Capítulo 20 - Conexão

OS INSETOS ESTRILAVAM da mata que circundava o condado. O véu da noite já havia caído completamente sobre nós na abóbada celeste e ainda era possível ouvir os murmúrios raivosos dos moradores em nossa direção. Sergio e eu cuidávamos dos ferimentos de Alex à beira do riacho quando ele se aproximou, acompanhado da esposa. Tinha feição séria no rosto e a sua voz soou decidida.

— Venham. Vocês precisam entrar. Aceitem mais uma vez a minha hospitalidade.

Gretta Grealish forrou o sofá da sala da sua casa com uma manta grossa e se ofereceu para desinfetar os cortes na pele da minha filha. Enquanto Sergio as observava de perto, ainda um pouco enfraquecido por conta de seus próprios machucados, Mason me chamou para acompanhá-lo até a cozinha. Me serviu um jarro de vinho e pediu que eu me sentasse à mesa com ele.

— Como está Bethany?

— Ela vai se recuperar — o homem sentado de frente para mim manteve o cenho levemente assisado. Tomou um gole da bebida em sua vasilha antes de continuar. — A filha do meu maior conselheiro e amigo é uma guerreira. Foi treinada para lutar antes mesmo que aprendesse a se equilibrar sobre as pernas. Nunca tinha sido vencida em um combate justo, e vai levar um tempo para se acostumar com a vergonha da derrota. Alex poderia tê-la matado, mas optou por poupar a sua vida. Bethany tem que ser grata a isso.

— Eu ouvi o burburinho. Há quem não tenha considerado o desafio justo. Pensam que Alex trapaceou.

— De fato — respondeu ele, direto. — Eu não criei as regras do combate na arena, mas desde que cheguei a esse condado, tenho respeitado todo e qualquer resultado dessas batalhas. Eu mesmo já fui desafiado um sem-número de vezes, e jamais alguém ousou questionar as minhas vitórias. Alex estava em desvantagem e se viu obrigada a assumir o seu lado mais selvagem para vencer a sua adversária. Não há demérito algum nisso.

— Você não ficou ofendido pelo seu discurso final... pela forma como ela o enfrentou na frente do seu povo?

— Governo esse povoado há muito tempo, Alexia — começou ele, centrado. —Estou acostumado a ouvir todo tipo de bravata dirigida a mim e, para manter o mínimo de civilidade, aprendi a ignorá-las, às vezes. Sua filha ainda estava emocionalmente abalada ao dizer aquilo. Sentia o calor da batalha a aquecer o corpo. Eu compreendo que foi um desabafo sincero.

Grealish me observou por alguns instantes. As vozes de Gretta, Alex e Sergio soavam baixas da sala enquanto conversavam. Do lado de fora, o zunido dos insetos se intensificava.

— Eu já tinha ouvido falar de lendas vindas do Leste Europeu, mas jamais tinha visto com os meus próprios olhos. A sua filha não é simplesmente uma loba. Ela se transformou em um varcolac muito poderoso para lutar contra Bethany. Alguns membros do povoado ficaram bastante impressionados... Eu diria até... assustados!

— Torci para que ela não precisasse apelar para essas habilidades... Da última vez que aconteceu, ela se tornou incontrolável e causou muitas... mortes.

Ainda era difícil de acreditar que Alex havia mesmo conseguido sobrepujar os anseios assassinos da criatura peluda em que ela se transformava. Se o treinamento de meditação que Sergio havia lhe ensinado não funcionasse, o condado de Grealish agora seria algo muito semelhante a um matadouro. Ninguém teria conseguido conter a fúria da garota, nem mesmo eu.

— Você é uma vampira. O seu cheiro é indisfarçável ao meu olfato — aquela observação me soou um tanto quanto indecorosa, porém, o deixei continuar. — Como é possível que a sua filha seja um varcolac?

— Herança genética do pai dela — respondi de imediato. — Meu marido foi mordido por um vircolac durante uma caçada e, de alguma forma, transmitiu a sua maldição para Alex quando ele acasalou com a mulher que a concebeu.

Ainda era duro lembrar que o homem com quem eu havia me relacionado por tanto tempo e aceitado dividir uma vida de casada não tinha sido totalmente honesto comigo. Se Enzo tivesse me contado toda a verdade a respeito da mulher francesa em Schwartzwald desde o início, muito sofrimento seria evitado. Em especial, para a filha dele.

