Capítulo 1 - Em busca de perdão

CENTO E DOZE ANOS haviam se passado desde a noite em que eu e o meu meio-irmão, Costel, tínhamos sido perseguidos por uma turba ensandecida de cristãos fervorosos munidos de pedras e tochas da fazenda de meu pai na Valáquia até a fronteira com Ploiesti. Naquela época, a Romênia não havia se formado como um país independente e eu era só uma jovem humana comum; ingênua e desesperada por salvação.

Entregue à própria sorte nas ruas frias de Bucareste, vivendo de restos de alimento nas praças da cidade, o meu destino ainda não havia se cruzado com o homem — ou o demônio — que viria a mudar completamente a minha história. Eu me chamava Alina Grigorescu, filha de Grigore e Ruxandra, e nem imaginava todas as agruras que seria obrigada a enfrentar a partir de então.

O ano era agora 1965 e, como costumeiramente acontecia em tempos de guerra, o cenário político do país onde eu nascera estava em franca revolução. A morte do presidente da República, Gheorghiu-Dej, tinha feito com que as recém-estabelecidas relações comerciais com os Estados Unidos, a França e a Alemanha fossem abruptamente interrompidas e repensadas. O Partido Operário Romeno havia assumido o poder e era a vez do seu primeiro secretário, Nicolae Ceausescu, instituir as novas diretrizes de governo.

Com a ascensão de Ceausescu ao cargo máximo da nação, uma reforma na Constituição foi inevitável e o anteriormente POR – Partido Operário Romeno – passou a se chamar, oficialmente, PCR – Partido Comunista Romeno. Naquele mesmo ano, o Parlamento declarou a República Socialista da Romênia e, embora ainda demorasse algum tempo até que Ceausescu se tornasse, de fato, o presidente do Conselho de Estado, as relações do país com a Alemanha Ocidental estavam cada vez mais estreitas.

Naquele período, o mundo ainda vivia sob a sombra da Guerra Fria e os continentes jaziam divididos entre o socialismo — representado pela URSS — e o capitalismo — com os EUA à sua frente. Apesar de se declarar comunista, a nova nação romena havia preferido manter distância diplomática dos soviéticos, e o plano de Ceausescu de estabelecer um estado independente se prolongou por mais alguns anos, adentrando, inclusive, a década seguinte.

Por onde se andava nas ruas da Transilvânia, cidade do Leste Europeu onde eu estava estabelecida desde o final do ano anterior, era cada vez mais comum avistar propagandas e cartazes com imagens do líder comunista Nicolae Ceaușescu estampados nas fachadas, além de seus slogans partidários. Naquele início de noite, o motorista do castelo, Petru, havia nos deixado em uma vila comercial próximo a Timisoara, e eu estava inclinada a restabelecer os meus laços maternos com Alexandra enquanto fazíamos compras.

As ruas do vilarejo estavam bastante agitadas para aquele horário e havia um número muito grande de pessoas a passear pelos mercados e lojas além das passagens estreitas. Apesar das mudanças sociais e políticas sofridas recentemente, a cidade ainda mantinha vivos muitos dos traços da sua história e da sua rica cultura. No entorno da área comercial, era possível enxergar pela iluminação urbana a estrutura imponente das igrejas ortodoxas e dos monumentos que remontavam ao período medieval. Mesmo passado tanto tempo da minha última visita àquela região, o sincretismo religioso-arquitetônico tão vívido na Transilvânia ainda me encantava.

A ideia daquele passeio era para que eu me reconectasse com Alex e nós duas voltássemos a ser as boas amigas que o éramos há dez anos, pouco antes de ela me ser arrancada violentamente do convívio. Eu havia passado uma década quase completa acreditando que Dumitri Ardelean — o homem que me transformara em uma vampira — havia tirado a vida da minha pequena filha após mordê-la. Desde a descoberta de que tudo não havia passado de um pesadelo dantesco e do seu retorno à vida, o meu maior desejo era voltar a ser a sua mãe. No entanto, a linda garotinha de olhos azuis agora era uma outra pessoa; mais fria, menos sentimental. E ela estava cada vez mais distante de mim.

— Essas cerejas estão maduras o suficiente, Alex. Por que não pede para que o vendedor as separe para você?

Estávamos diante de uma banca de frutos silvestres a escolher alguns dos ingredientes que usaríamos para preparar papanasi, a iguaria tipicamente romena que era a sobremesa preferida da minha filha.

Diferente do que eu tinha planejado para aquele dia, Alex não estava se divertindo. Andava de um lado a outro do mercado com feição séria, sisuda, como se estivesse incomensuravelmente entediada em me acompanhar à feira. Longe de mim, tinha se tornado uma jovem impaciente e irritadiça e, ao longo daqueles anos perdidos, deixara apagar o brilho radiante que fazia dela o único raio de luz capaz de me fortalecer. Que fazia eu me sentir viva.

