Capítulo 13 - Bem-vindos a Londres
UMA SEMANA E MEIA após o massacre em Petecu, Alex e eu nos mudamos para Edimburgo, e a minha filha teve a primeira oportunidade de conhecer o meu fiel mordomo e amigo Sergio Gutierrez.
A conexão entre os dois surgiu de maneira quase que instantânea. Além do fato de que ambos possuíam quase a mesma idade, eles também tinham em comum a maldição em seu sangue que os fazia se transformar em seres bestiais cobertos de pelos sob influência das fases da lua.
Sergio não sabia quem eram seus pais ou de onde ele se originava. Tudo que havíamos descoberto com uma investigação mais minuciosa era que o menino tinha sido entregue ainda bebê à uma igreja local em Caracas, na Venezuela, e que, desde então, havia vivido de lar adotivo em lar adotivo, nunca se ajustando a nenhum deles.
— Quando completei treze anos — contou ele, em uma conversa informal em nossa sala de estar, diante de Alex — vi o meu corpo se alterar involuntariamente, assumindo uma forma mais rígida, com pelos grossos saltando pelos poros. Os meus sentidos também enlouqueceram. Eu achei que estava doente e que morreria a qualquer momento. Mal eu sabia que era uma noite de lua cheia. A primeira em que eu seria tomado de assalto pela maldição do hombre lobo, ou lobisomem, como vocês chamam.
Havia uma lenda em toda a América do Sul, de onde ele vinha, que contava que o sétimo filho homem nascido depois de seis irmãs, consequentemente, recebia a maldição licantropa, e já nascia fadado a se tornar um lobisomem a partir dos treze anos de idade. Como não sabíamos quem eram seus pais ou se ele possuía mesmo seis irmãs, tudo nos levava a crer que seus pais, supersticiosos, haviam preferido doá-lo à igreja antes que o menino fosse tomado pelo mal.
Infelizmente para Sergio, no entanto, a superstição de seus pais possuía um fundo de verdade.
Enquanto Alex se adaptava à sua nova casa na Escócia e se afeiçoava cada dia mais ao nosso amigo latino, eu comecei a tomar providências para tentar localizar o meu meio-irmão pela Europa. Embora fosse muito difícil rastreá-lo daquela maneira, eu usei muitos dos recursos legais da minha empresa para descobrir o paradeiro de Theodor Constantinescu, mas mesmo o seu substituto idoso havia desaparecido dos radares.
Depois de esgotadas as formas processuais de achá-lo, comecei a vasculhar pessoalmente os endereços que Alex dizia conhecer para onde o tio e a mulher chamada Yuliya Mikhailova costumavam fugir sempre que precisavam se manter incólumes. Porém, não havia um único indício de que eles haviam passado por lá recentemente.
Ao longo de todos aqueles meses, eu vivi à sombra da ameaça velada que agora Costel representava. Eu não sabia onde ele estava ou o que andava fazendo, o que me fazia viver em constante apreensão dentro do meu castelo ou na rua, quando saía para gerenciar a minha empresa. A criatura que habitava o seu corpo tinha planos sórdidos de dominar tanto a minha filha quanto o vircolac em que ela se transformava, por isso, nada me tirava da cabeça que Thænael ainda pretendia reaver a sua tão preciosa aliada, nem que para isso, ele precisasse me destruir no processo... Como ele já havia tentado anteriormente.
Em 1966, o Reino Unido estava sendo governado pelo primeiro-ministro Harold Wilson do Partido Trabalhista. A economia escocesa estava se diversificando, com um aumento na oferta de petróleo e gás no Mar do Norte, o que levou ao crescimento da indústria offshore[1]. Enquanto a produção de aço e a mineração de carvão entravam em declínio, empresas como a minha mineradora Rux-Oil tinham motivos de sobra para comemorar.
Naquele período, com a descoberta de reservas significativas nas plataformas continentais do Reino Unido, a exploração e produção de petróleo e gás em áreas marinhas estava sendo realizada única e exclusivamente por empresas offshore. Graças aos investimentos milionários que meus associados e eu havíamos feito na modernização de nosso maquinário, a Rux-Oil tinha se tornado uma das principais petrolíferas do mundo, o que só nos favoreceu com a minha mudança para a Terra da Rainha.
Ali, eu conseguia acompanhar de perto todo o trabalho feito na costa do arquipélago britânico, e não precisava enfrentar o calor insuportável da Arábia Saudita, onde ficava a sede da minha companhia.