— Eu não posso gerar uma criança — continuei, em tom lúgubre. — Pelo menos, não da maneira tradicional. Adotei Alex quando ela tinha alguns meses de vida.

Grealish me encarou com um certo interesse cintilando nos olhos castanhos. Sorveu mais um gole de seu vinho e disse:

— Eu sou um homem bastante vivido e posso dizer que, por mais que as probabilidades estejam contra, a natureza sempre arranja um jeito de florescer. Talvez, o que tenha te faltado em todos esses anos para procriar seja um parceiro compatível.

Aquela observação fez com que eu me lembrasse da conversa sobre concepção travada com Costel, há um ano. As suas palavras ecoaram em minha mente mais uma vez:

"Segundo os estudos de Dumitri e dos documentos que encontrei em seu escritório, a reprodução entre dois morois é perfeitamente possível".

— Mas você não me chamou aqui para falar sobre reprodução vampira, senhor Grealish — desconversei, antes que aquele assunto ficasse embaraçoso. — Lamento muito a morte do garoto Samuel, mas ele não me deixou escolha quando se interpôs entre mim e a minha filha. Alex venceu a sua campeã em um desafio justo e você prometeu que nos deixaria ir caso isso ocorresse. Agora preciso saber se cumprirá com a sua palavra de líder dessa aldeia.

— Nunca deixei de cumprir uma promessa, senhorita Di Grassi. Você e sua filha estão livres para partir quando quiserem. Bethany se equivocou ao persegui-la e emboscá-la na cidade. Foi ela quem buscou o confronto e envolveu os filhos de Lampard e McCready em seu ardil. O Desafio de Fogo definiu o modo mais justo de essa contenda se resolver, e não posso obrigá-la a ficar mais tempo entre nós, embora seja imprudente levar consigo o garoto Gutierrez. Ele não está totalmente restabelecido e ainda exige cuidados especiais que meu filho Scott pode despender.

— Não se preocupe com isso. Posso cuidar de Sergio em Edimburgo. Tenho acesso a recursos...

— Eu insisto, senhorita Di Grassi — ele me interrompeu. — Sergio é um lobisomem como nós. Entendemos de sua fisiologia mais do que você possa supor e aqui ele será muito bem tratado. Quanto a isso você não precisa ter dúvidas.

— Algumas pessoas não ficaram muito satisfeitas com o resultado do desafio. Não quero que Sergio sofra as consequências de uma possível retaliação à nossa família.

— Em absoluto — Grealish disse em tom seguro. — Meu povo respeita as tradições. Não haverá nenhum tipo de retaliação, Alexia. Eu lhe asseguro. A partir de hoje, você e toda a sua família serão sempre bem-recebidos em nosso condado.

Algumas horas depois da minha conversa com Mason, Alex e eu começamos a nos preparar para deixar o povoado de Grealish. Sergio havia concordado em estender a sua estadia até que estivesse recuperado do envenenamento de prata, e Scott garantiu que meu mordomo estaria seguro em sua presença durante os dias que se seguiriam.

Gretta emprestou algumas roupas para que Alex não tivesse que voltar nua para a cidade, e Mason ordenou que um de seus guardas nos desse uma carona de carro até o centro de West Ham. Embora ele quisesse nos ajudar a encontrar o enfermeiro inglês que podia saber o paradeiro de meu meio-irmão, eu recusei a sua oferta. Aquele era um assunto que só cabia aos Di Grassi resolver, e nós cuidaríamos pessoalmente dele.

Alguns dias após os eventos no Condado Grealish, Alex e eu conseguimos recuperar a nossa bagagem perdida no hotel atingido por nossa luta contra Bethany e, após pegar as nossas coisas e reembolsar o estabelecimento pelos danos estruturais causados — embora os administradores não soubessem a natureza do que de fato tinha ocorrido nos andares superiores e nem que nós estávamos diretamente envolvidas —, voltamos a seguir as pistas frias que nos conduziram até o banco de sangue onde o enfermeiro Nicholas O'Brien trabalhava.

Bastou uma conferida simples com os atendentes durante um plantão noturno para que recebêssemos a notícia que não queríamos:

— O'Brien foi morto numa esquina do hemocentro, na saída do trabalho. A polícia suspeita de assalto. O coitado foi apunhalado bem no coração.