Biologicamente, tinha quase vinte anos, levando-se em consideração que nós a havíamos encontrado ainda bebê no colo da mãe francesa, ao final da Segunda Guerra Mundial. Por conta das mutações sofridas em sua genética, todavia, Alexandra ainda possuía a aparência de uma menina de treze anos. Não envelhecia como as demais crianças e não se desenvolvia fisicamente com a mesma velocidade que os humanos. Por ser uma vampira convertida ainda na infância, o meu temor era que ela nunca viesse a possuir uma aparência adulta.

— Não gosto muito de cereja. Prefiro a sobremesa com raspas de limão ou laranja — disse-me ela, com evidente desinteresse no tom de voz.

Fazia muito tempo, mas eu ainda era capaz de me lembrar do sabor do creme de queijo de vaca derretendo na boca junto da compota de cereja que a minha mãe botava por cima da massa frita do papanasi. Os Grigorescu não gozavam de muita fartura e a nossa variedade alimentar da época era bastante limitada, por isso, era sempre especial quando tínhamos aquela iguaria à mesa.

Eu tinha sido doutrinada desde a infância a ser prendada na cozinha. Precisava saber cozinhar, bem como desempenhar perfeitamente todas as funções domésticas — papai achava que aquelas eram as qualidades de uma boa esposa, e que eu devia ser digna de arranjar um bom marido —, entretanto, eu nunca tinha aprendido a fazer aquela sobremesa como a mamãe. Ruxandra possuía um talento nato para a culinária e, embora eu não tivesse herdado nem um terço dessa sua aptidão, eu estava disposta a tentar cozinhar o papanasi aquela noite. Achava que valia o esforço e queria fazer por Alex.

— Por via das dúvidas, vamos levar as cerejas. Elas estão com um aspecto ótimo!

O homem que nos atendia atrás do balcão abriu um sorriso e começou a ensacar os frutos separados por mim. Alex se afastou com o intuito de apalpar as laranjas em outra seção da banca de hortifrúti e quis demonstrar independência no teste de qualidade táctil, como se não precisasse dos meus conselhos.

Após encontrar os frutos que dariam a liga necessária para a nossa sobremesa, compramos o queijo gordo, a manteiga para a feitura do Crème Fraîche, a farinha, o bicarbonato de sódio e os ovos. Petru nos ajudou com as sacolas as levando até o Jaguar e, em seguida, a minha filha quis continuar o passeio pela cidade, aproveitando que estávamos ali. Sugeriu que visitássemos uma das maiores atrações de Timisoara e, depois disso, caminhamos juntas até a Catedral Ortodoxa de São Jorge.

Diferente do que diziam as lendas e mitos escritos há séculos a nosso respeito, eu nunca havia tido problemas em pisar nos, assim chamados, "solos sagrados" das igrejas, abadias ou conventos. Desde a minha transmutação, símbolos religiosos como crucifixos, estátuas de santos ou mesmo água benta não me causavam qualquer mal-estar, por isso, aceitei adentrar a prodigiosa estrutura arquitetônica com Alex.

Era uma quinta-feira. Naquele horário noturno, nenhum culto ortodoxo estava sendo celebrado e a área dos assentos estava praticamente vazia. Quando nós duas entramos, havia uma senhora romena com os ombros envoltos em um xale e os cabelos cobertos por um lenço à nossa frente. Como era de seu costume, antes de se dirigir a um dos muitos bancos de madeira vagos, a mulher idosa uniu os dedos polegar, indicador e médio num triângulo, os umedeceu na fonte de água benta à direita da entrada e fez o tradicional sinal da cruz; tocando a testa, o tórax, o ombro direito e o esquerdo, nessa ordem, enquanto fazia uma breve reverência ao centro da catedral, diante da cruz pregada no altar.

Eu havia perdido muitos anos da educação e do crescimento da minha filha, por isso, não era capaz de dizer se ela já havia visitado um templo religioso como aquele antes. Seus olhos celestes brilhavam de entusiasmo e curiosidade ao adentrar o local sagrado e, num ato de típica rebeldia, ela imitou os gestos da mulher, incluindo o mergulho de dedos na água benta e o sinal da cruz, como que saudando a Santíssima Trindade.

— O que está fazendo, Alex?

Havia um sorriso levemente desdenhoso em seu rosto pálido. Ela uniu as palmas das mãos diante do peito e me encarou em tom desafiante antes de me responder:

— Estamos pisando em solo sagrado, mamãe. Precisamos nos arrepender dos nossos pecados perante o Senhor antes de entrar.

Após um riso de escárnio, a garota seguiu pelo corredor principal da imensa catedral e começou a se deslumbrar pelo seu espaço arquitetônico em estilo bizantino. O seu interior era dividido em três naves — cada uma com um teto abobadado e janelas altas que permitiam a entrada de luz natural — e, numa de suas laterais, um iconostásioimpressionante se destacava ao decorar uma parede inteira com ícones sagrados que separavam o altar da nave principal.

