Capítulo 32 - Sacrifício
O PROFESSOR RASHFORD havia montado uma base provisória da Teia no subsolo de um edifício centenário localizado bem no centro de Dublin e foi lá que acabei reencontrando alguns operativos que não via há anos. Eu havia chegado à ilha apenas e tão somente por causa dos seus famosos bares e as suas bebidas de alto teor alcóolico, e por ali, já estava há alguns meses, arrumando brigas ocasionais em becos sujos e em lugares mal frequentados. Nem lembrava mais por qual razão estava naquela parte do planeta. Tudo que me interessava era a cerveja e o uísque do lugar, embora o vinho tinto continuasse sendo mais agradável ao meu paladar apurado.
Jacqueline Bazelaire não parecia tão melhor do que eu mentalmente e reencontrá-la viva depois do que havíamos passado juntas em Düsseldorf, e principalmente após tanto tempo, tinha sido estranho. Quando ela chegou para a reunião na base, eu já estava lá há algumas horas empunhando uma garrafa de Knappogue Castle e analisando uma pilha de impressos com informações de Adon e o seu bando de bruxos malignos.
— Nunca pensei que fosse encontrá-la um dia bebendo algo além de vinho.
A francesa veio ao meu encontro e me deu um abraço. Os cabelos curtos agora apresentavam vários fios brancos e ela já não era mais a jovem e sorridente agente que conheci em Donetsk, há mais de trinta e cinco anos. A sua expressão cansada era de alguém que havia sofrido muito nos últimos anos e uma cicatriz corria atravessada em seu olho esquerdo. Ela havia perdido 70% da visão após uma detonação malsucedida de um explosivo plástico.
— Mas ainda tenho um olho em perfeitas condições — vangloriou-se ela —, ainda consigo me virar.
Após a explosão que me jogou no fundo do rio Reno e cuja correnteza me arrastou por mais de duzentos quilômetros de distância depois disso, Jacqueline me contou que tinha conseguido nadar até a margem após me procurar nas águas escuras e que tinha sido obrigada a fugir da Ordem Negra e dos nazistas que estavam em seu encalço. Embora aquilo fosse perigoso e completamente insano, ela ainda havia mandado uma equipe de buscas para me achar no rio, mas eu já estava longe dali. Logo na sequência, a sua namorada Nadine foi capturada, torturada e decapitada pelos membros nazistas da Ordem Negra e a francesa foi obrigada a fugir do país em plena Segunda Guerra Mundial sem conseguir se vingar.
— Eu jamais consegui botar as minhas mãos nos desgraçados que mataram Nadine. Eu estou em dívida com ela. Nós precisamos acabar com a Ordem Negra.
Após a tentativa frustrada de abertura do portal em Düsseldorf, ainda durante a Segunda Guerra, a Ordem Negra começou a trabalhar num plano menos engenhoso, mas tão ardiloso quanto no Reino Unido. Dois dias após a nossa reunião no subsolo do prédio em Dublin, nós viajamos até a região de Salisbury, no condado de Wiltshire. A cidade ficava a pelo menos cento e trinta e seis quilômetros da capital londrina, e dali, conseguíamos chegar facilmente ao monumento megalítico Stonehenge.
O professor Rashford tinha descoberto que os ocultistas iriam realizar um ritual de evocação bem no centro do antigo obelisco circular formado por pedras de mais de cinquenta toneladas e que a cerimônia seria favorecida pelas energias cósmicas do solstício de verão do Hemisfério Norte. Aquela era uma chance imperdível de pegar todos os membros da seita de uma só vez, num mesmo lugar.
— A estrutura do Stonehenge com as suas lajes e pilares formando círculos concêntricos é perfeita para a evocação de entidades e outras práticas ritualísticas. Seja lá o que eles querem trazer para a Terra desta vez, vai ser algo que não vamos vencer com facilidade — disse o professor, com o seu sotaque britânico.
O solstício de verão marcava a época do ano em que a luz solar refletia com maior intensidade num dos hemisférios terrestres — nós estávamos no Norte —, o que significaria morte quase instantânea para mim em caso de exposição enquanto o ritual estivesse acontecendo. Tendo em vista que eu era uma vampira que teria que agir pela primeira vez durante o dia, Erich Brandt formulou em seu laboratório uma espécie de pomada à base de dióxido de titânio e óxido de zinco que tornaria a minha pele resistente ao sol por pelo menos dez minutos. O material opaco da pomada agiria como uma espécie de refletor da luz por aquele período curto de tempo. Se a exposição fosse maior, aquela seria a minha última missão.
