Capítulo 8 - Terror em Córdoba
UMA SEMANA HAVIA SE PASSADO desde que Adon tinha enfrentado Costel tentando fazê-lo entender que ele precisava ser cauteloso sobre o nosso passado na Romênia, e naqueles dias, eu tomei a decisão que considerei a mais acertada.
— Me leve até a mulher que pode me curar da minha maldição.
Adon tinha se recuperado bem dos ferimentos quase mortais e esperamos a noite para tomarmos uma embarcação que iria nos levar, desta vez, para a Espanha, país onde morava Iolanda Columbus, uma bruxa capaz de me curar.
Devido as minhas condições, eu era obrigada a me esconder nos porões do barco sempre que o sol raiava do lado de fora e os ratos eram tudo que eu tinha para me banquetear por dias inteiros lá embaixo. Tinha aprendido logo em minhas primeiras semanas como vampira que a radiação solar era extremamente nociva em contato com a minha pele e que eu não podia perambular por aí durante o dia se quisesse durar. Ainda como prisioneira de Dumitri, tinha descoberto que artefatos religiosos como crucifixos, terços, água benta, estátuas de santos ou mesmo a Bíblia não surtiam qualquer efeito negativo em mim e só mais tarde descobri o que o alho e o sangue gelado podiam fazer a um vampiro. Nesse quesito não havia nada de lenda nas histórias e o próprio Dumitri serviu para me comprovar.
Eu não sabia nada sobre a Espanha e quando firmei os pés em seu solo, descobri que ela era quente demais para um notívago. Após alguns dias sacudindo dentro do barco, numa viagem que nos levou pelo Mar Mediterrâneo através das ilhas gregas e da Sicília, enfim desembarcamos em Barcelona, onde ainda teríamos algumas horas até chegar em Córdoba, a terra natal da senhora Columbus. Uma carruagem contratada por Adon nos levaria diretamente à cidade, e já pela metade do caminho, eu tinha dúvidas se conseguiria chegar viva até lá. Eu tinha me alimentado apenas de ratos durante vários dias e me sentia fraca demais até mesmo para conversar com o meu acompanhante. Faminta, eu ouvia as veias e artérias do condutor da charrete pulsando enquanto eu me via deitada no colo de Adon. Embora o veículo fosse coberto, eu conseguia sentir todo o calor excessivo daquele país queimando a minha pele, o que estava me exaurindo ainda mais as forças.
— Você está protegida aqui dentro, querida. Tenha calma.
Adon usou um cobertor para me cobrir e isolar a luz solar, mas eu estava cozinhando.
Por que fui aceitar fazer essa viagem idiota?
Quando respirava fundo, lembrava que estava ali para me curar daquela maldição e que, em breve, estaria livre para andar sob o sol, como em minha juventude na Valáquia.
Queria que mama pudesse me ver curada também!
Eu despertei algum tempo depois num lugar escuro com cheiro de incenso. Estava desorientada e não conseguia enxergar direito mesmo com a minha capacidade de ver claro como o dia até em condições péssimas de iluminação. Estava deitada sobre uma mesa de mármore com uns dez centímetros de espessura e havia algo preso ao meu braço esquerdo. Um objeto fino o bastante para penetrar minha pele.
— A-Adon?
Ao tentar mover o meu braço direito, percebi que ele também estava atado ao mármore me impedindo de levantar. Sentia-o dormente e ao sacudi-lo tentando reestabelecer a sua sensibilidade, ouvi o som de correntes. Os meus braços estavam presos assim como os meus pés.
— O que está acontecendo?
A próxima coisa que me lembro é de ter sido acordada com um tapa desferido em meu rosto por uma senhora de cabelos pretos com mechas grisalhas evidentes no coque malfeito. Enquanto tentava enxergar direito o que estava à minha frente, ouvi a voz de Adon à minha direita.
— Ela está enfraquecida o bastante. O extrato tirou as suas habilidades principais. Podemos começar.
A sala onde eu estava presa ainda era escura demais. Eu podia ver apenas vultos se movimentando ao meu redor, e de repente, a fagulha de uma chama surgiu bem diante dos meus olhos. Faiscante. Quente. A mulher estava agora à minha esquerda, falando num idioma que eu não conhecia. Da mão dela pendia uma espécie de amuleto preso a uma corrente fina e o metal do objeto ardia em chamas. Adon encontrava-se do outro lado da mesa repetindo exatamente o que a mulher dizia, ipsis litteris. Além do incenso que empesteava o ambiente e do perfume adocicado que vinha da velha, havia o cheiro de alho me enfraquecendo, me queimando as veias.
— S-Solte-me, Adon... Eu...
Naquele exato momento, o amuleto foi encostado em minha testa e eu senti o meu corpo inteiro em brasa. Meu grito ecoou feito a nota mais aguda de um violino e a casa estremeceu até a sua fundação. A mulher estava queimando a minha testa com aquele colar e a dor era agoniante. Forcei ao máximo meus músculos para tentar me libertar das correntes que me mantinham imóvel sobre aquele mármore, mas foi em vão. Se aquele ritual a que estava sendo submetida era o preço a se pagar para que eu voltasse a ser uma humana normal, eu estava profundamente arrependida de ter aceitado participar daquilo.