Ao olharmos para o teto da catedral, era possível enxergar uma série de afrescos que retratavam cenas bíblicas e os santos ortodoxos. As pinturas eram altamente detalhadas e coloridas, o que criava uma atmosfera vibrante e imersiva dentro daquele ambiente. Mesmo eu que não era grande apreciadora de arte de um modo geral, conseguia compreender o valor incutido naqueles desenhos, assim como a Alex em seu desdém pela cultura sacra.

— Estar aqui é como poder presenciar um pequeno pedaço da história da Romênia — disse, tentando criar algum tipo de empatia na menina loira ao meu lado. Alex perdeu algum tempo admirando as pinturas nos afrescos sobre nós, depois, se voltou para o altar, todo decorado com ricos entalhes em madeira e detalhes ornamentais em ouro. Sua íris estava fixa na cruz de três barras da fé ortodoxa e na imagem de Jesus Cristo presa a ela, quando me perguntou, em tom lúgubre:

— Acha mesmo que somos criaturas amaldiçoadas por um Deus que a tudo vê e a tudo sente, mamãe?

A senhora em seu xale tinha se sentado na nave lateral a que estávamos. De onde estava prostrada no genuflexório atrás do banco, a orar, ela não nos podia ouvir.

— Algum tempo antes de ser vendida pelo seu tio ao homem que me transformaria em uma vampira, eu e ele passamos muita fome e frio nas ruas de Bucareste, Alex. Depois de muito tempo, nós dois encontramos abrigo na torre abandonada de uma igreja católica infinitamente menor que essa catedral. Quando sentia o estômago roncar pela falta de comida e os lábios tremerem por conta do inverno rigoroso, às vezes, eu me apegava a uma fé que nunca pertencera aos Grigorescu. Eu olhava para o alto e pedia para que a Força Superior que regia o universo me salvasse e me tirasse daquela situação. Mas nunca houve qualquer resposta às minhas preces ou às minhas súplicas. Se havia mesmo uma criatura acima do Céu e da Terra a me ouvir naquela hora, ela me ignorou por completo.

A garota estava atenta às minhas palavras. Antes de continuar a lhe responder, os meus olhos se perderam por alguns instantes no rico conjunto de ornamentos e objetos litúrgicos que encimavam o altar à nossa frente, incluindo candelabros, incensários e vasos. As paredes do altar eram cobertas com ícones sagrados que retratavam a Virgem Maria, os santos e os anjos. Todos cuidadosamente dispostos em um arranjo simétrico.

— Eu não sei se fomos amaldiçoadas por esse Deus que me deixou convalescer à míngua sobre o teto daquela igreja, filha. Tudo que sei é que, se esse Ser Divino existe mesmo, Ele não me pareceu nem um pouco interessado a sequer nos julgar por nossos erros passados. Nós, os vampiros, fomos condenados à danação eterna sem antes termos o direito ao benefício da dúvida celeste.

Ela ficou séria por um momento como que absorvendo o que eu tinha dito. Desviou o olhar para o mesmo ponto no altar que eu encarava e, então, emitiu um riso tão sinistro quanto repentino.

— Como poderia exigir algum tipo de perdão depois do que você e o tio Costel fizeram juntos, mamãe?

Eu me senti aturdida ao ouvi-la usar aquele tom de acusação comigo.

Após a trágica morte de Enzo Di Grassi, o meu marido e o pai adotivo de Alexandra, eu havia me dedicado a contar a ela parte da história vivida desde a minha transformação em vampira até a minha luta contra as forças místicas malignas representadas pelos feiticeiros Adon Gorky e Iolanda Columbus. A garota conhecia detalhes sobre a minha jornada pela Europa e América do Sul em busca das pessoas que haviam me jogado em uma câmara mortuária por mais de quarenta anos, e também sobre a minha fuga da Romênia, a fim de escapar do jugo de Dumitri.

Apesar disso, um detalhe importante do meu passado tinha sido ocultado dela propositalmente. Algo que me envergonhava profundamente e do qual eu sentia asco ao me lembrar. O meu maior pecado estava prestes a vir à tona e Alex se aproximou de mim para cochichá-lo em meu ouvido dentro da catedral:

— Eu sei sobre o seu segredinho sujo, mamãe. — Ela fez uma pausa para observar a minha expressão de surpresa. — O tio Costel me contou o real motivo pelo qual vocês dois foram expulsos da fazenda do vovô. Eu sei que vocês tiveram um caso amoroso ao longo de vários meses. Sei que você estava grávida quando fugiu da Valáquia e sei que vocês foram proibidos de retornar para casa depois disso. Eu sei de tudo.


[1] A República Federal da Alemanha (RFA), também conhecida como Alemanha Ocidental, era capitalista e declarou-se aos Estados Unidos durante a Guerra Fria.


[2] Iconostásio é uma parede ou tela decorada com ícones sagrados usados ​​​​na tradição cristã ortodoxa e algumas denominações orientais. É uma característica arquitetônica distinta encontrada em igrejas ortodoxas e separa o altar do resto da nave principal da igreja.


[3] Genuflexório é um objeto usado em algumas tradições cristãs como um suporte para ajoelhar-se durante a oração ou adoração.

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