Capítulo 19 - Desafio de Fogo

O CÉU JÁ HAVIA ENEGRECIDO quando vimos os mais de cem moradores do condado começarem a se reunir em torno de um círculo largo desenhado no chão com querosene. Os archotes presos a postes de madeira foram acendidos a fim de iluminar bem a arena montada ao longo do dia. Antes que o desafio em que eu seria uma das protagonistas começasse, Scott aconselhou que eu fosse me preparar para o que viria. O menino apertou a minha mão gentilmente sem coragem de me fitar os olhos, mas disse, quase em um cochicho, evitando que a audição sensível de seus pares captasse a sua voz:

— Cuidado com o direto de esquerda da Bethany.

Havia apreensão nos rostos de Alex e Sergio enquanto os dois me acompanhavam até o amontoado de aldeões. Conforme eu passava por eles a fim de assumir posição próximo à entrada do grande círculo, muitos me ofendiam de maneira tímida, mas outros eram explícitos em suas agressões verbais:

— Vai morrer, chupa!

— Sua hora chegou, sanguessuga!

O espaço central do círculo tinha aproximadamente nove metros de um lado a outro, e era todo forrado por terra batida. Não havia armas visíveis em nenhum dos cantos, o que me levava a crer que a nossa luta seria travada de punhos livres, no mano-a-mano, vampira contra mulher-loba.

Que coisa mais ridícula, pensei, contrariada enquanto avistava a chegada da minha adversária do outro lado da arena. Como o esperado, ela estava acompanhada do amigo Jack, além do pai de Samuel McCready e de seu próprio pai, Rupert.

Os gritos de incentivo à sua campeã invencível e os de escárnio a mim se intensificaram quando fizemos menção de pisar o chão da arena. Eu já tinha aceitado o meu destino e estava firme em meu propósito de esbofetear a pulguenta raivosa diante de toda a sua gente, quando Alex agarrou o meu braço com força.

— Mãe, você não pode fazer isso.

Bethany já havia saltado para o interior do círculo e me encarava com o queixo rente ao peito e seus olhos miúdos a me fitarem.

— Eu tenho que fazer, Alex, sinto muito. Fui eu quem matou o garoto. Sou eu quem deve aceitar o desafio.

Alex se colocou à minha frente e me sacudiu:

— Você não se alimenta direito há quase três dias. Não tem bebido sangue. Está fraca. Essa Bethany vai acabar com você.

Aquilo feriu o meu ego.

— Ela não tem nem metade da minha idade, Alex. É só uma criança. Eu dou conta...

Naquele momento, a minha filha fez algo impensado. Ela me empurrou com bastante força e saltou para dentro do anel no momento em que atearam fogo no querosene e uma parede de mais de um metro de altura se interpôs entre nós duas.

— Alex! O que está fazendo?

Eu tinha entrado em desespero com a mais tênue chance de que Alex fosse ferida durante um combate mortal contra Bethany, e foi Sergio quem me deteve quando ameacei pular junto para dentro do círculo de fogo.

— Não, Alexia. Confie nela. Alex tem um plano.

Eu não o queria ouvir.

— Ela... Ela ainda não é boa o suficiente... Ela vai se machucar!

Todos em torno da fogueira passaram a se encarar confusos com a mudança repentina de desafiante, mas os gritos de incentivo à Bethany recomeçaram com toda força. A herdeira dos Green estava parada com as pernas afastadas do outro lado, a observar a sua nova rival no desafio. Eu a ouvi no momento em que disse, com um sorriso irônico na cara:

— A coisa acabou de ficar ainda mais interessante.

Bethany começou, então, a se despir da blusa que usava enquanto avançava a fim de cercar Alex junto ao muro flamejante. Minha filha me lançou um olhar confiante e também passou a se movimentar, ganhando distância da adversária, levantando a sua guarda.

— Ela não vai conseguir... — Eu estava pensando nas outras duas derrotas de minha filha e nas palavras de Scott, poucas horas antes da contenda começar: "Bethany é a melhor guerreira da nossa alcateia. Foi treinada desde a infância para ser a mais perfeita e letal arma do nosso exército".

Sergio continuava agarrado ao meu braço e me confortou:

— Alex não pretende enfrentá-la como vampira. Ela vai usar todo o seu poder dessa vez.

Aquilo tinha me enervado ainda mais e o grito saltou quase que imediato da minha garganta:

— ALEX, NÃO FAÇA ISSO!

