Capítulo 14 - Dança com lobos
EU TINHA OUVIDO O SOM de pelo menos três pares de sapatos pisando com cautela o chão lá embaixo e deduzi logo que nenhuma das pessoas que adentravam a casa era o enfermeiro O'Brien. Um cheiro almiscarado recendia das roupas do trio e os seus batimentos cardíacos eram firmes e intensos, quase como os de animais selvagens a espreitar a sua presa.
— Alex, nós não estamos mais sozinhas...
A garota curvou as costas no momento em que o seu olfato também detectou a presença de estranhos dentro da casa. Suas presas vampiras saltaram por entre os dentes antes mesmo que nossos visitantes terminassem de subir os degraus, e ela assumiu uma posição defensiva, a menos de dois metros da porta.
— Você estava certa, Bethany. São duas malditas vampiras invadindo o nosso território!
A única iluminação no interior do quarto era a do facho fino de luz da rua que entrava por uma fresta da janela. Estávamos ocultas pelas sombras, mas o trio que entrava pelo quarto conseguia nos enxergar com perfeição. Um dos rapazes ficou à porta obstruindo a nossa passagem, enquanto o outro acompanhava a moça que parecia ser a líder do bando. Ela tinha cabelos castanhos, olhos verdes e lábios finos. Vestia um casaco marrom puído nas mangas e uma calça escura.
— Recebemos um chamado a respeito de duas estranhas rondando uma casa de subúrbio e viemos verificar. Saquei na hora que só podia se tratar de duas vagabundas "chupas" querendo encrenca.
A moça possuía um forte sotaque britânico e seus olhos eram estreitos, dando a ela um aspecto ferino. O sujeito ao seu lado tinha a pele preta e, apesar de não ser muito alto, ostentava porte atlético por baixo do casaco velho que usava.
— E vocês são quem? Os vigias do bairro?
O tom de Alex exalava sarcasmo. A garota à nossa frente deu dois passos e afrontou a minha filha, no que resolvi intervir, antes que os ânimos se exaltassem ainda mais.
— Não sabemos quem são vocês ou quem pensam que somos, mas já estamos de saída. Não queremos encrenca.
— Tarde demais, chupa! — O rapaz de pele escura me deu um empurrão, o que deu ainda mais base à minha teoria sobre a sua força. Ele não parecia um humano comum, mas pelo modo como nos chamava por aquele apelido pejorativo, eu sabia que ele e os outros dois também não eram vampiros.
— Se encostar nela outra vez, eu arranco o seu braço!
A moça e os comparsas começaram a rir ante a bravata de Alex. Ela voltou a encarar a minha filha e, numa postura inteiramente desafiadora, espalmou as duas mãos em seu peito, a empurrando para trás.
— Quero ver tentar, "baby-chupa"!
Antes que eu pudesse conter a sua ira, Alex saltou sobre a outra e as duas se engalfinharam pelo chão do quarto. O som de socos passou a estalar no interior do espaço restrito, mas eu não tive chance de ajudar a minha filha. Os dois rapazes se precipitaram contra mim e, de repente, estávamos em uma contenda totalmente sem sentido ali dentro.
Assim como o primeiro, o segundo encrenqueiro também era dotado de força ampliada, e um de seus socos me virou o rosto com o impacto, enquanto o outro tentava segurar os meus braços para me imobilizar.
Quem são essas pessoas e o que querem com a gente?
Os três possuíam o mesmo odor almiscarado por baixo de suas roupas e postura animalesca. Retesavam os músculos e exibiam as presas antes de atacar, além de emitir um tipo de rosnado de cão feroz para se comunicar. Eu já tinha visto atitudes semelhantes em Sergio Gutierrez quando ele estava prestes a se transformar, e a minha dedução não podia ser mais óbvia:
— Eles são lobisomens, Alex!
Alex estava em clara desvantagem física naquele momento, sendo sobrepujada por golpes tão violentos quanto incansáveis no rosto. A garota Bethany era mais velha e mais experiente que ela, o que justificava a sua vantagem em batalha.
— Acho que a "baby-chupa" não é tão feroz quanto achava que era. Sou eu quem vai arrancar os seus braços, sua vadiazinha loira!
Eu temia que as ofensas da britânica quebrassem o autocontrole em que tanto Alex vinha trabalhando para não ceder à raiva, mas eu estava de mãos atadas naquele momento e não a podia ajudar. À minha frente, meus dois adversários se transformaram instantaneamente em criaturas cobertas de pelos escuros, focinho de lobo e garras de quase oito centímetros de comprimento a saltarem das extremidades dos dedos de mãos e pés. Me atacaram em conjunto antes que eu pudesse me esquivar, e me esmagaram com toda força contra o armário atrás de mim.
Eu não havia me preparado para uma batalha daquelas proporções ao desembarcar em West Ham no começo da noite e não tinha nada comigo além dos meus próprios punhos para enfrentá-los. Atingi o joelho do primeiro deles com um chute bem colocado enquanto impedia que as garras do outro rasgassem o meu rosto. Ele soltou um ganido enquanto se abaixava sentindo o ferimento, e aproveitei para jogá-lo para longe.
— McCready!
A garota berrou a plenos pulmões quando viu o lobisomem mais baixo voar através da parede lateral e despencar os dois andares rumo ao quintal lá embaixo. Ignorando o meu feito extraordinário, eu ainda estava ocupada em me esquivar das garras do seu colega e dei sorte quando ele as enganchou na madeira do armário ao tentar me apunhalar.
— Você não devia ter me empurrado daquele jeito, garoto.
