Capítulo 29 - Herança real
EU HAVIA EVITADO aquele reencontro por quase cem anos, mas quando senti traços do vinho francês preferido de Dumitri nos corpos dos meus fieis amigos e serviçais, eu parti de Vaucluse na França direto para Bucareste, na Romênia. Apesar de ter feito várias visitas à minha terra ao longo da minha vida eterna, eu nunca tinha tido coragem de retornar àquela parte de Bucareste desde que havia envenenado o vinho do monstro que havia me transformado em vampira. Tinha se passado muito tempo. A Guerra dos Balcãs, a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial podiam ter acabado com o castelo daquela abominação, mas quando lá cheguei, ele estava intacto. A sua fachada apresentava um tom mais encardido, ele estava decadente com buracos de bala enfeitando a região próxima da nave frontal... mas ele ainda estava erguido na paisagem soturna da cidade.
Era noite quando cheguei na Romênia. Estacionei o Alfa Romeo ainda com o banco manchado do sangue de Fabrice numa esquina e segui dali a pé. Encarei por um instante o alto da sacada de onde o vampiro de cabelos compridos havia me ensinado sobre as minhas novas habilidades físicas e mentais algumas horas após o meu despertar, e em seguida, chutei a porta de dois metros de altura que se abriu com um rangido de suas dobradiças. Eu trazia comigo a mesma rapieira embebida em extrato de alho com a qual havia sido obrigada a apunhalar o meu marido e se aquilo não fosse o bastante, uma Beretta com balas de nitrato de prata estava escondida em seu coldre, do lado de dentro do sobretudo preto que usava. Eu queria a minha filha de volta e não sairia dali sem ela. Nem que para isso eu tivesse que matar Dumitri.
O homem estava de costas para a porta do quarto quando eu adentrei o lugar subitamente. Os cabelos ainda eram compridos, mas agora pareciam esgarçados, enchendo a sua cabeça num menor volume com os fios prateados. Os ossos eram evidentes por dentro da blusa vermelha e justa que ele usava e o sujeito me parecia bem menor em estatura do que eu me lembrava. Eu o tinha visto diversas vezes em meus pesadelos desde então. Em todos ele me violentava e me mordia o pescoço. Às vezes em ordem alternada.
— Cheguei a pensar que não conseguiria seguir a pista que eu havia deixado, bela Alina.
Dumitri se virou para me encarar e ele estava com expressão cansada no rosto envelhecido. Os olhos carmesins não apresentavam qualquer brilho e quase se escondiam dentro das olheiras escuras manchando as bolsas de pele morta. As mãos eram magras e compridas como eu me recordava. O mesmo anel dourado brilhava em seu dedo anelar direito enquanto ele levantava a taça de Bordeaux à sua frente.
— Eu vim por Alex. Entregue a menina ou eu acabo com você, velho maldito!
A ponta da rapieira estava mirada entre os seus olhos e uma risada cavernosa emergiu de seus lábios ruídos. Ele sorveu mais um gole do vinho com gosto de sangue que tanto apreciava e não tirou os seus olhos de mim. De forma obscena, como fazia enquanto eu cobria a minha nudez com os vestidos de seda que os seus empregados me davam para usar, o vampiro esquadrinhou a minha silhueta de cima a baixo.
— Você cuidou muito bem do seu corpo ao longo de todo esse tempo. Não envelheceu um só dia desde que me abandonou à mesa, arfando com aquele vinho envenenado por sangue apodrecido. — O sorriso no rosto ossudo tinha se desfeito e eu já olhava em volta na tentativa de encontrar Alex. Havia um caixão de mogno no lado esquerdo do quarto, próximo de onde ficava o banheiro. Eu não captava sinais vitais em seu interior.
— A menina, Dumitri. Onde ela está?
Eu era incapaz de controlar as minhas emoções naquele momento e o florete em minha mão começou a tremular, ainda apontado para o rosto do velho Dumitri. Ele começou a se divertir com a minha angústia.
— Olhe só para você. Em vez de se tornar uma vampira por completo, deixou-se impregnar por seu lado humano. Tornou-se frágil, medrosa.
Eu queria sacar a pistola e explodir a sua cabeça, mas em vez disso, fiquei parada, apontando-lhe a espada.
