa mansão. Espero que tenha feito uma boa viagem até aqui. Pedi para que Reece cuidasse pessoalmente do seu transporte porque não havia ninguém mais indicado que ele para o serviço. O senhor Grealish sempre teve muito jeito para lidar com nossos hóspedes.
A mente de Archambault era completamente fechada aos meus dons psíquicos. Eu não conseguia ler os seus pensamentos e não sabia o que devia esperar daquele encontro. Tinha sido pega desprevenida com o fato de que ele me conhecia mais do que eu a ele. Fiquei acuada.
— E essa beauté rare aux yeux bleus[1] na companhia de meu bom Reece só pode ser a doce Alexandra Di Grassi, acertei?
Lucien caminhou até onde Alex estava e a cumprimentou da mesma maneira que a mim. Ele fez uma reverência à menina se dizendo encantado por sua beleza e, em seguida, revelou:
— Posso sentir a descendência francesa correndo em suas veias, mon cher. Certamente, os seus verdadeiros pais eram nascidos aqui, oui?
Alex desviou o olhar levemente desconcertada, então, respondeu:
— Minha mãe era francesa. Meu pai era italiano.
Ela abaixou os olhos um instante, Lucien fez menção de tocar-lhe o queixo para erguê-lo e voltar a lhe fitar.
— Não há com o que se envergonhar, mon petit. Você não os tem mais ao seu lado, mas a sua mãe adotiva tem feito o papel de sua protetora perfeitamente nos últimos anos, não tem? Deve ser uma honra poder dizer que você é filha de Alina da Valáquia!
Aquilo estava indo longe demais e eu me impacientei.
— Muito bem, senhor Archambault. Eu percebi que fez a sua lição de casa antes de me convidar ao seu palácio, mas agora que tal nos dizer logo o motivo de ter nos tirado de nossa casa para nos trazer até aqui?
Senti a irritação de Arnaud ao meu lado direito, e o vampiro fez menção de me punir fisicamente pela elevação de meu tom em direção ao seu mestre. Eu o encarei demonstrando que não tinha medo algum de cara feia, mas foi o próprio Archambault quem resolveu o entrevero.
— Arnaud e Randolph, vocês estão dispensados por ora. A senhorita Alina é nossa convidada e não deve ser importunada. Preparem tudo para a chegada de Mael. Ele deve desembarcar em Montbéliard em poucas horas.
Os dois vampiros começaram a se retirar para seguirem as ordens de seu mestre, mas os pensamentos do menor deles me soaram cristalinos enquanto ele me dava as costas:
"Quem essa chienne dégoûtante[2] pensa que é para me encarar desse jeito? Eu devia arrancar os seus olhos do crânio por tal empáfia!"
Reece ainda estava acompanhando Alex quando outra ordem partiu de Lucien em sua direção:
— Leve a doce Alexandra para um passeio pela mansão, Reece. Tenho certeza que a moça vai gostar de conhecer o salão de armas e o museu.
Eu não gostava da ideia de ficar afastada de Alex no interior daquela casa que era quase tão grande quanto todo o território da vila de Petecu, na Transilvânia, mas Lucien me convenceu de que ela estaria em segurança ao lado de Grealish.
— Não pretendo alongar mais a sua expectativa quanto à razão da sua vinda até aqui, senhorita Alina. Você deve ter ficado bastante curiosa com a minha introdução e eu costumo ser bastante transparente com todos que visitam a mansão Archambault. Venha. O meu mordomo vai nos servir um vinho de ótima safra enquanto conversamos em meu escritório.
Eu estava mesmo ávida para que todo aquele mistério se resolvesse de uma vez, mas não conseguia esconder que tinha ficado muito incomodada na presença de Lucien Archambault. Da última vez que um vampiro legítimo havia me tratado com tanta cordialidade na chegada à sua casa, eu tinha acabado em cima de uma cama ensanguentada e rezando para não morrer. Se aquele homem era tão velho ou tão perverso quanto Dumitri Ardelean, eu tinha que saber o quanto antes, e precisava me preparar para um confronto inevitável.
[1] beauté rare aux yeux bleus = beleza rara de olhos azuis
[2] chienne dégoûtante = vadia asquerosa
mon petit = minha pequena
mon cher = minha querida
oui = sim
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