Era coincidência demais para que não suspeitássemos que Costel estava envolvido com a morte do enfermeiro. Ainda na calçada em frente ao banco de sangue, comentei com Alex, que parecia ainda mais contrariada do que eu com aquela informação:

— Se ele soube da nossa chegada a West Ham e mandou que seus capangas silenciassem O'Brien, é um sinal muito claro de que ele está por perto... Ou que tem gente de olho na região seguindo as suas ordens. Nós precisamos continuar investigando, Alex. Não vamos embora da Inglaterra até encontrar Costel.

A primeira semana em West Ham logo se tornou duas e as nossas saídas noturnas pela cidade à caça de pistas que nos conduzissem até o meu meio-irmão começaram a se tornar cada vez mais infrutíferas, nos gerando um enorme sentimento de frustração. Com a morte de O'Brien, não tínhamos mais um norte a nos guiar, e passamos a seguir sombras que nos levavam do nada a lugar nenhum.

Naquele meio tempo de espera para que algo acontecesse, as manchetes dos jornais começaram a alardear a passagem pela cidade de uma banda de Rock And Roll britânica chamada "The Rolling Stones" e aquilo deixou Alex em polvorosa. Apesar de concordar comigo que não estávamos em um clima festivo, ela se viu animada para assistir ao concerto e, feito uma criança empolgada, insistiu que deveríamos ir.

— Não acho que seja uma boa ideia, Alex. Vai ser um concerto em um lugar fechado. Muitas pessoas ao nosso redor... Pode ser perigoso.

— Eles estão finalizando a turnê de lançamento do álbum "December's Child". Só devem voltar à cidade em setembro. Eu preciso aproveitar a oportunidade de estar em Londres bem enquanto eles estão visitando a cidade, mãe. Nós temos que ir!

Desde o nosso reencontro, ainda na Transilvânia, tinham sido poucos os momentos em que nós duas havíamos nos divertido juntas. Por minha causa, Alex vivia uma realidade regada de muita violência e morte. Não era justo deixar que ela crescesse sempre envolta em dor e medo, como se o nosso mundo só tivesse aquele tipo de coisa a nos oferecer. Eu precisava fazer algo para mudar aquela toada, mesmo que por pouco tempo.

Dias após a notícia da chegada dos Rolling Stones à cidade, nós adquirimos os ingressos para o concerto e eu a acompanhei ao local, enquanto centenas de pessoas nos envolviam e se espremiam na casa de eventos para assistir ao espetáculo. Visitantes de várias partes da Inglaterra tinham chegado a Londres só para conferir o show, e aquela foi uma experiência única na minha tão conturbada vida.

O som das guitarras elétricas e dos demais instrumentos de cordas explodiam em meus ouvidos sensíveis mesmo à distância do palco. Os equipamentos amplificadores causavam uma ressonância praticamente insuportável aos meus sentidos, e eu tive que me concentrar muito a fim de controlar os meus dons vampiros. Eu estava prestes a enlouquecer com o barulho infernal gerado pelo quinteto no tablado, mas Alex estava vibrando ao meu lado, totalmente contagiada pela energia que o vocalista da banda emitia com a sua voz potente e o gingado dos seus quadris.

— O Mick Jagger é incrível!

Era difícil me concentrar em algo além do som retumbante que ecoava do palco, mas era inegável que o jovem líder do conjunto musical tinha seus atrativos. Eu nunca tinha visto um humano comum transparecer tanto sex appeal e, por um momento, achei justificado o título de "símbolo sexual" que o rapaz havia ganhado pelas fãs da banda desde o seu surgimento.

Embora aquele tipo de música não fosse nem de longe o meu preferido, eu precisava admitir que a sonoridade de "(I Can't Get No) Satisfaction" era bastante estimulante. As garotas e os rapazes ao nosso redor explodiram em uníssono cantando o refrão poderoso da canção, e só por ver a felicidade estampada no rosto da minha filha os acompanhando, valeu demais ter ido ao show com ela.

A chegada do mês de abril me botou em alerta com a notícia de que um novo eclipse solar estava prestes a se fazer notar nos céus das cidades de boa parte do mundo e, embora não tivéssemos chegado nem perto de encontrar Costel ou a sua afamada assistente, Yuliya, eu comecei a preparar o nosso retorno à Escócia.

Dias antes de partirmos, Sergio havia nos enviado uma carta ao hotel pedindo permissão para alongar ainda mais a sua estadia em West Ham, e eu decidi conceder. Segundo o rapaz, Grealish e os demais conselheiros do bando licantropo o estavam tratando muito bem em meio ao que ele chamava de "alcateia", e o venezuelano estava aprendendo muitas coisas interessantes não só sobre a própria fisiologia, como também a respeito de medicina fitoterápica. Scott era muito paciente em lhe ensinar e um gostava da presença do outro. Passavam mais da metade do seu tempo juntos na tenda do menino, e era com ele que estava entendendo mais sobre seus dons lobisomens.