Eu voltei a apagar depois de ser queimada viva e me lembro de ter sido despertada violentamente outras três vezes pela mulher velha que voltou a falar naquele idioma desconhecido e tornou a me queimar com o amuleto em chamas. Além da minha testa, a maldita queimou-me entre os seios e a parte interna da minha coxa esquerda, sempre entoando aquele cântico mais alto enquanto os meus gritos ecoavam na câmara. Na última sessão, forcei a minha audição para captar o que eles diziam, mas estavam falando na língua dela, algo que não compreendi na época.
— No está funcionando. Ella es más fuerte de lo que pensamos.
A quarta vez que fui despertada foi de forma menos brusca e antes de abrir os meus olhos, senti algo ser arrancado do meu braço esquerdo. Um rapaz de cabelos longos presos num rabo de cavalo segurava um tipo de candeeiro à sua frente e ele possuía uma ferramenta que estava usando para abrir os grilhões da minha prisão.
— Levántate. No es seguro aquí.
Eu não conseguia entendê-lo, mas claramente ele estava me libertando daquele lugar. A luz do objeto faiscante me permitiu ver pela primeira vez o entorno daquela câmara e ela se assemelhava a um porão. Tinha mofo no teto, marcas de fogo em todas as paredes e não havia qualquer janela para ventilação. A única abertura para entrar ou sair daquele lugar era a porta de madeira maciça por onde aquele rapaz me arrastou com muito esforço. Eu não conseguia sentir as minhas pernas e estava tão debilitada quanto na noite em que despertei no castelo de Dumitri, dois dias após ter sido transformada em vampira.
Eu fui curada! Eu voltei a ser humana! Pensei, esperançosa.
O jovem tomou-me nos braços tão logo chegamos a um quintal arborizado e seguimos por uma trilha calçada com pedras negras, rodeada por orquídeas e lírios do campo. O perfume era agradável e a noite estava enluarada. O meu braço esquerdo estava tão dormente quanto as minhas pernas e eu o sentia queimar por dentro. O cheiro de alho ainda me atormentava e quando avistamos uma carruagem escura presa a dois cavalos brancos, o rapaz voltou a falar em seu idioma.
— Te llevaré desde aquí. Eres muy débil y no dejaré que mueras como los demás.
Desmaiei de novo no momento seguinte.
Eu fui despertada por um odor forte de sangue que enlouqueceu os meus sentidos colocando-me em alerta. Eu estava deitada num lugar sujo e escuro decorado por teias de aranhas enormes em cada canto do teto baixo.
Ótimo! Estou em outro porão, ironizei em pensamento. Minhas presas tinham saltado para fora instintivamente e percebi que estava faminta. Minha visão noturna funcionava um pouco melhor agora e só depois que me mexi é que reparei nos dois homens próximos da escada. Um estava a meio degrau da parte superior, o outro jazia agonizante no sopé com o pescoço rasgado.
— Você está fraca. Precisa se alimentar.
O rapaz que tinha me tirado da prisão estava tentando se comunicar num russo meio errático, mas que pude compreender. O coração da presa que ele me oferecia estava prestes a parar de bater e se ele morresse, não me serviria mais de alimento.
— E-Eu não me alimento de inocentes...
— No te preocupe. José es um sinvergüenza. Me ha debido dinero por ãnos — e a parte final ele falou em russo —, não fará qualquer falta ao mundo.
Senti que não podia me dar ao luxo de duvidar do juízo de valor do meu salvador, e no momento seguinte, me arrastei até o agonizante José, não deixando uma gota só de sangue em seu corpo. Ainda estava faminta.
Algumas horas se passaram desde que tinha terminado o meu banquete, então, ouvi o alçapão ser aberto e ele surgiu descendo as escadas. Olhou com semblante assustado o corpo de José estatelado largado num canto, mas estendeu a sua mão até mim, ali sentada no chão feito uma mendiga maltrapilha e despenteada.
— Acho que não vai me atacar agora que está alimentada, certo, chica?
Balancei a cabeça negativamente, em seguida, apanhei a sua mão e caminhei com ele escada acima.
Estávamos num tipo de veleiro antigo com três mastros denominado charrua. Aquele tipo de embarcação à vela era comumente utilizado para o transporte de mercadorias e munição de guerra. Ao nosso redor só conseguia ver o mar. Escuro, calmo, refletindo o céu salpicado de estrelas. A alguns quilômetros de onde estávamos, conseguia enxergar um arquipélago e nos aproximávamos rápido dele. Meu acompanhante movia uma das velas habilidosamente, tornando o vento favorável para que a embarcação nos conduzisse na direção certa. Notei-o olhando disfarçadamente através do meu decote. Logo depois, encarou-me nos olhos e falou, ainda num russo sofrível:
— Me chamo Alejandro. A velha que fez esse estrago em você — e ele apontou entre os meus seios — é a minha mãe, Iolanda.
