Capítulo 7 - Confronto inusitado

A SITUAÇÃO POLÍTICA estava mudando rapidamente na Rússia sob o reinado de Alexandre II, e além da abolição da servidão promulgada pelo czar, uma nova Assembleia Constituinte instalada por grupos radicais começava a discutir ideias socialistas dentro do país. Enquanto intelectuais e estudantes viam no campesinato uma classe revolucionária contra o regime de Estado atual, a aristocracia via com preocupação o fim de certos privilégios antes fortemente gozados por ela. Aqueles assuntos eram amplamente comentados durante as festas que agora eu e Costel frequentávamos como os irmãos Vassiliev, e graças às aulas de Ivan, conseguíamos discutir de igual para igual com os prolixos. Nos passávamos facilmente entre eles como os órfãos de magnatas à frente das empresas dos pais, mas foi numa daquelas noites que me deparei com alguém que parecia saber muito bem sobre nosso passado.

Era verão na Europa quando adentrei o salão principal onde um festejo em nome de Natasha Petrova Semyonova tinha sido organizado. Semyonova era a noiva de um importante conde moscovita e o casal comemorava a sua união na presença de grande parte da elite russa. Eu estava particularmente linda aquela noite. Meus cabelos negros estavam presos em um coque com uma tiara prateada e eu usava um vestido longo com detalhes em vermelho e preto. Um corpete afinava ainda mais a minha cintura enquanto a saia rodada escondia a sinuosidade sempre tão elogiada das minhas pernas. Meu busto estava avolumado pelas linhas do corpete e minha maquiagem ressaltava os meus traços joviais. Eu não tinha mais os meus dezoito anos, mas a minha aparência não tinha se alterado em nada desde que havia sido mordida naquela véspera do feriado de Santo André.

— Vestido tão lindo quanto os seus belos olhos azuis, jovem dama.

O galanteio surgiu de um homem alto vestindo um terno azul de veludo ornado com uma gravata carmesim. Ele ergueu a mão direita espalmada e recebeu a minha estendida, dando-lhe um beijo em cumprimento. O toque dos seus lábios era macio e deu para ouvir o ritmo compassado da sua pulsação dentro do peitoral largo.

— Gentil da sua parte me notar em um salão tão repleto de beldades.

— De fato — sorriu ele, exibindo uma dentição tão alinhada quanto alva —, nenhuma delas, no entanto, apresenta um sotaque tão aprazível.

Era a primeira pessoa que falava sobre o meu sotaque estrangeiro. Ninguém havia mencionado aquele detalhe em muitos anos desde que eu havia me mudado para Moscou.

— Como disse que se chama? — perguntei intrigada.

— Não disse — e ele então recolheu o sorriso encarando-me com seus olhos cinzentos —, me chamo Adon, senhorita. Adon Gorky.

— Gorky? Como na lenda do fantasma do condenado na estrada de Gorky? — Procurei mudar o foco da conversa citando uma das histórias sobrenaturais que constavam num dos livros de Ivan. Ele insistiu:

— Vejo que andou estudando sobre a cultura russa, senhorita... — e ele aguardou que eu completasse.

— Dasha. Dasha Grigorevna Vassilieva.

— Ah, sim, claro. Do clã dos Grigorevich. Não havia uma família na Valáquia chamada Grigorescu? É de lá o seu sotaque?

Aquele comentário pegou-me de surpresa e senti o meu humor mudar completamente. Um garçom passou servindo algumas taças de bebida e farejei de longe a safra do Bordeaux que Dumitri bebia. Também era meu preferido. Com gosto de sangue.

Será esse homem um enviado de Dumitri? Me perguntei.

— Não conheço a Valáquia, senhor — e eu sorri meio desconcertada. Achava que não podia mais ficar sem graça agora que era uma morta-viva, mas Adon tinha conseguido me deixar daquele jeito.

— Não se preocupe. A maioria dessas pessoas — e ele olhou ao redor de nós, pela multidão que transitava pelo salão de festas — vive em fingimento eterno. Uns fingem que são inteligentes, outros fingem que são fieis e há ainda aqueles que fingem viver em outra realidade que não a sua. Todos aqui estão em uma constante farsa, seja por um motivo ou outro. Seu segredo está a salvo comigo.