As nossas plataformas de perfuração eram instaladas em áreas onde haviam sido encontradas reservas de petróleo e gás, e eram projetadas para perfurar poços no fundo do mar, bem como extrair esses recursos para a superfície. Tínhamos a nosso favor uma complexa e ampla gama de habilidades e tecnologias para desempenhar bem o nosso trabalho, além disso, todo o nosso investimento tinha sido feito no intuito de adquirir equipamentos robustos capazes de resistir ao ambiente hostil e imprevisível do mar, bem como garantir a segurança de nossos trabalhadores com sistemas de segurança que também reduziam os impactos ambientais.
Logo no início daquele ano, a Rux-Oil aumentou o seu faturamento com a produção e negociação petrolífera em quase 45%, o que deixou a minha porção empresária bastante satisfeita.
Enquanto eu me preocupava em aumentar o meu patrimônio e garantir que os recursos financeiros dos quais eu tão bem gozava há décadas não se esgotassem, eu instruí Sergio no intuito de manter a segurança de Alex enquanto eu não estivesse por perto, além de ajudá-la a treinar o seu controle mental sobre a criatura mística que ela guardava dentro de si.
Embora fosse de uma "espécie" lupina diferente da garota, Gutierrez convivia há mais tempo com as suas transformações, e possuía maior experiência em controlar seu lado animal.
Em um fim de noite, após o meu expediente noturno no escritório da Rux-Oil em Glasgow, eu encontrei o meu mordomo a ensinar meditação para Alex. Os dois estavam em posição de lótus frente-a-frente, próximos ao jardim de inverno cultivado por ele ao fundo da propriedade. Emitiam sons intermitentes e monótonos pela boca, e pareciam em transe religioso. Nem sequer notaram a minha presença.
Sergio revelara que tinha aprendido técnicas de meditação indiana com um guru de Nova Déli que havia se mudado recentemente para o Reino Unido. Embora possuísse muito mais controle em relação à sua fera interior do que a minha filha, o rapaz ainda carecia de um nível grande de concentração para que não cometesse atrocidades ao se transformar, e ele estava disposto a ensinar o que aprendera à Alex.
— Ela é uma garota muito ansiosa e indisciplinada — contou-me ele certa vez, em segredo. — Ainda não consegue equilibrar o seu prana[2] totalmente, porém, tem feito avanços nas últimas semanas. Quando Alex aprender a controlar a conexão energética que há entre a sua mente, o seu corpo e o seu espírito, ela conseguirá entrar em harmonia com o varcolac que coexiste dentro dela e não será mais dominado por ele.
Desde Petecu, nenhum outro incidente envolvendo a criatura licantropa em que Alex se transformava havia ocorrido, o que indicava o sucesso das técnicas de Yoga ensinadas a ela por nosso mordomo. Embora eu soubesse que as suas mudanças não ocorriam apenas por influência de fases específicas da lua, como na época de seu pai, eu estava sempre de olho em notícias e em mapas astrológicos que informavam a respeito de fenômenos como "Lua de Sangue" ou eclipses.
Eu não sabia com exatidão se ela havia se transformado em todos aqueles dias, mas desde a sua saída do túmulo em Veneza até muito recentemente, havia ocorrido treze eclipses solares e doze lunares perceptíveis do nosso planeta. Gostava de acreditar que aqueles fenômenos não influenciavam mais em sua transformação, mas, de qualquer forma, eu já estava me preparando para o próximo, que ocorreria no mês de abril próximo.
Se Alex não aprender a se controlar, creio que um terceiro embate meu contra um vircolac pode significar o meu fim, pensei na época, desolada.
Em março daquele ano, entre as suas práticas iogues com Sergio, Alex se empenhou em tentar localizar antigos associados de Costel que pudessem nos ajudar a encontrá-lo. Graças ao acesso que ainda possuía com os diversos escritórios da Novvy Kordon pela Europa, a garota conseguiu o endereço de um antigo fornecedor do tio em West Ham e, tão logo tomou conhecimento daquela informação, a repassou para mim.
— O tio Costel tinha conexão com um cara chamado Nicholas O'Brien em West Ham. Ele era o enfermeiro de um banco de sangue que lhe traficava bolsas de sangue todas as vezes que nós dois tínhamos que fazer longas viagens para territórios mais isolados. Esse cara não costuma agir de maneira muito descarada por conta da natureza do que ele negocia, mas eu dei um jeito de achá-lo.
— Tráfico de sangue? — ela pareceu incomodada com a minha pergunta. — Você participava desse tipo de transação com o seu tio, Alex?
— Eu nunca encontrei com o tal enfermeiro pessoalmente, mas agora sei o seu endereço. Nós podemos localizá-lo. Provavelmente, ele voltou a fornecer bolsas de sangue do banco para o Costel e a Yuliya nesse período em que estiveram foragidos. Nós podemos obter informações sobre o paradeiro dos dois através desse cara.
