Capítulo 28 - Sombras do passado

NO OUTONO DE 1954, eu precisei me ausentar de casa para as negociações presenciais com a minha nova aquisição na Arábia Saudita e eu viajei para o Oriente Médio com Miguel Harone, cujo filho, Jorge, estava prestes a nascer no Brasil, para onde ele havia se mudado recentemente. O espanhol havia aberto uma filial da sua consultoria administrativa na América do Sul e passaria a operar de lá a partir do nascimento do seu primeiro herdeiro. Após aquela negociação com os empresários árabes que me tornaria a proprietária de uma das mineradoras mais rentáveis do Oriente, seria bem mais raro que eu me encontrasse com Harone e sua esposa por aí e ele fez aquele último trabalho para honrar a sua amizade com Enzo Di Grassi. Todos os trâmites legais levaram alguns dias e mesmo instalada num luxuoso hotel de Riad, com toda a riqueza e o conforto oferecidos por um xeque árabe que intermediava a transação, eu só pensava em retornar logo para casa, para perto de Alex.

Eu me despedi de Miguel ainda no Aeroporto Internacional de Nice, após uma turbulenta viajem do Oriente à Europa a bordo de um jato de fabricação britânica De Havilland Comet. Desejei felicidades pela vinda em breve do seu primeiro filho e à sua nova vida no Brasil, e logo que ele partiu para o seu portão de embarque rumo à América do Sul, eu me sentei num banco de espera onde fiquei a aguardar a chegada de Fabrice.

Em toda a sua vida como meu motorista particular, seja em minha atribulada rotina como agente da Teia ou como a dona de casa pacata na França, o velho siciliano jamais havia se atrasado a um compromisso um minuto que fosse. Eu tinha comunicado a ele por telefone o horário exato que o meu voo chegaria em Nice, ainda do aeroporto em Riad, e era estranho que ele não estivesse ali já me esperando. Meu relógio de pulso suíço marcava 21h00. Foi quando decidi pegar um táxi que me levou da porta do aeroporto direto até Avignon.

As mais de duas horas que separavam Nice de Avignon foram as mais torturantes que eu já havia passado no banco de trás de um automóvel. Enquanto o chofer conduzia o veículo vagarosamente, respeitando todas as leis de trânsito que faziam dele um bom condutor urbano, um sem-número de situações horríveis começavam a me encher a cabeça, me tornando ansiosa.

Eu havia me mudado para aquela cidade pacata nos alpes franceses em busca da tranquilidade que não encontraria em outro lugar do mundo após a guerra, e ao lado de Enzo e de nossa filha, havia vivido longos anos de calmaria que só tinham se quebrado com a revelação de que o meu marido havia sido mordido por um vircolac em Honduras e a sua subsequente transformação. Nenhum outro perigo havia nos assombrado em nosso château até então e eu achava quase impossível que algum dos vários inimigos que tínhamos feito ao longo da vida nos tivesse finalmente alcançado. A sensação em meu peito, todavia, me dizia outra coisa. Havia algo muito errado.

As moedas com que paguei o chofer à porta do seu carro quase escaparam das minhas mãos trêmulas quando avistei de longe o Alfa Romeu prateado de Fabrice a alguns metros da porta do castelo. O táxi deu a volta no terreno em frente ao bosque e começou a tomar o seu rumo pela estrada, retornando para Nice. Larguei as malas que carregava assim que comecei a caminhar e os sentimentos humanos como medo, angústia e apreensão passaram a me tomar à medida que eu me aproximava do carro.

A visão dentro do Alfa Romeo era estarrecedora. O bom Fabrice estava com a garganta cortada e com os olhos esbugalhados. A sua cabeça estava encostada no banco do motorista. Seja lá qual fosse o animal que o tinha atingido, o tinha pego de surpresa já que ele parecia em posição de arrancar com o carro como sempre fazia. O motor do modelo italiano vibrava dentro do capô e a chave estava no contato.

Assim que me deparei com o corpo do meu motorista de longa data no interior do carro, corri desesperada para dentro do castelo e o encontrei com a porta principal arrombada. Comecei a chamar por Alex na tentativa de tirá-la de onde quer que ela estivesse para me encontrar, mas não houve qualquer resposta. Subi as escadas como da vez que corri para salvar a menina das garras do seu pai ensandecido e alcancei o corredor do seu quarto de um só pulo. A porta estava aberta com uma marca de pontapé que havia avariado a lâmina de madeira. O trinco e a maçaneta estavam retorcidos e lá dentro havia um corpo.

— Danielle? Danielle? Me responda!

O corpo da babá francesa jazia frio no chão em frente à cama de Alex e ela segurava firmemente uma haste de lareira com a qual, muito provavelmente, havia tentado se defender e proteger a minha filha.

— Oh, não, Alex! Onde está você? Onde está você?

Eu procurei vestígios que me levassem ao sequestrador de Alex por toda a casa, mas haviam poucos indícios de quem a havia raptado tão covardemente. Os sinais nos pescoços de Fabrice e de Danielle indicavam garras que podiam ser de um lobisomem, um vircolac ou mesmo das unhas afiadas de outro vampiro. Andei por toda a propriedade na tentativa de descobrir mais sinais que me dessem um norte de onde eu poderia começar a procurar e acabei encontrando marcas de pneu frescas na saída traseira do château, em direção à Avignon. O taxista que havia me trazido tinha dado a volta pelo outro lado, e embora a estrada para sair dali fosse a mesma nos dois sentidos, eu sabia que aquelas marcas não tinham sido feitas pelo chofer e sim por outra pessoa que visitara o castelo recentemente.

Embora vê-los daquela forma me doesse, voltei para perto dos corpos dos meus empregados e passei a usar o meu faro aguçado para descobrir mais sinais da pessoa que havia levado Alex. A colônia italiana de Fabrice era bem forte, mas mesmo através dela, eu conseguia sentir um cheiro familiar no paletó do siciliano. O seu agressor o havia agarrado pelo casaco antes de desferir o golpe que o matara instantaneamente e o odor ali presente me era familiar. Era o mesmo que estava na pele arranhada do ombro direito de Danielle lá em cima no quarto de Alex e apesar de fraco, ele era inconfundível.

Bordeaux. Tem cheiro de Bordeaux

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