Adon tinha um brilho intrigante nos olhos. O rosto quadrado de linhas de expressão bem marcadas parecia uma máscara ocultando muito secretamente a real natureza do seu ser. Eu precisava recuperar a dianteira que ele havia conquistado, mas a sua mente estava fechada para mim, instransponível.

— E qual seria o seu segredo, senhor Gorky?

Ele foi direto:

— Meu desejo quase palatável de sair desse salão e respirar ar puro.

O palácio de inverno cedido para o noivado do conde com a futura esposa possuía um aprazível jardim frontal onde aceitei caminhar com meu misterioso acompanhante. Embora não pudesse ler os pensamentos de Adon, a sua pulsação era alta e clara para a minha audição. As batidas por minuto mantinham-se inalteradas mesmo quando ele subia o tom da voz ou respondia uma pergunta mais capciosa e aquilo começou a me deixar incomodada. Nada além do seu bloqueio psíquico dizia que aquele homem de cabelos bem penteados para trás podia ser um vampiro como eu, mas até então, eu também tinha poucas evidências para provar o contrário.

— Como descobriu que eu era romena, além do meu sotaque? — fui logo com o dedo na ferida.

— As notícias correm soltas nos prostíbulos, minha cara. Diferente de você, o seu meio-irmão não é dado a muitas sutilezas.

O bastardo anda falando mais do que deve nos puteiros. Está querendo nos foder, pensei irada.

— Meu irmão tem um apetite sexual voraz, eu diria.

— E a língua tão solta quanto voraz — completou Adon, dando um gole no champanhe em sua taça. — Não vejo problemas em vocês assumirem uma nova identidade para escaparem do passado tortuoso, mas quanto mais pessoas sabem a verdade, mais rápida é a queda do topo. Consegue me entender? — Acenei que sim com um movimento leve da cabeça. — Lukyan chegou ao poder de forma rápida e isso o tornou arrogante, descuidado. O poder em excesso costuma mostrar a real natureza do ser humano e a de seu irmão não é algo saudável para alguém como você.

— "Alguém como eu"? — repeti sem entender.

— Você é uma mulher determinada e calculista que deseja chegar ao poder e manter-se lá. Com Lukyan ao seu lado, esse desejo jamais se realizará.

— Ora, Adon. Não me insulte! Você só me conhece há alguns minutos. Como pode saber tanto sobre mim?

Com um riso sinistro, Adon largou a taça vazia sobre a amurada que cercava o jardim e segurou as minhas mãos firmemente. Uma vez mais os seus olhos cinzas fitaram os meus e eu me senti acuada... exatamente como Dumitri me fazia sentir.

— Desde que os sussurros sobre um casal de irmãos da Valáquia começaram a ser ouvidos nos bordéis, eu passei a prestar maior atenção em vocês dois. Eu investiguei. Sei tudo o que aconteceu entre vocês na estrebaria, a fuga para Bucareste e até mesmo o que houve no castelo do senhor Ardelean.

Minha mão moveu-se mais rápido do que ele podia perceber, e no instante seguinte, eu estava esmagando a sua traqueia com os meus dedos.

— O deixei falar até agora para descobrir o que sabia, mas o seu tempo acabou, amigo. Mandarei o seu corpo para Dumitri como um aviso de que jamais voltarei a ser sua prisioneira.

Eu estava mesmo disposta a quebrar o seu pescoço a fim de silenciá-lo, mas de repente, a sua voz emergiu em um grunhido:

— E-Espere! V-Você não entendeu...

Ele não estava conseguindo falar, então, afrouxei um pouco os dedos, mantendo as unhas cravadas em sua pele.

— N-Não estou aqui a mando de Dumitri. Nunca o vi pessoalmente. Foram os meus informantes... eles que investigaram sobre você e o seu irmão. Não tenho nenhum vínculo com esse homem.

A pulsação dele estava acelerada devido à pressão em sua garganta, mas ele não estava mentindo. Soltei o seu pescoço deixando-o respirar.

— Se sabe tanto sobre mim, não acha que se arriscou me ameaçando dessa forma?

— Não foi uma ameaça — respondeu ele com a voz falhada —, eu sei que você não queria ter sido transformada nisso que agora você é. Eu sei que no fundo, a alma da jovem e doce camponesa da Valáquia ainda reside em você querendo retomar a vida que lhe foi tirada. Eu estou aqui para lhe fazer uma oferta. Uma oferta que pode trazer de volta tudo que lhe foi roubado.