A nossa viagem noturna de avião de Edimburgo até West Ham levou cerca de uma hora e meia e, tão logo desembarcamos, Sergio cuidou para nos conseguir hospedagem em território inglês, a cerca de cinco quilômetros de Londres.
— Trate de conseguir quartos opostos ao nascer do sol e sem janelas, se possível.
Alex e eu não tínhamos necessidade alguma de descansar à noite, mas era importante que eu tivesse um lugar seguro para me esconder da radiação solar durante as manhãs por conta das minhas necessidades especiais. Diferente de mim, devido a sua porção loba, a garota era imune ao sol e podia andar tranquilamente pelas ruas durante o dia.
Pensando em retrospecto, Costel tinha mesmo razão em querê-la como sua aliada. Alex era um espécime muito mais eficiente que eu para todo tipo de missão e seria uma guerreira perfeita se bem treinada. Eu tinha orgulho da minha filha.
Algum tempo depois do nosso desembarque, deixamos a nossa bagagem de mão a cargo de Sergio no hotel, tomamos um táxi e nos dirigimos logo para o endereço próximo à rua Amity, no centro de West Ham.
Aquele horário, todas as localidades do entorno jaziam vazias e silenciosas. Boa parte da população da cidade já estava em suas casas aproveitando o jantar ou assistindo aos seus programas de televisão favoritos.
A rua Amity era rodeada de sobrados simples de duas janelas no alto e quintal estreito à frente, e não demoramos a encontrar a casa onde o tal enfermeiro residia.
Entramos pelos fundos a fim de que não fossemos avistadas por curiosos que, porventura, estivessem espionando do alto das janelas sobre as nossas cabeças, e eu forcei a maçaneta da entrada de trás da casa pouco antes de invadirmos. Na parte de dentro, todas as luzes estavam apagadas e um breu muito grande tomava toda a sala, a cozinha e as escadas com acesso ao piso de cima.
Usando dos meus sentidos ampliados de vampira, procurei detectar presença humana no interior da casa tão logo atravessei o capacho de entrada, mas, para a nossa frustração, não havia qualquer sinal do morador por ali.
— Vamos dar uma olhada lá em cima — cochichou Alex, se valendo também da sua capacidade sobrenatural de enxergar no escuro para me ver. — De repente, encontramos alguma pista nas coisas do cara.
Alex demonstrava ter o olfato ainda mais aguçado do que o meu, e se pôs a identificar pelo cheiro os objetos mais comumente tocados por seu residente no interior do quarto. O local era mobiliado por uma cama de solteiro que virava sofá durante o dia ao centro, um armário de roupas no canto direito, uma cômoda à esquerda e uma escrivaninha ao seu lado, encimada por uma antiga máquina de escrever Underwood.
Vasculhei as duas gavetas da mesa e me pus a ler as anotações escritas à mão em um caderno de capa vermelha. Eu não entendia muito de química, mas havia dezenas de páginas contendo fórmulas complexas do que parecia ser a base para a fabricação caseira de algum tipo de medicamento entorpecente.
— Encontrei uma agenda — informou Alex, retirando de dentro de uma gaveta de meias um volume pequeno em capa preta. — Quem sabe não damos sorte de o sujeito ter anotado o endereço do tio Costel?
As chances de aquilo acontecer eram bastante remotas, mas passamos cerca de vinte minutos folheando a tal agenda e outros cadernos do interior das gavetas do enfermeiro na intenção de achar qualquer pista que fosse de Costel. Ao invés disso, em nossa busca, acabamos nos deparando com uma lista de clientes para os quais o sujeito vendia ilegalmente substâncias psicoativas como anfetaminas, barbitúricos, ácido lisérgico — mais conhecido como LSD — e até heroína.
— Não me admira que o sujeito traficasse sangue... pelo jeito, a especialidade dele é conseguir todo tipo de droga ilegal para quem pagar mais!
Eu estava atenta o tempo todo à parte da frente da casa e da vizinhança na esperança que o enfermeiro voltasse para casa ainda aquela noite. Invés disso, captei uma movimentação suspeita aos fundos do sobrado, junto à porta que havíamos forçado para entrar.
— Tem alguém lá embaixo...
[1] A indústria offshore abrange todas as atividades relacionadas à exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás em áreas marinhas, incluindo a construção e instalação de plataformas de negociação, sistemas de produção e tubulações submarinas.
[2] No Yoga, diz-se que o "prana" se refere à energia vital que flui através do corpo.
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