Capítulo 16 - O Condado Grealish

O CHEVROLET GANHOU VELOCIDADE poucos quilômetros após a região do hotel no centro e se moveu em direção a uma área arborizada cercada por vegetação alta ainda no interior de West Ham.

Jack piscou os faróis, até então apagados, como sinalizando a sua chegada a alguém oculto nas sombras de uma passagem estreita que dava em um portão gradeado de madeira. Dois pares de mãos se fizeram ver para puxar as grades e permitir a entrada do carro velho. Pouco depois, o nosso grupo foi recepcionado por um bando de pessoas, todas malvestidas e de aparência rude.

Alex e eu fomos instruídas a desembarcar do carro. Então, começaram a nos conduzir para além do portão, agora escoltadas por mais quatro homens que se comportavam como soldados da guarda. Um deles aproximou o nariz da minha blusa esfalfada por trás e indagou a Jack, que me segurava pelo braço:

— Uma chupa? A quem ela pertence? D'Aramitz ou Quinn?

Jack deu de ombros, em seguida, respondeu com o timbre grave:

— Ainda não sabemos, mas tenho certeza que o Mason vai querer se divertir um pouco enquanto arranca a verdade dela!

Bethany mantinha Alex com os dois braços presos para trás do corpo. Mais atrás, era possível enxergar um dos soldados da portaria do condado empurrando Sergio pelos ombros, e ele estava visivelmente debilitado. Prata era mortal para lobisomens tanto quanto para os vampiros, e eu temia que a garota encrenqueira lhe tivesse cortado com a sua lâmina enquanto o mantinha sob vigilância.

Se ela fez mesmo isso, eu vou arrancar a língua dessa bruxa peluda!

Menos de dez minutos de caminhada depois, alcançamos uma vila rodeada por tendas altas e espaçosas no coração do que eles chamavam de "Condado Grealish". Eu nunca havia visitado aquele ponto da Inglaterra antes, mas tinha certeza que nenhum condado com aquele nome constava em seus mapas oficiais.

— Ajoelhem-se e esperem aqui. A Bethany vai chamar o Mason para interrogar vocês.

Um dos homens da guarda era alto, tinha músculos salientes a saltar dos braços e cheirava a cachorro molhado. Chutou-me a parte posterior dos joelhos a fim de me forçar a me curvar e, eu assim o fiz, ainda tentando entender o tamanho da encrenca em que tinha sido envolvida.

Alex foi colocada de joelhos ao meu lado esquerdo, enquanto Sergio ficou à minha direita. O rapaz mal conseguia sustentar o peso do próprio corpo e chegou a cair para a frente, com as mãos amarradas para trás. Outro dos soldados o puxou pelos cabelos lisos para botá-lo novamente de joelhos, foi quando lhe questionei se ele tinha sido atingido por prata. Apontou com o queixo um corte a sangrar em seu flanco direito e disse:

— A garota correu a lâmina na minha pele e, desde então, o corte não cicatriza. Estoy muriendo!

— Não, você não está morrendo, Sergio, mas eu vou arrancar a coluna vertebral da putinha que te fez isso!

Senti um chute em minhas costas quando a voz de Jack soou em meus ouvidos.

— Cale a boca. Mason está aqui.

Naquele momento, foi como se a própria realeza inglesa estivesse presente no condado porque todos ao redor da passagem por entre as tendas começaram a se curvar diante do homem que se aproximava acompanhado por Bethany e outra figura misteriosa. Havia mais de uma dezena daquelas cabanas rústicas a ladear o caminho de terra que seguia até uma casa de tijolos. Lá, luzes de candeeiros iluminavam a sua entrada e dava para ver degraus de pedra subindo até uma varanda no alto.

Quando percebi, estávamos rodeados de quase uma centena de homens, mulheres, idosos e crianças que viviam naquela vila. Eu não demorei a concluir que estávamos prestes a ser julgados por um tribunal popular ou algo muito parecido a uma execução em praça pública.

O líder a quem todos tratavam como Mason era um homem de estatura mediana, cabelos lisos e longos até o pescoço e de feição irritada. Possuía uma barba por fazer de algumas semanas e ostentava uma cicatriz bastante evidente a lhe cortar do supercílio esquerdo até a maçã do rosto. Vestia um colete de pele animal por cima do dorso definido e uma calça larga amarrada à cintura por um cordão. Estava acompanhado de um outro homem mais baixo que ele e de cabelos castanhos ralos. O seu tom me soou firme enquanto ele me olhava de cima:

— Você foi apanhada violando o nosso acordo territorial e em atitudes suspeitas, moça. Me diga a qual clã você pertence e eu prometo levar a minha ira diretamente ao seu líder.

