Capítulo 31 - Reencontro em Dublin
NAS PRIMEIRAS NOITES, ela vinha me visitar com frequência. Dava-me um beijo com os lábios úmidos em minha testa, levantava-me o lençol e se aninhava em meu peito. Ficava-me a fazer carícias no rosto enquanto me falava como havia sido seu dia. Contava das falésias onde cavalgava com Ragazza ao pôr do sol, dos vales verdejantes onde caminhava de mãos dadas com o pai e das colinas que visitava com Danielle. Fabrice a levava para ver o mar, mas tirava-lhe da água quando as ondas quebravam muito próximas da costa, preocupado. Remy a ajudava a colher conchas na praia parando para lhe fazer companhia e ouvir o barulho ressonante do mar dentro delas. Cada lembrança terminava com um risinho doce, suave. O calor que o seu pequeno corpo me transmitia embaixo das cobertas era reconfortante. Fazia o meu coração pulsar apressado. Pulsar como se eu estivesse viva. E eu ficava esperando que ela retornasse no outro dia.
Em meu quarto ano de reclusão dentro do castelo em Vaucluse, após esgotar a adega de vinho, eu adormeci em sua cama e ela veio se despedir de mim em sonho. Estava radiante. Os olhos azuis brilhavam como a luz de um farol, trajava um vestido branco de renda e estava descalça. Os cabelos loiros esvoaçavam livres sob a força de uma brisa delicada que soprava e nós duas andávamos de mãos dadas pelo bosque. Era dia. O sol estava alto no céu, mas eu não me importava. Sentamos no gramado, ela segurou as minhas mãos e falou sorridente, com os dentinhos perfeitos a se exibirem:
— Eu vou ficar bem, mamãe. O papai vai cuidar de mim.
Eu senti uma presença atrás de mim e uma sombra foi projetada contra o sol. Virei-me para enxergar quem havia chegado, e naquele momento, ela correu para os seus braços. Costel estava sorridente e ele a segurou com firmeza no colo.
— Agora tudo vai ficar bem, Alina. Tudo vai ficar bem.
♦
A polarização política entre os Estados Unidos e a União Soviética agitava o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e enquanto nações de todos os continentes escolhiam o seu lado, a Guerra Fria seguia sem solução com ameaças de ataques nucleares — como os que tinham dizimado as cidades japonesas de Hiroshima e Nagazaki em 1945 — para todos os lados.
Os anos 60 se iniciavam com tensões crescentes entre os dois lados da Guerra Fria e só nos primeiros anos daquela década, o mundo já tinha visto o desenrolar da Guerra do Vietnã — iniciada em 1955 —, o nascimento da NASA — representando a corrida espacial entre EUA e URSS —, a construção do muro de Berlim, que dividiu a Alemanha em duas áreas, uma Ocidental e outra Oriental, e a crise dos mísseis cubanos. Embora agora os meios de comunicação fossem um grande diferencial como fonte de informação, eu ainda preferia me manter alheia a tudo aquilo, vagando a esmo pelo mundo sem um propósito definido.
Os anos subsequentes após a tragédia ocorrida em Bucareste tinham sido os mais terríveis em minha vida e eu não sabia quando finalmente me livraria do peso da culpa que carregava por ter trazido Alexandra para a minha existência torturada. Eu tinha sido afetada de maneira profunda pelas mortes de Alex, Enzo, Fabrice e todos os outros que me serviam em Vaucluse. Sangue e vinho tinto eram as únicas coisas que me faziam esquecer por alguns segundos todo aquele terror. Mas nunca era o bastante.
Eu estava em um bar com aparência de taverna medieval em Dublin, na Irlanda, quando fui abordada por um sujeito mal barbeado que fedia a cerveja barata. Era o começo da noite, o estabelecimento mal tinha sido aberto, mas eu já havia arrastado uma garrafa de Jameson para a mesa mais afastada do balcão. Tinha ignorado o copo que o taberneiro havia me oferecido junto à garrafa e bebia goles pouco generosos no gargalo.
— Aqui era o último lugar no mundo que eu esperava encontrar você.
O ambiente estava pouco iluminado. O rádio do bar tocava uma ruidosa música folclórica da banda The Clancy Brothers. O fedor de cerveja agora estava ainda mais perto.
— Foda-se, colega! Cai fora!
Limpei o uísque que havia escorrido em minha boca com a manga da minha jaqueta e nem me preocupei em levantar os olhos quando o barbudo resolveu ignorar o meu pedido e sentar-se à mesa à minha frente.
— Foram anos difíceis, eu sei.
Meu fator de regeneração não permitia que eu ficasse alcoolizada por um período muito grande de tempo, mas eu já tinha acabado com quatro garrafas de vinho mesmo antes de pisar naquele bar. Os meus sentidos aguçados estavam bem prejudicados e eu segurei o homem pelo colarinho, olhando-o através dos fios desgrenhados dos meus cabelos que me caíam no rosto.
— Já disse pra se mandar!
— Calma, garota. Calma. Não está me reconhecendo? Sou eu, Douglas.
O professor Douglas Rashford tinha se mudado da Inglaterra para a Irlanda quando a Ordem Negra passou a caçar todos os membros remanescentes da Teia ainda na década de 40 e tinha sido por puro acaso que ele havia me reconhecido do lado de fora do bar enquanto estacionava o seu Mini Cooper azul na porta da farmácia em frente. Embora eles vivessem agora nas sombras, os operativos da Teia ainda estavam na ativa procurando desmantelar as intenções de conquista tanto da Ordem Negra quanto da Ordo Ignis Veni.
— Não tenho interesse em fazer parte, professor — disse ainda à mesa, esvaziando a última gota da bebida na garrafa —, talvez seja mesmo o destino da Terra ser vassalada por uma horda de monstros. Nós, criaturas das trevas, já estamos por todas as partes infectando tudo que é inocente e belo com a nossa presença contagiosa. Talvez não devamos salvar o mundo. Talvez devamos deixá-lo queimar!
Eu me levantei da mesa, e em seguida, caminhei cambaleante até o balcão onde deixei uma nota de vinte Libras irlandesas ao taberneiro. O homem me olhou agradecido recolhendo o dinheiro e me viu sair do seu estabelecimento sendo seguida de perto por Rashford. Eu já tinha dado cinco passos indo em direção norte, quando sua voz soou:
— Eu estou morrendo, Alexia. Câncer intestinal maligno. O professor Brandt também não deve ter muito mais anos de vida pela frente e Jacqueline Bazelaire anda instável emocionalmente procurando vingança pela morte dos seus colegas. Você é a única que vai passar por tudo isso intacta fisicamente. A única que pode nos ajudar a pôr um ponto final na história da Ordem para sempre. Não nos vire as costas.
"Intacta fisicamente". Eu tinha gostado da ironia.
Eu não sentia que tinha nenhum tipo de dívida moral com a Teia ou que eles realmente precisavam das minhas habilidades físicas extraordinárias, mas resolvi voltar à ativa pelo simples desejo de explodir algumas cabeças e me refestelar com a carnificina. Eu havia sido desconectada do meu lado humano mais uma vez e agora sentia como se fosse definitivo. Alex e Enzo tinham carregado com eles para o túmulo tudo que ainda restava da velha Alina Grigorescu da Valáquia. O que tinha sobrado era apenas uma casca vazia e sem sentimentos. Assim sendo, acabar com a Ordem do Portal de Fogo e as suas facções era apenas uma questão de amarrar as pontas que haviam sido deixadas soltas, não exatamente de um acerto de contas. Foi o que pensei.
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