Meus olhos foram levados até o decote feito à força em meu vestido rasgado, e então, tateei a cicatriz já quase totalmente curada em meu peito.
— Sua mãe tem um jeito meio invasivo de curar os outros! — ironizei, torcendo para que o russo de Alejandro fosse um pouco mais além do que ele já tinha tentado falar.
— Curar? — Ele olhou-me sério com os olhos castanhos grandes focados nos meus. Seus cabelos compridos mal amarrados esvoaçavam ante o vento forte que soprava à estibordo. — Ela não estava tentando te curar. Ella estaba tratando de dominarte.
Eu não tinha entendido completamente o que ele dissera, mas o seu semblante me mostrou que eu estava enganada quanto as intenções de Adon e Iolanda naquele ritual. Embora não fosse mais uma vampira juvenil, eu notei quase tarde demais que tinha sido ingênua em confiar tão cegamente nas palavras persuasivas de Adon.
Por isso ele estava tão empenhado em tirar Costel do meu caminho. Meu meio-irmão era um empecilho para os seus planos de me dominar!
Uma lágrima espessa e quente de sangue inundou meu olho direito naquele instante. Alejandro percebeu e se aproximou.
— Há anos minha mãe e aquele ucraniano arrastam vampiros semimortos para o porão de nossa casa em Córdoba com o intuito de os torturar com rituais macabros de possessão. Você deve ser a vigésima ou trigésima tentativa dos dois. Nunca os vi tentar curar ninguém. Pelo contrário. Cada um da sua raça que entrou naquele porão só saiu de lá morto. Eu não podia deixar o mesmo acontecer com você.
As ilhas estavam ainda mais próximas do barco. Dava para ver um cais e mais três embarcações ancoradas ao lado dele.
— Por que resolveu me ajudar, Alejandro?
Ele foi até a bombordo e ajustou a outra vela. Deu um nó na corda presa ao assoalho do barco e se voltou para mim.
— Eles estavam muito próximos de conseguir dominar você. Assim como tinham feito com os outros notívagos, usavam magia para controlar as suas vontades, para deixá-la totalmente à mercê dos seus desejos. Nenhum outro tinha resistido tanto quanto você resistiu e eles iam continuar tentando inúmeras vezes até que a sua mente se curvasse aos feitiços.
"No está funcionando. Ella es más fuerte de lo que pensamos". Aquela frase dita por Iolanda me veio à mente. Ela dizia que não estava funcionando o encantamento, mas que ao mesmo tempo, eu era forte demais. Bem mais do que eles esperavam.
— O amuleto com que a minha mãe a queimou funciona como uma espécie de condutor entre o mundo físico e o metafísico. Ela estava abrindo uma passagem para que um poder maior do que podemos compreender entrasse em sua mente e dominasse a sua vontade. Eu também sou versado em magia. Nem perto do que minha mãe e Adon são capazes de fazer, mas o suficiente para compreender que nada ia poder impedi-los se uma vampira poderosa como você se tornasse aliada deles. Os dois estão juntos nessa busca por poder há mais tempo do que eu e você temos de vida e já vi forças poderosas demais serem invocadas naquele porão para querer que aquilo passasse a fazer parte de nosso mundo.
Tateei mais uma vez a cicatriz em meu peito e senti a da testa arder quando os meus cabelos esvoaçaram sobre ela. Logo em seguida, olhei as feridas em meu braço esquerdo e o ouvi continuar.
— Eles sintetizaram um tipo de extrato à base de alho para enfraquecer vampiros. Seu organismo deve estar lutando agora para expelir tudo que injetaram em você. Vai demorar até que esteja completamente recuperada. Seus dons estarão enfraquecidos até que cheguemos à América do Sul.
— Aquelas ilhas... estamos indo para a América do Sul?
— Não, claro que não — ele pareceu divertir-se com a minha ignorância geográfica —, você não ficou tanto tempo desacordada para que conseguíssemos chegar à América nesse período. Saímos das Ilhas Canárias, e aquelas — e ele apontou à nossa frente — são as ilhas portuguesas de Açores. Tenho um conhecido lá que vai nos ceder espaço numa grande embarcação que irá nos conduzir por muito tempo até o Brasil, um país sul-americano que tem aceitado bem imigrantes portugueses.
— O que vamos fazer nesse país... Brasil?
— Nos esconder de minha mãe por ora. Depois, nós vamos deixar o tempo nos dizer.
Eu sentia verdade nas palavras de Alejandro e embora eu tivesse sido enganada muito recentemente pelo charme misterioso de outro homem, percebi que eu não tinha muita escolha naquele momento além de confiar no espanhol. Eu não podia retornar para a Rússia já que tinha sido desmascarada por Adon e embarcar de volta para a Romênia estava fora de cogitação, uma vez que eu podia ser localizada pelos informantes do ucraniano ou pior... pelo próprio Dumitri, que não devia estar nada feliz depois que eu o tinha feito beber sangue velho. Eu era agora uma fugitiva e o meu destino era totalmente incerto do outro lado do mundo num país tropical do qual eu nunca tinha ouvido falar.
Oh, Costel. Se pelo menos você estivesse aqui comigo!
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