O som dos ossos de seu braço se partindo foi aterrador e a criatura uivou com a dor causada pelo meu ataque. Eu havia empregado toda a brutalidade que me cabia ao atingir o seu rádio em um golpe descendente e, pelo menos por alguns minutos, eu o incapacitei.
Alex começou a sorrir mesmo caída no chão quando me viu se aproximar da sua adversária arrogante. A segurei pelo colarinho da blusa e a joguei contra a parede perto da janela. Enquanto ela caía desengonçada, a se maldizer, eu puxei Alex do chão e me pus a correr com ela daquele sobrado, vencendo as escadas e saindo a toda velocidade pela porta de trás.
— Eu não sei quem são eles, mas não estou a fim de trocar tapas com esses animais a troco de nada.
Alex estava sangrando pelo nariz, mas não parecia gravemente ferida. Enquanto corríamos, na tentativa de despistar os três licantropos, ela limpou o sangue com a manga da blusa e ajeitou os cabelos desgrenhados.
— Aquela garota bate forte. Ela quase quebrou o meu nariz!
Alcançamos a esquina da Amity com a Portway e não paramos até que encontrássemos um ponto de táxi ainda funcionando àquela hora.
— Achei que tinha aprendido Krav Magá e técnicas de defesa pessoal. Você nem sequer levantou a guarda enquanto aquela vadia te espancava!
— Levantei sim — retrucou ela sem nem ofegar, apesar de estar correndo por quilômetros seguidos. — Não tenho culpa se ela era mais forte que eu! Se pelo menos eu pudesse me transformar...
— Você não pode depender somente dos seus outros dons o tempo todo, Alex. Além do que, nós nem sabemos se você já é capaz de controlar a sua porção loba... E se você enlouquecer durante a batalha?
— Eu não vou enlouquecer...
Alcançamos um ponto de táxi e eu me apressei em pagar adiantado em libras para que o motorista nos conduzisse dali até o hotel onde Sergio nos esperava. O homem usando uma boina azul e bigode espesso tinha ficado intrigado pela nossa aparência um tanto quanto surrada, mas resolvi ignorá-lo enquanto confabulava em cochicho com Alex.
— Acha que aqueles três têm alguma coisa a ver com o enfermeiro que fomos visitar? Costel possuía algum tipo de conexão com lobisomens?
Por segurança, estávamos conversando em romeno, o que atraiu ainda mais a curiosidade do chofer inglês a nos espiar pelo espelho retrovisor. O veículo trafegava em velocidade pela rua Evesham, seguindo sentido oeste.
— O tio Costel nunca me falou nada sobre lobisomens. Ele sempre demonstrou detestar essa raça, acho que jamais se associaria a eles.
— Eles mencionaram algo sobre nós duas estarmos invadindo o seu território. De que território estavam falando? West Ham? Londres?
Algum tempo depois, conseguimos chegar ao hotel e nos encontramos com Sergio que parecia preocupado com a nossa demora. Removi o casaco de couro arruinado pelas garras dos dois lobisomens e, em seguida, relatei tudo o que havia acontecido em Amity, incluindo a emboscada.
— Lobisomens em Londres? Isso é muito surpreendente!
Sergio estava bastante excitado com a possibilidade de que existissem outros como ele em território britânico, mas eu o adverti quanto às chances de que estivéssemos em meio a algum tipo de guerra entre lobisomens e uma outra facção desconhecida na cidade. Desde a sua juventude, o rapaz jamais havia tido a chance de conviver com outros licantropos, e ele se entristeceu por supor que os três que nos haviam atacado fossem do tipo malignos.
— Há alguma chance de que eles tenham seguido vocês até aqui? — Sergio estava encostado na parede lateral do quarto, preocupado.
— Impossível — respondi, certa de que havíamos despistado os lobos. — Eu os feri bastante antes de escaparmos da casa. Mesmo que nos farejassem, eles não teriam a audácia de voltar a nos enfrentar.
Alex estava agora sentada na beirada de uma das camas do aposento que usaríamos para descansar durante a manhã. Tinha conseguido guardar o caderno de endereços da clientela do enfermeiro de West Ham dentro da calça, e folheava as suas páginas, atenta.
— Vai ser arriscado voltar amanhã à casa do enfermeiro depois da bagunça que fizemos por lá — disse ela, desviando os olhos claros do caderno um instante. — Os vizinhos devem ter chamado as autoridades assim que começamos a quebrar a casa inteira. Sem falar que os lobos podem estar à nossa espera quando chegarmos.
— Podemos descobrir onde fica o banco de sangue e espreitar nas redondezas até avistarmos o enfermeiro amanhã. De repente, damos sorte e conseguimos tirar alguma informação valiosa do sujeito.
Sergio parecia apoiar a minha sugestão e se encaminhou até o criado-mudo ao lado de uma das camas. Ao lado de um aparelho de telefone cinza, havia um volume grande e grosso com a lista telefônica completa de Londres e regiões próximas.
— Eu vou procurar agora mesmo o endereço do tal banco de sangue.
Passou pouco tempo entre a localização do endereço do local onde o enfermeiro trabalhava e o início do planejamento das nossas ações para o dia seguinte. Alex já havia desistido de procurar pistas na agenda que tirara do sobrado mais cedo e prestava a atenção na estratégia que eu planeava com Sergio, quando ela se esquivou na cama de modo arisco.
— Qual o problema, filha? Você ficou estranha...
Ela empinava o nariz no ar como a farejar algo fora do comum. Retesou os músculos e disse, na mesma hora:
— A minha nuca se arrepiou inteira e eu senti o cheiro deles, mãe... Eles estão aqui. Os lobisomens nos encontraram!
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