O sol estava à pino quando os carros da Teia se aproximaram da região rural onde ficava o Stonehenge. A estrutura era gigantesca e mesmo de onde estávamos, era possível ver o monumento ao longe. A equipe se espalhou pelo local cercando a formação rochosa e lá no centro o ritual já havia começado. Eu estava no carro cujas janelas estavam revestidas por lâminas de madeira para impedir que os raios do sol entrassem, e dali, eu seria acionada quando a situação estivesse muito ruim para o restante da equipe. Brandt havia ficado comigo no carro, no volante, enquanto eu estava deitada na parte de trás escapando da luz que entrava pelo para-brisa. O homem, que na época já era bem idoso, tremia dos pés à cabeça com o coração acelerado. Ele nunca antes tinha precisado sair em missão de campo, atendo-se sempre à sua área de atuação dentro dos laboratórios da Teia. O número pequeno de pessoal ainda ativo o tinha obrigado a sair da base pela primeira vez e ele estava em pânico.
Do banco de trás do carro, os meus sentidos captavam toda a movimentação do nosso entorno, e além dos nossos agentes que corriam com submetralhadoras e rifles em punho pelo terreno, havia uma concentração de pelo menos quarenta membros da seita no território, além de uma pulsação mais fraca que eu captava de uma pessoa amarrada a um tipo de totem. O carro estava afastado demais para que eu conseguisse obter mais detalhes, mas naquele momento, o transceptor manual de Brandt foi acionado e ele começou a falar com Jacqueline via rádio:
— Tem pelo menos uns quarenta deles, Erich. Não sei se damos conta. Câmbio.
— O que eles estão fazendo lá? — indagou o velho alemão posicionando o rádio próximo da boca.
— A maioria deles está entoando algum tipo de cântico ao redor de um círculo de fogo na parte mais interna do monumento. Tem um altar na extremidade, de costas para o pilar mais alto do Stonehenge e há duas pessoas amarradas em dois totens de pedra. A mulher à esquerda está se movendo, mas o homem à direita está inconsciente.
A voz de Douglas Rashford irrompeu de outro canal do rádio:
— É um ritual de evocação. O círculo de fogo está sendo mantido pelo cântico que eles estão entoando em um tipo de linguagem celta e a mulher vai ser possuída pelo que sair do portal. O homem à direita vai ser sacrificado. Para que uma alma seja tomada, outra deve ser oferecida em seu lugar.
— Temos que interromper esse ritual agora!
A voz de Jacqueline foi sobreposta pelo som de rajadas de metralhadora no rádio e Brandt quase derrubou o transceptor com o susto. Havia menos de vinte agentes da Teia em campo, o que claramente seria insuficiente se todos os membros da Ordem Negra fossem versados em magia. Apesar do cheiro forte da pomada que protegia a minha pele atrapalhar meu olfato, eu consegui sentir daquela distância o fedor de enxofre exalando do meio do círculo de fogo que queimava a relva onde o Stonehenge estava fixado. A primeira linha de defesa dos ocultistas tinha sido abatida pelos tiros incessantes da equipe de Jacqueline, mas a segunda já estava se preparando para contra-atacar, conjurando chamas das mãos e lançando em direção à Teia. Uma terceira linha de membros da Ordem havia se mantido firme, entoando agora ainda mais alta a canção que estava mantendo a fenda entre as realidades aberta. Esferas de fogo começaram a apanhar os operativos da Teia em ação, fazendo-os queimar enquanto rolavam no chão em agonia. A mulher em cima do altar não era mais totalmente humana. Eu conseguia sentir a presença maligna dentro dela.
— Preciso agir agora. Se esperar mais, será muito tarde!
Erich me viu abrir a porta do carro em desespero tentando me dissuadir, mas não dava mais para esperar. Eu estava enfraquecida pelo simples fato de estar acordada durante o dia e quando a luz do sol me atingiu diretamente, senti como se não fosse conseguir nem chegar até o monumento megalítico a alguns metros de distância de onde o carro estava estacionado. Eu sabia que a pomada havia funcionado porque eu ainda não tinha virado uma pilha de cinzas no chão, mas tinha também a noção exata que a partir de então, o tempo era o meu maior inimigo.