Naquele momento, um gesto de Mason Grealish deu como iniciado o desafio, e Bethany rugiu pouco antes de assumir a sua forma híbrida. Como loba, ela ganhava uma massa muscular ainda mais tonificada, e seus pelos eram compridos e castanhos sobre a pele. Media quase um metro e oitenta, e seus olhos ganhavam um tom ônix assustador durante a metamorfose.

— Mata a baby-chupa!

— Destroça a vadia!

A plateia tinha entrado em polvorosa em volta das chamas que dançavam, separando lutadoras do público. Lá dentro, Alex se esquivou por pouco do avanço mortífero de Bethany, que saltou sobre ela com as duas mãos em direção ao seu rosto, querendo desfigurá-la. Não havia mais qualquer resquício de humanidade na garota britânica, e tudo que havia restado em seu corpo bestial era a fúria desenfreada.

— Alex, cuidado!

O meu grito soou tarde demais quando a sua adversária girou pelo chão e a golpeou o abdômen com violência, a derrubando. Caída perto demais do anel incendiado, as pontas de seus cabelos loiros começaram a arder em chamas, enquanto ela ficava à mercê de socos cada vez mais ferozes e constantes em seu rosto.

— Usa a guarda, Alex! A guarda!

Os meus conselhos eram abafados pelos urros quase insanos do povo do condado que pedia pelo sangue de Alex. Minha filha estava sendo massacrada pela força inumana da mulher-loba sobre ela, mas encontrou energia suficiente para se esquivar e escapulir por baixo das patas traseiras da outra. Apagou o fogo em seus cabelos com as mãos e botou-se em pé novamente, com esforço.

— Estripa essa chupa!

— Vai, Bethany! Arranca a cabeça dessa vampira!

Um rosnado antecipou uma nova investida de Bethany, mas Alex não se intimidou. Firmou os pés no chão, encaixou bem o quadril e desferiu-lhe um direto de direita que fez-lhe estremecer o maxilar e trincar os dentes pontiagudos. A loba fixou-se no chão surpresa por ter sido pega desprevenida e sacudiu o focinho feito um cão ferido.

Confiante, Alex pegou impulso antes de saltar em direção à adversária para lhe atingir um chute direto no rosto, mas subestimou a sua velocidade. Bethany agarrou-lhe pelo tornozelo, fincou-lhe a carne com as garras de oito centímetros em cada um dos cinco dedos da mão e a golpeou contra o chão feito um pilão. Repetiu aquilo duas, três, quatro vezes. Foi possível ouvir os ossos da clavícula de Alex se partindo.

— Parem essa luta! PAREM!

Grealish me ouvia berrar de perto do raio central do círculo, mas mantinha-se impassível ao sofrimento da minha filha na arena. Naquele momento, a minha pequena menina buscava um fôlego que já lhe faltava, e estava sendo castigada por uma sequência de pancadas capazes de esfarelar concreto. O sangue voou espesso do seu nariz, e seu belo rosto se deformou rapidamente ante a força do impacto. A torcida continuava pedindo por mais.

— Mate a chupa!

— Destroce essa vampira maldita!

Um sentimento de desespero muito grande que eu não sentia desde que era uma humana na Valáquia começou a me invadir. Sergio me segurou com ainda mais força e cochichou, confiante:

— Não acabou ainda. Ela vai reagir.

Eu não conseguia raciocinar direito. O meu desejo era pular para dentro daquele ringue e torcer o maxilar da loba desgraçada que machucava a minha filha, como eu tinha feito com Samuel McCready. Naquele instante, no entanto, ouviu-se um rugido ainda mais poderoso na arena que suplantou os grunhidos raivosos de Bethany. Todos ao redor do anel de fogo calaram-se por um momento, e houve muita confusão quanto ao que estava prestes a acontecer.

Embora parecesse derrotada, prestes a ser sacrificada no chão do campo, a minha filha agarrou com firmeza o pulso direito da rival e o torceu, enquanto se botava gradativamente em pé novamente. Havia um brilho sobrenatural nos olhos, até então, celestes de Alex, e uma sombra passou a envolvê-los.

As pessoas em volta do ringue pararam de entoar seus gritos por mais violência, e um silêncio quase sepulcral invadiu o coração da floresta. Alex agora parecia tomada por um poder além da compreensão de qualquer um ali presente, incluindo a mim mesma, e foi com ele que a menina franzina dobrou o pulso de Bethany e o partiu em dois.