Houve um instante de euforia por parte dos moradores do condado com a menção à ira de Mason. Era como se todos eles estivessem ávidos por uma batalha e só esperassem um motivo ínfimo para começar a travá-la.

— Eu não faço ideia a que acordo territorial você está se referindo, colega. Tudo isso é um grande mal-entendido.

A botina de Jack não demorou nada a se cravar em minha nuca, me empurrando contra o chão.

— Olha como fala com o nosso alfa, vadia!

Um homem de cabeça raspada e pele ébano como o garoto o advertiu por seu arroubo de violência, e me ajudou a voltar à posição anterior. Alex rosnou em direção às pessoas que nos cercavam, mas eu lhe pedi calma. Mason me analisou por alguns instantes sem dizer nada e, então:

— Não sabe a respeito do pacto entre lobisomens e vampiros no Reino Unido?

Fiz que não com a cabeça, sem perdê-lo de vista.

— Então, você não pertence a nenhum dos três clãs primordiais?

Cuspi no chão o sangue preso em minha boca após o chute de Jack e respondi verbalmente:

— Nós estamos apenas de passagem por Londres. Somos de Edimburgo. Não pertencemos a clã algum. Eu nem sabia que havia mais lobisomens nessa região. O Sergio era o único que eu conhecia até então.

Indiquei com a cabeça o garoto febril à minha direita. Ele estava pálido e parecia sintonizado em outra frequência do plano existencial naquele momento, ferido.

— Ela está mentindo, Mason! É uma mentirosa!

Os gritos de Bethany interromperam o nosso diálogo, foi quando o homem que acompanhara Mason até ali mandou que a garota se acalmasse. Ele se chamava Rupert Green e era o progenitor da esquentadinha.

— É isso que estamos tentando apurar aqui, minha filha. Agora fique quieta.

Havia autoridade em seu tom de voz e, embora estivesse contrariada, Bethany o obedeceu.

— Como pode ver, meu povo não está muito satisfeito com a presença de duas vampiras e um licantropo estrangeiro em nossas terras — argumentou Mason, ainda me olhando de cima. — Se está mesmo só de passagem pela Inglaterra, me diga o que estava fazendo naquele sobrado em Amity, e por que fugiu quando o meu pessoal a abordou?

— Por que fugimos? Essa garota e seus dois cães de guarda tentaram matar a gente antes que explicássemos qualquer coisa — a voz estressada de Alex se antecipou à minha e, mais uma vez, eu pedi que ela se acalmasse.

Mason olhou em volta e pediu uma explicação à Bethany.

— Dois cães de guarda? Quem mais além de Jack Lampard a acompanhava na ronda noturna?

— O Samuel — respondeu ela, prontamente.

— Samuel McCready? E onde está ele? — indagou Mason, constatando a óbvia ausência do rapaz que eu matara no corredor do hotel.

— Ficou para trás. A vagabunda branquela aí o nocauteou.

Bethany se comportava o tempo todo como um animal enjaulado e me encarou com seus olhos estreitos a brilharem de ódio.

Mason sinalizou para que dois de seus guardas grandalhões pegassem o Chevrolet e voltassem à cidade para buscar o tal Samuel. Eu sabia agora que tinha pouco tempo para pegar Alex e Sergio e sair daquele lugar antes que descobrissem o que eu tinha feito ao seu colega.

— Vou perguntar mais uma vez. O que estavam fazendo naquele sobrado àquela hora e o que buscavam lá dentro?

— A história é longa, mas para resumir bem, a minha filha Alex e eu estávamos atrás de uma pista que nos conduzisse ao paradeiro do meu irmão, Costel, que está desaparecido há mais de um ano. Aquele sobrado em Amity pertence a um traficante de narcóticos que tinha acordos comerciais com esse meu irmão no passado. Nós fomos atrás do cara para descobrir pistas de onde Costel poderia estar escondido.

Mason coçou a barba castanha a analisar as minhas feições. Eu não fazia ideia se os lobisomens, assim como os vampiros, podiam detectar os sinais de estresse no corpo que indicavam se alguém estava falando a verdade ou não, mas o homem levou algum tempo só me observando.

— Esse seu irmão também é um vampiro? — indagou o senhor Green, ao lado de Mason. Além de pai da irritadiça Bethany, ele parecia desempenhar papel importante na hierarquia do condado. Algo como o segundo em comando.

— Sim, ele é — respondi, achando que levaria tempo demais para explicar que Costel agora era, na verdade, um nefilim chamado Thænael e não só mais um vampiro.

— E você acha que ele pode estar em algum lugar da Inglaterra? — questionou Mason, agora se voltando também para Alex ao meu lado.

