Capítulo 35 - Compensação
NO FINAL DAQUELE ANO, eu me mudei para um castelo em Edimburgo, na Escócia, e de lá fiquei a tocar os negócios da Rux-Oil tendo a minha presença requisitada raras vezes tanto na sede em Riad quanto em sua filial na Venezuela. Depois de tudo que havia me acontecido em Vaucluse, depois de tantas perdas, decidi contratar apenas um empregado para cuidar do castelo, mas as suas características físicas peculiares faziam dele o servo perfeito: Ele era um licantropo.
Eu havia conhecido Sergio Gutierrez em Caracas, numa das minhas visitas à mineradora e era uma noite comum de final de expediente quando eu o encontrei escondido no banheiro do meu escritório, sujo, rasgado e ensanguentado. Ele não devia ter mais do que dezessete anos na época e os moradores do bairro onde ele vivia haviam descoberto no que ele se transformava em noites de lua cheia, passando a persegui-lo. Vi na história daquele menino a minha própria história humana refletida e algo fez com que eu me afeiçoasse a ele. Eu o mantive em meu quarto de hotel por alguns dias até que decidisse o que iria fazer e quando me preparei para voltar a Edimburgo, sugeri que ele me acompanhasse.
— Você pode cuidar do meu castelo, tomar conta do lugar em minha ausência em troca de um salário justo e moradia. O que me diz, Sergio?
Ele não tinha família em Caracas e os seus olhos brilharam com a oportunidade que eu estava lhe dando. O menino de cabelos lisos e traços indígenas estava muito agradecido, e no dia seguinte, ele embarcou num voo ao meu lado, se mudando de vez para a Escócia.
Devido a minha convivência de anos com Alejandro Columbus e Pietra Del Cuzco no Peru, eu me virava bem com o idioma espanhol e a comunicação com Sergio não era problema. Ele havia se adaptado bem à sua nova vida de mordomo e eu não demorei a revelar a ele que eu era uma vampira. As suas transformações eram sazonais e o que ele fazia ou deixava de fazer quando virava um lobisomem não era do meu interesse, assim como ele não se metia em meus costumes vampiros. Dentro do castelo, sob a minha orientação, ele estava se tornando um excelente ajudante, e às vezes até me fazia companhia durante o jantar.
Numa daquelas noites, após o meu sono reparador ao longo de toda a manhã e à tarde, Sergio me entregou uma correspondência pouco antes de servir o jantar e a carta me deixou curiosa.
Quem pode saber que estou morando aqui?
— Quando esse envelope chegou, Sergio?
— Hoje pela manhã, señora Alexia.
Havia um carimbo de uma agência dos correios de Bucareste no envelope e a carta havia chegado sem remetente. Sergio havia retornado para a cozinha de onde me traria a vitela malpassada de costume, e naquele ínterim, eu abri o envelope. Havia um convite para uma festa em seu interior. "Aos cuidados de Alexia Di Grassi, um convite especial. Baile de máscaras na Transilvânia. Venha à caráter".
Eu cheguei à Romênia próximo das 18h00 e quando botei os pés naquele lugar mais uma vez, eu tinha certeza que estava sendo atraída para uma armadilha da qual eu faria quem a estivesse armando se arrepender. O endereço marcado no tal convite dava num salão de festas abandonado, mas um Jaguar 1961 azul marinho me aguardava estacionado do outro lado da rua. O chofer desceu do veículo, abriu a porta traseira e convidou:
— Queira entrar, senhora Di Grassi. Fui designado para levá-la ao seu destino.
Coloquei todos os meus sentidos à prova e farejei cada milímetro dentro daquele carro para me certificar que não havia nada ali pronto a me matar. O homem ao volante também estava tranquilo, o seu coração batia sem grandes rompantes e não havia nenhum tipo de arma com ele. Era bem óbvio que o tal baile de máscaras era só um engodo para me atrair para o meu antigo país, mas a minha curiosidade em saber quem estaria armando aquela presepada toda fez com que eu me permitisse entrar no jogo.
Se você quer brincar, vamos brincar.
A viagem levou quase uma hora e quando o Jaguar embocou numa certa avenida escura próximo a um desfiladeiro, eu sabia exatamente onde estávamos indo. O carro estacionou em frente ao portão, e educadamente, o chofer desceu do veículo, abriu a porta traseira e estendeu a mão para que eu me apoiasse ao desembarcar.
— Obrigada.
Eu não havia vestido qualquer traje à caráter para um baile de máscaras e tinha dado preferência às minhas roupas de batalha costumeiras. A blusa de gola alta, as calças de couro, as botas até as canelas e o meu sobretudo preto. Quando abri o portão do castelo, senti falta das minhas Berettas.
Vou ter que cuidar do bastardo com as minhas próprias mãos, pensei, após fechar as grades que rangeram atrás de mim em suas dobradiças.