Eu alcancei o Stonehenge logo que a mulher vestida com um tipo de toga negra e com os cabelos ruivos desgrenhados começou a forçar as correntes que a prendiam ao totem, arrebentando-as. Eu trazia em uma bainha presa à minha cintura a rapieira que vinha me acompanhando em minhas últimas incursões, mas preferi usar primeiro as duas Berettas de Enzo, que saquei dos coldres embaixo do meu sobretudo. Os tiros começaram a atingir os membros que formavam o círculo mais interno da evocação e eles começaram a cair uns por cima dos outros. Havia pelo menos vinte outros bruxos disparando esferas incandescentes contra os agentes da Teia, que passaram a ser fulminados facilmente em campo aberto sem ter atrás de onde se esconder. A região em volta do monumento era de relva que se estendia por quilômetros sem nenhum outro local que oferecesse alguma proteção. Aquela não tinha sido a estratégia de ataque mais brilhante que eles tinham executado.
— Noctem daemonium! Noctem daemonium!
Alguns dos membros começaram a me chamar de demônio da noite, como havia acontecido em Düsseldorf em 1944 e antes disso em Donetsk, em 1928. Era mais do que óbvio que eu era persona non grata para eles desde que a Ordem do Portal de Fogo ainda não havia se dividido em outras facções menores, mas eu tinha pouco tempo sob o sol para que aquilo me preocupasse. Tirei do caminho aqueles que me impediam de chegar ao altar e usei a minha última bala na testa de um deles, que ainda tentou segurar a minha roupa diminuindo a minha velocidade. A mulher de cabelos vermelhos já havia se libertado das suas correntes e sibilava entre os dentes. Ela movimentava-se com as costas curvadas e os braços abertos já rodeando o homem preso no totem vizinho. Ele era calvo, possuía uma barba grisalha longa e vestia um tipo de roupão de tecido rústico e acinzentado. Era um alvo fácil para a ruiva que claramente não estava mais em domínio das próprias ações.
— Ei, monstrenga! Deixe o velho em paz!
A mulher virou-se para mim, e naquele momento, senti um arrepio na espinha, do tipo que não sentia há muito tempo. As pupilas haviam desaparecido de dentro dos olhos que agora brilhavam num tom ainda mais vermelho que os seus cabelos. Haviam cortes em seu rosto como se algo estivesse prestes a rasgar a sua pele de dentro para fora e fosse assumir a sua forma. Os dentes eram pontiagudos e amarelados e ela os exibiu para mim ao rosnar, fazendo exalar um cheiro cáustico de enxofre de dentro da sua boca.
Eles conseguiram. Eles trouxeram um demônio para a nossa realidade.
Eu tinha pouco tempo e a minha ação seguinte foi sacar a rapieira e infligir um ataque à mulher-demônio. Eu havia mirado em seu peito, mas com uma agilidade fora do comum, ela se desviou e se atirou sobre mim, me derrubando no centro do círculo que ainda ardia em chamas. A barra do meu sobretudo resvalou na fogueira e o tecido começou a queimar em seguida. O sol estava me deixando lenta e fraca. Eu não conseguia resistir à força que aquele monstro estava imprimindo contra mim, me mantendo contra o chão.
— Seu corpo... forte... recipiente... bom...
O demônio estava usando a mente da mulher que lhe servia como receptáculo para formular aquelas palavras, e de repente, eu percebi que ele queria se transferir para o meu corpo, sentindo todas as vantagens que as minhas habilidades vampíricas poderiam lhe oferecer. Eu tinha poucos minutos para ficar sob o sol, e num último raciocínio lógico, pensei que aquela seria uma maneira perfeita de executar aquele monstro.
Ele vai dominar a minha mente e vai transferir a sua essência para mim. Assim que a transferência se completar, o efeito da pomada já terá passado e o sol vai incendiar o meu corpo, destruindo o demônio no processo.
Enquanto os olhos vermelhos penetravam os meus ea mulher-demônio começava a falar em uma língua desconhecida sobre mim,arrancando a minha vontade própria e começando a me subjugar, eu parei deresistir. A mão que segurava a espada vacilou no gramado e o fogo continuou consumindoa minha capa. Eu tinha vivido bastante até ali. Tinha perdido todas as pessoascom que um dia eu havia me importado e não via mais nenhum tipo de propósito emuma vida eterna. Deixar o sol esfacelar o meu corpo tomado por um demônio meparecia um sacrifício válido de uma vida tão sofrida e aquela me parecia seruma maneira heroica de morrer. Eu estava em paz naquele momento.
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