— Eu não sei. O traficante trabalha em um banco de sangue aqui de West Ham. Nós íamos apertar o cara para tentar descobrir o paradeiro do meu irmão. Estávamos vasculhando a sua casa em busca de pistas quando a menininha nervosa aí chegou procurando encrenca — indiquei Bethany com o queixo. Ela fez menção de pular para cima de mim, no que foi contida pelo pai.

Mason lançou um olhar frio em direção à garota que, pela primeira vez desde que tínhamos nos encontrado, abaixou a cabeça em posição de respeito... ou medo. Logo em seguida, o homem em seu colete de pele estendeu a sua mão e indicou que eu a pegasse cortesmente, me ajudando a levantar do chão. Fez um sinal mínimo com a cabeça e os seus homens cortaram as cordas que prendiam os pulsos de Alex e Sergio. Foi quando o garoto tombou para a frente, desmaiado.

— Acudam-no! Ele está ferido.

O homem de pele negra e cabeça raspada chamado Owen Lampard ajoelhou-se diante do corpo desfalecido de meu mordomo e avaliou o seu estado. Verificou o ferimento causado por uma lâmina de prata na base da sua costela e disse para Mason, preocupado:

— Ele foi envenenado por prata. Se não aplicarmos o tratamento adequado nesse rapaz, ele não vai ver o próximo nascer do sol.

Fazendo um gesto com a mão, Mason ordenou que alguns de seus comandados providenciassem uma maca e removessem Sergio dali com urgência. Um garoto magro de olhar assustado e cabelos lisos castanhos se aproximou do líder do condado para ouvir as suas instruções:

— Scott, vou deixá-lo a cargo dessa tarefa. Use os seus conhecimentos medicinais para remover a prata de seu organismo e mantenha-o firme. Ele é um de nós. Não merece morrer de maneira tão covarde.

O menino magricelo acenou que sim e, quando já se aproximava da maca de Sergio, foi abordado por Alex, que correu em sua direção.

— Eu vou junto. Ele é meu amigo. Não vou deixá-lo sozinho com essas pessoas estranhas!

Scott não fez objeções e, pouco depois, o grupo com os carregadores da maca estava se deslocando para uma das tendas mais ao fundo, no coração da floresta. Archotes pendurados em postes de madeira iluminavam o caminho relvado e eu já os estava acompanhando preocupada com o estado de saúde de Sergio quando Mason interveio.

— O meu filho Scott vai cuidar do seu amigo ferido, moça. Ele possui inúmeros conhecimentos medicinais que fazemos uso constantemente em nosso condado. Tenho certeza que ele não vai permitir que nada de ruim aconteça a Sergio.

Bethany nos observava de longe com a feição fechada e os olhos ainda mais estreitos no rosto. Apontei em sua direção antes de dizer:

— Então trate de manter a cadela raivosa ali longe de nós.

Mason olhou em direção à moça. O seu pai já se aproximava, pronto a falar com ela e mantê-la sob rédeas curtas.

— Bethany terá a punição merecida, não se preocupe. Ainda temos algumas horas até o nascer do sol. Você deve estar faminta. Gostaria que me acompanhasse até a minha morada enquanto aguardamos a recuperação de seu amigo. Posso lhe oferecer uma vitela malpassada e um jarro de vinho, se assim desejar.

Mason parecia totalmente desarmado agora que a confusão entre mim e os seus comandados havia sido esclarecida. O acompanhei até a casa de tijolos que havia identificado na floresta mais cedo, e as demais pessoas começaram a se recolher em suas próprias tendas, ao lado da passagem de terra em que andávamos.

— Não fomos devidamente apresentados. Eu me chamo Mason Grealish. Sou o que meus comandados chamam de "o alfa" do bando que conheceu superficialmente aqui.

Eu tinha voltado a usar o meu nome civil desde o meu retorno à Edimburgo e me apresentei como tal, apertando a sua mão:

— Sou Alexia Di Grassi.

A casa de Mason era um chalé antecipado por uma varanda espaçosa, envolta por um alpendre coberto de trepadeiras. Ali, havia uma cadeira de balanço feita de madeira de onde era possível apreciar a beleza da floresta ao redor, bem como escutar o som dos animais noturnos. Pela parede baixa da varanda, era possível enxergar, mais além, uma trilha de pedras que levava a um pequeno riacho.

Apesar de ser um lugar muito bonito, aquilo não era nem perto do que eu imaginava da casa de um lobisomem que se escondia em uma floresta inglesa.

Ao chegarmos à sala de estar, nós dois fomos recepcionados por uma mulher encorpada, de cabelos crespos longos e de olhos esverdeados. Ela se chamava Gretta e era a esposa de Mason.

— Ela é a mãe do Scott que você viu mais cedo, e nós temos três filhos mais velhos que ele; a Brittany, a Olympia e o Wolf.