— Eu senti em você o cheiro da linhagem poderosa a qual você descendia logo a primeira vez que a vi imunda, andando feito uma mendiga nas ruas de Bucareste ao lado do seu irmão imprestável. Desde o início, eu tinha certeza que você se tornaria uma vampira poderosa, a mais poderosa de todas. — Dumitri agora caminhava lentamente sem me perder de vista. Estava indo em direção ao caixão erguido sobre uma mesa. Ignorava o florete apontado para ele. — Quando a transformei, eu queria que enxergasse todo potencial que o seu sangue real já trazia mesmo antes de se tornar uma imortal. Eu queria que você fosse a minha rainha e que reinássemos juntos pelo mundo.
— Sangue real?
Ele tinha alcançado o caixão lentamente e agora tamborilava os dedos finos e brancos sobre a madeira.
— O seu pai camponês nunca falou das suas origens? As suas verdadeiras origens?
Ele me olhava com proveitosa curiosidade agora. Eu estava confusa.
— Os Grigorescus descendem de uma linhagem de trabalhadores rurais. O meu avô, o meu bisavô... todos antes deles eram servidores do campo. Não há nada de especial em meu sangue.
— Mas, e quanto à linhagem da sua mãe? O que tem a me dizer sobre os seus antepassados maternos?
Eu não conhecia nada sobre a família de Ruxandra e era estarrecedor constatar que aquele velho decrépito parecia saber mais sobre os meus parentes do que eu mesma.
Mama nunca me falou nada sobre os seus pais ou mesmo como ela havia acabado na Valáquia. A sua vida pregressa era um imenso vazio antes dela conhecer Grigore e se casar com ele.
— Você está protelando, Dumitri. Não vim aqui para falar sobre o meu passado. Eu quero a Alex. Me entregue a menina!
— "Alex"? A criança daquela prostituta francesa que você encontrou na Alemanha e adotou como a sua filha? — Como ele podia saber tanto sobre nós? Como Dumitri tinha tantas informações sobre a minha vida e por que ele não tinha me deixado em paz? — Ela está bem aqui.
As mãos magras de Dumitri abriram o caixão e senti um torpor quase como se pudesse sentir o meu coração batendo outra vez quando vi o corpo inerte de Alex lá dentro. Ela estava com o semblante sereno e os seus dois braços estavam cruzados em seu peito. A rapieira caiu das minhas mãos e eu corri para abraçá-la empurrando Dumitri.
— Minha filhinha! Oh, minha filhinha! O que ele fez a você?
O vampiro deu outra risada me vendo abraçar o corpo frio da minha pequena filha. Ele começou a caçoar:
— O que foi feito daquela corajosa e indolente vampira que saiu da Romênia para tornar-se uma princesa russa? Como aquela valente conquistadora foi se tornar esse arremedo de ser humano sentimental e fraco?
Eu não conseguia controlar o meu choro. Eu buscava sinais vitais dentro do corpinho paralisado de Alex, mas não encontrava nada.
Ela não pode estar morta, não pode!
— Você se mudou para a França e se tornou uma dona de casa inútil. Casou-se com uma abominação peluda travestida de homem, arranjou uma criança humana para chamar de filha... Isso é lamentável! Você possui sangue real. Você é uma rainha!
Naquele momento de fúria, eu enfiei a minha mão por dentro do sobretudo e saquei a Beretta. Ainda estava com as mãos trêmulas. Mirei na cabeça, mas atingi o seu pescoço.
— Você matou a única esperança que eu ainda tinha de viver uma vida feliz nesse mundo de violência e dor, seu saco pútrido de pele! Você matou a minha Alex e agora eu vou acabar com você!
Os dois tiros começavam a fazer efeito e a prata já estava agindo no organismo de Dumitri. A região onde as balas o tinham acertado agora apresentava um tom acinzentado e formava veias inchadas, confirmando o envenenamento pelo nitrato. O velho vampiro agora começava a engasgar com o seu próprio sangue e ajoelhado próximo da porta, segurando o ferimento, ele ainda tentou falar:
— Eeee... Eeeu ainda... posso... salvar...
Eu engatilhei a pistola puxando a sua base para trás. Segurei a arma com as duas mãos. Agora eu não ia mais errar.
— Meu sangue... eu ainda posso... salvá-la...