No final de abril, devido aos possíveis efeitos que o eclipse podia gerar em Alex, nós duas nos trancamos no porão do castelo por alguns dias, e lá, a menina me ensinou algumas das lições iogues que Sergio havia lhe transmitido. A prática consistia em concentrar os nossos pensamentos a fim de conectar corpo e mente, e aquele aprendizado me foi muito bem recebido.

Durante o tempo em que durou o fenômeno em que a Lua ficava posicionada entre o Sol e a Terra, Alex chegou a apresentar certo desconforto físico, mas conseguiu controlar com talento a sua transformação involuntária em vircolac. Segundo o que me dizia, ela não possuía lembranças de outras metamorfoses ocorridas no período que compreendia a sua ressurreição em Veneza até a noite do seu ataque em Petecu, mas admitia que elas podiam ter ocorrido, como bem Costel já havia assegurado anteriormente.

Naquele mesmo dia, logo após a passagem da Lua diante do Sol, eu propus algo novo para minha filha no interior do porão escuro, e ela me ouviu com atenção, sentada à minha frente em posição de lótus.

— Eu não quero mais perder você, Alex. Sei que a nossa relação tem sido conturbada desde que nos reencontramos e que, às vezes, eu ainda ajo como se você fosse a mesma menininha de tranças que vi pela última vez a brincar com a babá no quintal do château em Avignon, mas eu preciso muito mantê-la em segurança.

Ela se manteve séria e o tronco ereto não perdeu firmeza em nenhum momento.

— Sei que já falamos sobre o assunto e eu entendo que os seus dons psíquicos, de alguma maneira, não foram bem-desenvolvidos depois que o sangue de Dumitri passou a fazer parte do seu organismo. Eu quero propor que nós duas criemos um elo mental para casos de emergência. Uma conexão para que possamos sempre estar em contato telepático uma com a outra.

O narizinho arrebitado se franziu.

— Você quer ter acesso à minha mente o tempo todo?

Acenei que não.

— Um elo psíquico vai permitir que nós duas possamos nos comunicar mentalmente sempre que necessário. Eu já fiz algo parecido com outras pessoas antes, incluindo humanos comuns, mas eu quero estabelecer essa conexão com você, filha.

Nós duas estávamos em constante ameaça com o desaparecimento de Costel. Agora que sabíamos que um demônio altamente argucioso havia tomado o seu corpo e que ele pretendia usar os dons licantropos de Alex para fortalecer o seu exército de monstros na Terra, era necessário que eu a mantivesse sob vigilância. Ela estava um pouco desconfortável com a ideia por não saber bem como aquela nossa ligação funcionaria, mas decidiu se abrir para a experiência.

— A minha conexão mental funciona melhor quando mantenho contato físico mais prolongado com a pessoa a quem quero me ligar. No nosso caso, basta que façamos uma espécie de "pacto de sangue". Uma gota de sangue de ambas em contato para tentarmos estabelecermos o vínculo.

— Já tentou isso antes? — quis saber ela, furando a ponta do dedo indicador com o seu dente canino, e estendendo o braço direito à frente.

— Desse jeito não, mas deve funcionar.

Assim como ela, eu mordisquei o meu dedo e toquei o de Alex. Nosso sangue entrou em contato um com o outro por algum tempo, depois, voltamos à posição anterior, a fim de estabelecer a nossa conexão mental.

Um emaranhado de sensações e pensamentos difusos me atingiram tão logo consegui tocar a sua mente, mas logo eu assumi o controle, organizando a conexão.

"Consegue me ouvir, filha?", perguntei em pensamento.

"Funciona mesmo! Eu estou ouvindo você, mãe", respondeu ela.

De onde eu estava, era possível captar não só os seus pensamentos como também as suas emoções. Sem que precisássemos abrir a boca ou oscilar o som em nossas cordas vocais, nós duas começamos a conversar uma com a outra, e foi realmente muito especial perceber que, apesar de não sermos parentes de sangue, as nossas mentes possuíam uma afinidade única.

"Agora estaremos conectadas para sempre, querida. Sempre que precisar de mim, basta me chamar mentalmente. Eu estarei por perto num piscar de olhos".

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