O lance de escadas até o hall de entrada era tão grande quanto eu me lembrava e quando bati na porta, um mordomo trajando um elegante fraque me recebeu. Ele tinha sotaque francês, o bigode fino característico e me encaminhou até a sala de jantar. Senti um ódio irracional me queimar as entranhas quando eu o encarei na cabeceira da mesa de carvalho e o aroma da mesma vitela que comíamos em Kainski me revirou o estômago, causando-me asco. E eu adoro carne malpassada, pensei, infeliz. Um outro serviçal de aparência nórdica servia uma segunda taça de vinho à mesa e ele ergueu a sua, em cumprimento:
— Já mandei preparar o seu vinho predileto. Sabia que chegaria com sede da viagem.
Era o Bordeaux francês. O mesmo que havia sentido o cheiro nos corpos de Danielle e Fabrice em Vaucluse há dez anos.
— Mande os empregados embora. Não quero que eles vejam o que pretendo fazer com você.
Minha voz soou firme e senti o mordomo francês e o serviçal nórdico engolirem em seco, com medo.
— Não seja indelicada, Alexia. O que nossos empregados vão pensar de você?
O castelo na Transilvânia havia sido reformado desde a última vez que eu havia estado nele, mas ainda mantinha as suas principais características. Tinha as janelas vedadas, luminárias espalhadas pelas principais paredes e corredores... até mesmo os móveis pareciam ser os mesmos da época.
— Cuidei para que o castelo mantivesse o mesmo charme daquela época. O último morador acabou me vendendo por uma pechincha, embora agora dinheiro não me seja mais um problema. A Novyy Kordon está lucrando horrores com a alta do petróleo no mercado. À propósito, como vai a Rux-Oil?
Eu detestava a ideia de que agora o meu meio-irmão Costel podia ler a minha mente deliberadamente, o que fazia das minhas ações previsíveis a ele. Eu tinha gana de saltar sobre aquela mesa e rasgar a sua jugular com as minhas próprias mãos para tirar aquele sorriso canalha do seu rosto, mas ele estaria me esperando. Ele poderia evitar.
— Por que toda essa encenação, Costel? Tudo isso só para me trazer de volta ao lugar onde vivemos juntos na Transilvânia? — Os dois serviçais se retiraram logo que eu disse aquilo. — Qual é o seu jogo? De que maneira está tentando me apunhalar dessa vez?
Ele deu um gole em seu vinho e me encarou sem dizer nada. Com um gesto, me convidou para sentar ao seu lado à mesa, mas eu me mantive estática, a quatro passos da porta de entrada da sala de jantar.
— Desta vez não há jogo algum, minha irmã. Eu a trouxe aqui para compensá-la pelos anos terríveis que tem vivido desde a tragédia em Vaucluse. Eu não pude expressar os meus sentimentos naquele nosso breve encontro em Bucareste — e ele deu um risinho irônico, olhando para o lado rapidamente —, mas eu lamento profundamente o que houve com o seu marido.
— Não fale do Enzo. Você não sabe nada sobre o que ele representou para mim.
— Você tem razão. Eu não sei. Mas eu acredito que você vai querer reencontrar o fruto que nasceu da sua relação com aquele italiano.
Aquelas palavras me atingiram como uma explosão de granada. Reações puramente humanas dominaram o meu corpo e eu comecei a tremer dos pés à cabeça. Costel fez um gesto e o mordomo francês ressurgiu da cozinha, aguardando o comando do seu patrão à dois passos da mesa.
— Pode trazê-la, por favor, Jean.
Trazê-la? Trazer quem? Do que esse bastardo desgraçado está falando? O fruto que nasceu da minha relação com Enzo? Do que ele está falando?
Eu estava aturdida e comecei a acompanhar com os olhos o mordomo subir as escadas que davam para o andar superior.
— Você vai querer uma taça de vinho antes da surpresa, Alina... quer dizer, Alexia. Ainda me confundo!
Costel não tirava aquele sorriso irritante do rosto. Uma lágrima de sangue começou a escorrer do meu olho esquerdo quando ouvi passos vindos de cima. Passos leves, ao lado do mordomo.
— Do que você está falando, Costel? Que surpresa? Do que está falando?
Ele juntou as duas mãos entrelaçadas e apoiou os cotovelos sobre a mesa. Os seus olhos azuis me encararam uma última vez, e então, ele passou a olhar em direção às escadas, aguardando o retorno do mordomo que acompanhava outra pessoa. Eu não conseguia controlar as minhas mãos trêmulas, e de repente, aquele perfume tomou o meu olfato. O perfume da sua pele.
É o cheirinho dela.
Antes que aparecesse ao pé da escada, eu já sabia quem era a tal surpresa, o tal fruto da relação entre mim e Enzo.
— Eu tinha certeza que você ficaria feliz, minha irmã — disse Costel, ao ver a minha reação diante da aparição em minha frente.
A menina não esperou mais nada. Largou a mão do mordomo e correu até mim, me abraçando forte, calorosamente.
— Mamãe! Eu senti tanta saudade!
Era mesmo ela. Sem truques. Sem engodos. Sem mais trapaças. A minha Alex estava viva e em meus braços. Era o momento mais feliz da minha vida.
Continua em "Alina e o Concílio de Sangue"
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