Para transformar um ser humano em um vampiro, primeiro era necessário sugar todo o seu sangue do corpo, depois, era necessário que a vítima bebesse do sangue do próprio vampiro antes de morrer para que ele enfim pudesse se tornar um morto-vivo. O processo costumava demorar horas — e até dias, como no meu caso — mas sempre funcionava. As lágrimas de sangue desciam quase escaldantes dos meus olhos para o meu rosto e enquanto Dumitri arfava, com o próprio fluido corporal a engasgá-lo, eu examinei o corpo de Alex. Havia uma marca de mordida do lado esquerdo do seu pescoço.
— Você a raptou para me atrair até aqui. Por que, Dumitri? Por que você não podia me deixar em paz com a minha bebezinha? — A Beretta agora tremia. Estava difícil manter a mira. — Eu a veria crescer, se tornar uma linda moça. Ela se formaria, se tornaria uma jornalista... ela queria ser uma repórter famosa de jornal. Ela se casaria, talvez tivesse filhos... eu os veria crescer... se multiplicar...
— E eles iam morrer, Alina. Como todos aqueles humanos fracos que a cercaram desde que saiu de Bucareste. — Ele cuspiu sangue no chão procurando um fôlego que já lhe faltava. Era uma questão de tempo até que a prata o matasse. — Como o serviçal búlgaro em Kainski, o seu acompanhante espanhol em Cusco, o antropólogo na Hungria, a mulher belga em Düsseldorf... Todos mortos. Mortos como a sua preciosa humana Alexandra vai estar se não me deixar salvá-la.
O sangue de Dumitri bastaria para que ela voltasse à vida em dois dias, plena e saudável. Nós duas poderíamos viver juntas para sempre explorando o mundo, aproveitando as belezas que ainda tínhamos a desvendar, inseparáveis. Eu mesma já tinha considerado a ideia de transformá-la numa vampira para que assim eu jamais fosse privada da sua companhia, mas não tinha levado aquele desejo muito adiante. Eu não queria que a minha criança fosse privada do seu livre-arbítrio assim como Dumitri tinha feito comigo, me comprando das mãos do meu irmão inescrupuloso e me tornando uma morta-viva quase sem sentimentos. Alex era uma menina doce, generosa que não merecia ter o destino privado num repente, sem que ela mesma escolhesse isso. Ela não ia querer viver presa eternamente no corpo de uma menina de dez anos sem que nunca pudesse frequentar a faculdade que tanto almejava ou que pudesse sentir a força avassaladora do amor por outra pessoa. Não era justo. Eu sabia disso.
— Por que você a tirou de mim, seu monstro maldito?
Meus olhos estavam inundados de sangue naquele momento e por um breve instante, achei que os meus outros sentidos também estivessem se confundindo. Eu tinha visto um vulto atrás de Dumitri passando diante da porta escancarada do quarto. Aquele mesmo onde eu havia sido aprisionada e atacada pelo velho vampiro há mais de oitenta anos. Um cheiro muito familiar também tinha me assanhado o olfato. Tinha sido por uma fração de segundos. Tempo mais do que suficiente.
— NÃÃÃOO!
A cabeça de Dumitri rolou ensanguentada pelo quarto encontrando apoio na ponta de minha bota. O seu corpo decapitado vacilou alguns segundos, e então, caiu para frente com o som de um saco de esterco a ser jogado no chão. A região onde a prata agia havia sido cortada. O vulto escuro ganhou forma quando ele deu dois passos para a frente e se revelou ante a luz fraca do candeeiro que iluminava mediocremente o ambiente sobre a sua cabeça. Ele estava vestindo uma jaqueta de couro escura. Os cabelos lisos estavam penteados para trás e segurava uma catana japonesa com a lâmina ensanguentada na mão direita.
— Há quanto tempo, minha irmã! Se importa de eu sugar o sangue desse lixo velho antes que ele se torne inútil para mim?
Costel estava com uma expressão sombria que eu nunca antes tinha visto em seu rosto e num segundo, ele puxou o corpo decapitado de Dumitri para trás, o arrastou para fora e desapareceu de vista. O meu corpo inteiro tremia e eu fui até o caixão me certificar uma última vez de que Alex estava mesmo morta. Ela permanecia imóvel como uma linda estátua de um anjo. Plácida e serena.
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