Cumprimentei a mulher e ela parecia ser a mais simpática das moradoras do condado.

Pelo menos, não me olhou como se eu fosse portadora de uma doença contagiosa, como os outros moradores, pensei, admirada.

A sala de estar do chalé era iluminada pela luz suave das velas que circundavam quase todo o espaço. Mais ao canto, a brasa crepitante da lareira mantinha uma temperatura agradável no interior da moradia. Havia móveis de madeira maciça feitos à mão. Um sofá confortável, coberto por peles de animais, e almofadas aconchegantes.

Estou me sentindo em um conto de fadas, e eu acabei de chegar à parte em que visito a adorável casa da família lobo, pensei, carregada de ironia.

Gretta me serviu um jarro de vinho tinto e me convidou para me sentar junto a ela e ao marido no sofá. Um cheiro muito estimulante de vitela recendia o ambiente vindo da cozinha, e se eu não estivesse tão apreensiva, aceitaria o pedaço oferecido pelos Grealish.

— Todas as pessoas dessa comunidade são lobisomens?

Mason assentiu carregado de orgulho. Estava sentado ao meu lado esquerdo com as costas reclinadas no encosto do sofá.

— Já chegamos a abrigar duas centenas de licantropos em nosso território, mas uma guerra antiga contra os vampiros acabou ceifando a vida de muitos de nós.

Havia pesar em seu tom de voz.

— E como vocês se mantêm escondidos há tanto tempo nessa região florestal bem no coração de Londres? A modernidade dos grandes centros, a mídia jornalística, a televisão... Eu penso que deve ser difícil se manter incólume a olhos vistos!

Ele parecia concordar, mas foi Gretta quem respondeu com seu timbre suave:

— Temos tido dificuldades para nos manter ocultos de olhares curiosos de uns anos para cá. A cada dia que passa, a floresta diminui para ceder espaço para os edifícios e estradas, e já nos falta alimento em certas temporadas do ano. Nós somos assumidamente carnívoros, mas os animais que antes abundavam na região de West Ham estão cada vez mais raros.

Era uma situação em que eu nunca tinha pensado antes. Com o avanço da modernidade, para onde eram empurrados os seres místicos que povoavam florestas e matas?

— O acordo com Archambault e o seu Concílio de Sangue foi essencial para que nos mantivéssemos unidos e seguros em West Ham. Houve um tempo em que nós lutávamos dia e noite por território, em busca de subsistência, mas precisou haver um massacre do nosso povo para que eu, enfim, percebesse que era possível dialogar com os vampiros e entrarmos em um acordo a respeito do espaço físico que os nossos clãs ocupavam dentro do Reino Unido.

Era a segunda vez que aquele nome era mencionado e eu fiquei curiosa.

— Quem é Archambault e por que ele é tão importante?

Gretta trocou olhares com o marido antes de me responder:

— Achei que todos os vampiros conhecessem Lucien Archambault. Ele é o mais antigo e o mais experiente dos vampiros. Comanda todos os demais clãs e nos deu a sua palavra de que o nosso povo teria autonomia total na região de West Ham e arredores.

Eu estava abismada em saber que os vampiros pertenciam a clãs e que, mais do que tudo, eram chefiados por um mestre. Eu tinha mais de cem anos de idade, porém, desconhecia completamente as minhas próprias origens e costumes da minha espécie.

Eu devia ter frequentado algum colégio de vampiros antes de sair por aí em minha capa preta.

Após a insistência de Gretta, eu acabei cedendo, e acompanhei os Grealish à mesa do jantar. A vitela estava sanguinolenta como eu bem gostava, e aproveitei para me alimentar um pouco, já que havia perdido muito sangue durante a batalha contra os cães de guarda de Mason e os meus ferimentos ainda não haviam cicatrizado totalmente.

Algum tempo depois, tínhamos voltado para a sala a fim de trocarmos mais informações a respeito das nossas castas, quando alguém bateu à porta do chalé.

— Deve ser o Scott com notícias sobre o estado de saúde do seu amigo, Alexia.

Mason caminhou em direção à porta enquanto Gretta se manteve em minha companhia. Eu não podia ler os pensamentos dos lobos tão facilmente como lia a mente dos humanos, mas não precisei aguçar muito a minha audição para captar o que os dois homens à porta diziam:

— Nós o encontramos morto no piso do hotel. Teve o maxilar quebrado e o sangue se esvaiu do seu corpo.

Mason se virou imediatamente em minha direção. Abriu a porta para permitir a entrada de seus soldados e os três se posicionaram em pé, diante do sofá. Eles me olhavam com os olhos estreitos, e o cenho do líder dos lobisomens havia se fechado.

— Temos um problema, senhorita Di Grassi. E nós precisamos resolvê-lo.

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