O som dos ossos se craquelando foi aterrador, mas foi imediatamente superado pelo espanto que tomou a todos quando a musculatura de Alex começou a se expandir por debaixo da sua roupa. De repente, o couro que ela vestia já não era mais capaz de conter a robustez do seu corpo, e a plateia ficou estarrecida quando uma vircolac de pelos dourados e olhos vermelhos surgiu no lugar da menina frágil que antes digladiava contra a sua campeã.

— Não é possível!

— Que espécie de demônio é essa?

— Como algo assim é capaz de acontecer?

O povo de Grealish agora estava estarrecido, porém, não mais que Bethany que, em segundos, se viu em larga desvantagem contra a criatura lupina diante dela. A vircolac era maior, mais forte e incrivelmente mais habilidosa. Depois de lhe despedaçar os ossos do braço, agarrou-lhe o pescoço e começou a pressionar, enquanto arrancava-lhe o fôlego.

— Não faça isso, Alex!

Eu estava prestes a invadir a arena para deter a fúria descomedida de minha filha. Do outro lado, era o pai de Bethany quem suplicava para que a sua primogênita fosse poupada. Mason agora estava de olhos arregalados no centro do campo de batalha, mas continuava imparcial.

Alex agarrou Bethany no alto e a arremessou no chão com toda a sua força. O estrondo da queda fez estremecer o solo sob nós, mas ela ainda não havia se dado por satisfeita. Enquanto a rival gania amedrontada por tamanha demonstração de poder, algo jamais visto em nenhuma das centenas de gerações licantropas, Alex agarrou-a pelos cabelos e começou a golpear o seu focinho no chão. Uma. Duas. Três. Dezenas de vezes.

— NÃO! BETHANY!

Rupert jazia desesperado com a iminente morte de sua única filha, mas Alex parecia saborear o seu ato selvagem. A garota Green jazia desfalecida com a cara ensanguentada em contato com o chão quando a vircolac puxou-lhe com força os cabelos, quase a escalpelando. Em posição desafiadora, a criatura loira abriu os braços, inclinou o corpo e soltou um rugido que estremeceu a todos à sua volta.

Oh, Alex... O que você fez?

Os olhos escarlates e raivosos da minha filha se cruzaram com os meus em seguida e o seu rugido foi perdendo a força gradativamente. De onde eu estava, conseguia ouvir os seus batimentos cardíacos desacelerando, assim como a sua respiração ofegante. A adrenalina em seu corpo havia atingido um pico nunca antes alcançado, mas ela estava se acalmando. Sergio deu-me uma palmada consoladora no ombro e sussurrou:

— Ela conseguiu. Ela conseguiu controlar o vircolac.

Enquanto ossos reduziam de tamanho, a musculatura desinchava, pelos voltavam para o interior de poros e a loba gigante voltava a ser a menina, todos os olhares estavam voltados para ela ao centro da arena. Quando Alex se voltou para o raio central do anel de fogo, ela já tinha assumido totalmente o controle de seu corpo, e se dirigiu a Mason Grealish diretamente:

— Eu venci o desafio, mas, para provar a minha boa-fé, serei clemente com a minha adversária. Em nome do pacto existente entre vampiros e lobisomens, eu manterei Bethany viva. Em contrapartida, exijo que vocês não voltem a se meter conosco no futuro, ou eu não serei tão tolerante da próxima vez.

Eu apanhei uma bandeira com o brasão dos Grealish que tremulava a dois metros de onde eu estava e a puxei de seu mastro. Saltei em direção ao centro do círculo e envolvi o corpo nu de minha filha, cujas roupas haviam sido estraçalhadas durante a sua metamorfose.

Nós duas atravessamos a barreira incandescente à nossa frente e demos as costas a todos os demais, caminhando em direção ao riacho. Sergio nos seguiu de perto, e foi só emparelhar com Alex que ele a felicitou, com um sorriso indisfarçável no rosto moreno:

— Você conseguiu, Alex. Você controlou o vircolac, controlaste tu demônio interior.

Ela forçou um sorriso encabulado e eu a abracei mais firmemente. Estava muito orgulhosa pelo seu grandioso feito, mas ainda terrivelmente preocupada do que seu discurso da vitória poderia ter causado entre a relação vampiros-lobisomens.

Se Grealish levar as palavras de Alex para o lado pessoal, é provável que nem consigamos atravessar os portões do condado com vida.  

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