Adon passou a hora seguinte falando-me sobre magia e como ele a tinha conhecido. Falou do seu passado pobre na Ucrânia, de como ele e os pais se mudaram para a Inglaterra ainda em sua juventude e como tinha sido treinado nas artes arcanas. Contou-me que ele já tinha cruzado o caminho de outros seres como eu e que conhecia bem o destino reservado para aqueles que deixavam sua natureza animal dominar o lado humano.

— É um caminho sem volta, Dasha. Uma vez que alguém com os seus dons permite que o seu lado selvagem domine aquilo que você era antes da transformação, não há retorno. Você não quer isso, não é mesmo?

Mais uma vez, eu estava sendo confrontada com as histórias de ninar da minha infância que agora tomavam formas reais diante dos meus olhos.

Ele está mesmo falando que magia é real?

— Você pode me curar? — Lhe perguntei num misto de curiosidade e apreensão — O meu lado selvagem pode ser arrancado de mim?

Adon olhou-me do alto com semblante confiante e após deslizar o polegar pela maçã do meu rosto, falou:

— Não posso te curar, mas conheço uma pessoa que pode reprimir a sua sede por sangue.

Naquela madrugada, não consegui pregar os meus olhos embora soubesse que precisava revigorar as minhas forças. O quarto de Costel estava silencioso e eu tinha certeza que ele não havia retornado para casa após a festa no palácio de inverno. Sentimentos eram detalhes efêmeros que eu não me dava mais ao luxo de ter depois que tinha sido transformada e já quase tinha me esquecido como era ser mais do que uma casca vazia. Se ainda pudesse sentir algo, estaria angustiada por não saber o paradeiro do meu irmão. Em vez disso, fiquei deitada no caixão que usava como cama — como assim o fazia Dumitri em seu castelo — contendo os raios solares que já apareciam no horizonte com a tampa feita de um metal reforçado, sem poder dormir.

Dois dias depois, o sumiço de Costel era agora uma certeza e após procurá-lo em todos os bordéis que conhecia na cidade, eu voltei a ser abordada por Adon.

— S-Seu irmão está morto.

Eu achava que não era mais capaz de chorar, mas lágrimas de sangue inundaram os meus olhos quando ouvi a sentença. Adon estava com as roupas rasgadas e marcas de garras e presas em seu pescoço provavam que ele tinha estado em companhia de um vampiro. Eu podia farejar o cheiro de Costel nas roupas e na pele de Adon. Não era uma mera bravata.

— Eu o confrontei na noite anterior. Ele estava saindo de um bordel na companhia de uma jovem prostituta ruiva. A moça gritou quando percebeu as presas na boca de Lukyan e ele a matou diante dos meus olhos por pura diversão. — Adon colocou a mão num dos ferimentos do pescoço e gemeu de dor. — Logo em seguida, o seu irmão me atacou tão veloz quanto você ao tentar me estrangular. Ele chegou a fincar os seus dentes em minha carne e eu tive segundos para reagir. Usei um encantamento arcano para afastá-lo de mim e mesmo ferido, pude atingi-lo com uma chama concentrada, arremessando-o para dentro de um rio. Ele jamais conseguiria escapar de um feitiço tão devastador.

Em nosso último encontro, Adon tinha feito de tudo para me convencer de que Costel era uma péssima influência para mim e que o seu lado impulsivo iria acabar condenando nós dois a um destino do qual seria impossível escapar com vida. Embora eu soubesse que podia estar sendo manipulada por meu meio-irmão o tempo todo desde que o havia reencontrado no Porto de Constanta, ainda na Romênia, parte de mim acreditava que ele era o mesmo garoto que fazia de tudo para me ver sorrir na fazenda e que acabou me conquistando de um jeito inegável.

Ele me vendeu para Dumitri. Disse que havia feito aquilo para me salvar de um destino cruel, mas tinha me jogado nos braços de um vampiro terrível. De uma criatura das trevas que fez de mim um monstro!

Os meus pensamentos eram conflitantes naquele momento, mas levei Adon para o palacete dos Vassiliev e cuidei dos seus ferimentos. Ele tinha escapado por pouco da fúria assassina do meu irmão.

Oh, Costel. Por que foi agir assim?

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